Capítulo 12: Teimosia
O breve silêncio que irrompeu dessa desconfiança continuou. Através desses valiosos instantes, o jovem por um momento colocou a mão sobre o rosto, até repeti-lo incansavelmente. Quando sentiu a pele que carregava consigo, ele vacilou, como se estivesse duvidoso, respirando mais alto que o rádio, até de repente ele sair da transe de tanto lembrar quem era.
“Rápido, Itsuki!”, interrompeu, fazendo-o recuperar as pupilas marrons que lhe pertenciam. “Nada está batendo, todos os que pertencem ao turno da noite estão acionados já na operação. Em tese, o prédio está vazio. O lobo deveria estar num lugar que não desse tanta dor de cabeça. Deveria haver luzes piscando…”
“Seria mais sagaz se fossem reféns usados pela polícia contra esse grupo paramilitar com os infiltrados que eles deduraram, não?”, perguntou-se Itsuki. “Por que, pelo maldito Naraka1, os Seiki criariam outro problema na cola deles?”
“Somente se forem pessoas indesejáveis, a se julgar assim”, respondeu Yezi.
“Era melhor ter largado mão daqui! Eu nunca duvidei da competência daquela instituição na corrupção, mas não em estupidez.”
Pairavam em débito com a razão. Yezi se encontrava com poucas respostas, embora algumas peças pudessem ser encontradas quando montadas lado a lado com suas semelhantes. O caminho para as pistas tinha um trajeto único, que voltava em dupla mão. O engenheiro, então, frustrado ao olhar para o relógio, se escorava preocupado, enquanto esticava suas pálpebras.
“É difícil ter tudo nas mãos ao nosso controle, nem por entre eras de meditação”, exclamou, comovido por uma tormentosa ansiedade. “Pulse o rádio. Aumentar o ruído para comunicá-lo deve fazer alguma diferença.”
“Trepidar sobre o canal da polícia nessa hora não vai rolar”, quando Yezi disse essas palavras, Itsuki então se revirou, preocupado. Ele continuou e deu sequência, até respirar fundo.
“Um erro já é suficiente para fazer um asura2 revirar o lugar! Se Mikami bem quisesse, ele estaria de serviço um dia inteiro sem dormir, e chegava com dois guaxinins-correio.”
“Impaciência não vai ter lugar aqui! Nosso juízo não é melhor que o deles”, exclamou-lhe, brevemente irritado, até seu tom de voz diminuir gradualmente.
“Transmitir mensagens ao ar não salva ninguém se não soubermos como responder!”
“Como também velejar na sombra e se intrometer aqui”, retrucou, incisivamente.
De repente, houve um positivo em sua pesquisa. Estavam identificados os pelotões armados e suas respectivas divisões acionadas para a Operação. Bateu a mão sobre a mesa, em revolta. Então, o Doutor imediatamente se alertou. Haviam confiado em Mikami para que ele fizesse sua parte, mas por um momento, veio-lhes pouco a pouco a noção uma maior encrenca.
Itsuki voltou sua atenção para o nevoeiro que fazia a chuva, que fazia-lhe uma força insuportável para repensar sobre suas decisões sem respaldo. O asfalto brilhava conforme ditava a orquestra das luzes da cidade. Com esse vislumbre modesto, ele agarrou um bilhete anotado de alguns números que havia prendido sobre o encaixe de seu rapel. Algumas luzes brancas cruzaram caminho vindo da poça, como clarões que poderiam ter o tamanho do céu. Mas eles duravam pouco e vinham de muito perto. De início, hesitou e esticou os olhos para não desver. Porém, a compostura padeceu junto de tons azulados, fortes tais quais luzes em LED.
“Yezi…”, agarrou o rádio, até que suas mãos se firmassem contra seu medo, “a água está piscando.”
As entradas a rádio foram dispostas sem vagar demais. Quem dera a ele que houvesse um ruído que confirmasse indesejosa interferência em meio à corrida. Sua pressa veio na companhia de um aviso inusitado e logo somente se deparou com canais vazios, sem comunicação, merecedoras de atenção e forte suspeita. Mesmo assim, pensou que houvesse a instrução de silêncio de rádio. Quem poderia desobedecê-lo? Aqueles que não ouviram a ordem. Seria um indicativo forte de que nem todos os policiais estavam cientes da ordem dada, ou que, na verdade, alguns oficiais não ouviram a ordem. Foi nesse instante que o som estático do rádio foi interrompido por subidas do ruído. Teve uma realização terrível, na qual prevaleceu a detestável ignorância. Yezi se espantou, e derrubou violentamente o microfone.
“Puta merda. Ele está fora! Sempre esteve!”, exclamou.
“Como pode esse miserável pegar folga sem aviso?!”, perguntou Itsuki.
“Folga? É o que nós mais precisamos, porque já estou me virando louco: o turno da noite já acabou, terminaram o serviço mais cedo. Estão todos na operação”, disse Yezi.
“Ele nunca trabalhou a noite, Yezi!”, insistiu.
“Quando é para queimar os crimes por trás dos panos, você faz até uma festa.”
“Viraram bode expiatório?!”
“Se tudo pega fogo, gasolina vai ser só reforço do que já aconteceu. Ninguém vai saber.”
“É uma queima de arquivos,” murmurou pesadamente, “maldito seja. Como ele atrai problema como se fosse rosa para enxame?!”
“Alguém há de ser corajoso para isso; de dizer ao invés de obedecer, ou esquecer algo no escritório. Com duas vezes se perguntando, você compreende o que basta”, exclamou Yezi, que então pressionou um botão em seu teclado, fazendo um bipe suave. De imediato, o celular de Itsuki apitou três vezes em sequência, num processo de triangulação. Três pontos diferentes da cidade, todos apontados para ele, triangulados.
“Esse sinal poderá expô-lo, mas será seu guardião se não houver impulso. Que nenhuma força lhe faça mal no coração, mas apenas o fortaleça, Itsuki”, o Doutor havia mudado seu procedimento, parecia traído, mas ao mesmo tempo culpado pelo cinismo de duvidar da malícia humana. Às vezes, ela se antecipava rápido demais, e ainda assim, ele não conseguia vê-la.
“Não podemos deixar que asuras se acumulem contra os mortos e joguem com os não-dharmáticos. Temo que nos tenham desafiado diretamente. Se for preciso voltar, faremos isso sem hesitação, entendido?”
“Se eles não os conhecerem primeiro…”, respondeu incertamente. “Está entendido, Yezi. Farei meu melhor, o mais rápido possível.”
Todas as dúvidas de Itsuki se converteram em alívio e angústia, pois ele havia considerado deixar a Delegacia, crendo que fosse um blefe. O contraterrorismo da polícia escondia segredos que ele não queria testemunhar por si, e seus sentimentos eram mistos; uma parte dele queria fazer o possível para salvá-los, mas a outra duvidava das decisões das forças de segurança. Para uni-las, a decepção o consumiu, até se transformar em força de vontade, tão difícil de ser controlada, mas ressentida pela disciplina.
O senso de detetive dele também dizia que, se de fato era Mikami capturado ali, então a polícia havia feito uma armadilha, e uma ameaça a eles. Seus questionamentos foram bem colocados, mas os maus hábitos do policial os colocaram numa situação de muita preocupação. Itsuki e Yezi não souberam que ele havia mudado de turno, e não puderam se antecipar. No entanto, não era tempo de pensar.
“Daqui não passa mais nada. Será depressa, mediante a assalto ao último andar”, descreveu-lhe, para garantir a plenitude da informação que Yezi receberia, que lhe cumprimentou com muitas solenidades, mesmo que estivesse atônito.
“Boa sorte, Mestre Oyakawa. Lembre-se da misericórdia de seu sobrenome: nós dependemos disso. Câmbio, desligo. Retornarei em vinte minutos”, então, desligou sua comunicação temporariamente
Itsuki de súbito deu um pulo para trás e começou a descer na direção da janela, puxando a corda lentamente para que ela controlasse sua velocidade de descida e o mantivesse em segurança. Assim que chegou na janela, ele viu um corredor escuro e vazio. Então, empunhou, conforme o engenho da estratégia, um martelo metálico de ponta fina. Equilibrou-se com os pés sobre a beirada da janela, dobrando os joelhos para manter-se estável. Olhou para a rua; ela estava vazia, úmida e cheirando a orvalho. Ao abaixar seu olhar em direção ao pátio da delegacia, estranhou.
“Quatro viaturas em fila com os capôs abertos: não era hora para mandá-los a oficina”, suspeitou alguma relação com o caso, acompanhado de um sobreaviso. No mais, ocupou-se a fotografá-las à altura ao deparar-se com a exótica correção a céu pleno. Logo então, ele pressionou a ponta do martelo sobre o vidro, e assim que o forçou, quebrou-se em várias partes, num toque apenas, ao som de um vaso de porcelana se despedaçando eternamente.
Sem demora, esticou suas mãos sobre o apoio da janela, e empurrou seu corpo para dentro do prédio, caindo com os dois pés a frente. Puxou de volta sua corda extra, usou a fivela dela para desatar todo o resto do sistema e assim recuperou todo o rolo. Com a mochila ao chão, ele se posicionou ao centro do corredor e olhou para os dois lados. Foi somente para garantir que estava sozinho, embora tivesse tido um tanto de certeza antes da invasão
“Corredor vazio em bandeira vermelha. Ponto de referência marcado”, informou Itsuki. Encarando novamente os dois lados, respirou fundo. Estava em paz, embora quisesse se esconder num lugar em que não houvesse reparo das dissimuladas luzes a cobrir as partes demais do grande xadrez de asfalto.
Quando abriu a sua mochila, adiantou-se para senti-la com todos os seus detalhes, pois, a costume do conto, era desenhada com perfeição e atenção minuciosa, prazerosos para quem o tocasse, mas sobretudo lembranças de agonia ao jovem. Um porco vestido sob a heráldica da antiga elite heroica, que havia morrido duas vezes, uma em vida, no fim do período Edo, e outra na sepultura, pelos que a esqueceram. Logo que o pôs sobre o rosto, ele se sentiu mais vivo, tateando suas mãos, e depois as paredes.
Fedia muito, como prenúncio do horrível, do terror sibilante. Para o faro de um suíno que conhecia o dia de seu abate, reparou-se entre o vau da liberdade, e o escuro a cruzar seu desígnio. Ele assumia a responsabilidade de controlar um corpo de uma força que nenhum outro homem integraria a si senão pelo poder e pela riqueza. Sendo um comprometimento de maior grau, a vocação exigia que cada parte de sua vida refletisse seu tão desgastante lavor; ser autêntico, pois, é como diamante escondido no oceano da exaustão, à espera de uma correnteza, e consciência que o recupere. Havendo-a em mãos, não só se consegue perceber que o trabalho liberta, como também enxergar a ponta de uma bússola, que ruma por nenhum outro caminho senão o norte.
“O mundo, de fato, não conhece a si mesmo”, disse. Aquelas palavras nasciam de um desejo próprio, Ele enxergava as próprias mãos, os pés, e as armas, como se vivesse dentro de uma grande apresentação. Logo em seguida, ele estendeu a própria capa e puxou a corda da sua bainha, além das botas. Seus gestos eram claros, ao olhar para o vidro perante uma face de louvável alegria: radiante como o sorriso à maneira de um kabuki3 no fulgor de uma vindoura apresentação. “Na verdade, digo que ele jamais se viu por dentro e sequer chegou a ver a raiz do sofrimento carnal, menos ainda sonhar com o topo sagrado de uma vida plena. De repente, agora nos vemos diante daqueles que creem que arranjaram um caminho contra o sofrimento. Será que grilhões de ouro se soltam mais que os comuns?”
Assim, ele ergueu uma das mãos, abrindo a palma sem que seus dedos se atrapalhassem. Depois, aplicou dela uma suave força para fazer dela um pano translúcido que caísse sobre os dedos.
Quando os puxou, criou deles uma sombra mais intermitente, juntamente do pano, e os encaixou sobre os pés e mãos, de maneira que estivessem firmes, como uma verdade. Depois, abriu os olhos brancos, desapontados, fitando as luzes que piscavam disparadamente no horizonte da cidade, que os faziam levemente se retorcer.
“O que está havendo com os mortais?!”, caminhou lentamente, fazendo as sombras se expandirem sobre seu arredor. “Como ousariam ainda fazer tudo isso, se nada do poder detêm, e nada da salvação conhecem?”
“Parece que todos eles, sejam eles príncipes ou reis, sonham trajar-se numa fantasia de dor para trocá-la em épocas, como uma mariposa faz toda vez com sua pele. Que estranho é provocar ao homem um desejo insidioso e insultante de se prender ao mundo! Quem os convenceu de que são mariposas?”
Encarnou-se na voz de seu consciente interior, de sua vontade mais sagrada. Era sua nova carne, imbuída de elegância e da nobreza tão requerida no tempo passado em todas as aparências, principalmente na voz.
“Está bom, cerrou os punhos, concentrando os olhos diante do espelho da noite, com um sorriso espantado oculto em meio às pupilas mortas na candidez de um indomável espírito, karmático4 em senciência e ato. A morbidez o preenchia, a fazê-lo quase esquecer de quaisquer amores que se lembre haver sentido no distante passado de sua vida.
Assim, olhou à frente, fazendo com que o olhar daquela máscara se misturasse ao seu, e brilhou as pupilas, caminhando pelo corredor. Itsuki mantinha sua compostura, esforçando os olhos para que o véu de um guerreiro não pesasse demais sobre si. A vontade deveria ser esculpida, como também predisposição, de forma que a criatividade não exceda ao devaneio. Apesar da exaustão de fazê-lo, sua criação o havia permitido nutrir viva sua humanidade por trás dos olhos brancos.
Retornando ao caminho da missão, imediatamente abaixou-se com todo o tronco e se deslizou sobre o chão para ser mais ágil e silencioso, embora a pressa não quisesse lhe permiti-lo. Quando enfim dobrou os joelhos, ele havia chegado ao final da parede, diante de um outro corredor.
Ao espiar sobre a fresta, observou que as escadas estavam protegidas, com uma dupla de homens armados a rifles. Havia uma porta corta-fogo da qual se havia visão plena da grande encruzilhada que levava ao restante do andar através de uma grande diagonal de escritórios. Todas as saídas haviam sido ocupadas, sem muita possibilidade para alternativas.
Para ocupar um prédio daquela altura e fazer uma defesa dele, cada vértebra da coluna daquele edifício não poderia estar mais bem armada. Seus músculos, então, haviam-se endurecido, frente a uma decisão tomada. Assim, de sua cintura, puxou-lhe a bainha de sua adaga com a mão invertida e depois empunhou a guarda até que lentamente, ela escapasse da lâmina, e não o oposto.
Pondo o gume oposto a seu polegar, ele virou-a cautelosamente para mais perto de seu antebraço, para protegê-lo, enquanto sua outra mão se apoiava sobre seu cinto, com a palma virada, e os dedos firmes. Dessa maneira, ele inspirou fundo, e com o bater do vento sobre o prédio, disse, sem perder o tom dos uivos frios daquele tempo de ventania.
“Até que a chuva acorde os sonolentos, ela deve bater gelada e dolorosa sobre a cabeça sem parar,” disse, pouco ciente do quão a ignorância é uma riqueza estimada, como o menor ouro a ser encontrado no garimpo. “É assim que deve ser feito.”
- Do Sânscrito नरक, é o Reino dos Desejos, podendo ser traduzido como inferno, pois lá habitam criaturas e demônios que provocam sofrimentos naqueles que reencarnam nesse plano.[↩]
- Do Sânscrito असुर, são um termo-geral para identificar criaturas e demônios semidivinos, titãs, por assim dizer, que habitam o Reino dos Desejos, o Naraka, e as profundezas do mundo em decorrência de sua natureza maligna. Asuras, em geral, se opõem aos iluminados, os devas, mas a definição de sua natureza é muito debatida, principalmente porque espíritos nativos ao Japão, por exemplo, podem adentrar essa categoria a depender de seu comportamento, havendo discordância nessa definição.[↩]
- É um gênero do teatro japonês famoso durante o período Edo, no século 17, conhecido pelo seu drama estilizado, as maquiagens intensas e, nessa comparação, com as máscaras decoradas em cores vibrantes e pitorescas.[↩]
- Nesse sentido, tudo o que é karmático é aquilo que demonstra uma reação, uma incongruência em relação ao dharma, podendo ela ser controlada, como alguns feiticeiros fazem, ou ser completamente imprevisível e nada desejável.[↩]
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