Capítulo 14: Discussão
O jantar se iniciava antes do sol se pôr, como um bom costume; diziam que mais saudável para o próprio corpo não se acostumar com a digestão a essa hora da noite, e também para não interromper o sono. Finalmente, por terem chegado cedo em casa — com vários dias de antecedência — um homem levemente grisalho também comia, usava óculos redondos e tinha um semblante bem fechado e feliz.
Ao seu lado, estavam duas crianças, que estavam presas em seus braços, pelas cadeiras ao seu lado, enquanto segurava no seu braço duas miniaturas de caças. Mesmo parecendo uma labuta grande, ele sorria como nunca, e nem se cansava para aguentar o esforço de cada uma em sair de lá. Por um lado, a mãe chegava com cada vasilhame e aperitivo, e se assentou ao lado de Itsuki. O pai finalmente os soltou, mas o impulso das crianças não conseguiu voltar, pois ele foi até a estante para colocar os aviões, já que ele queria sobretudo paz ao comer, e não o caos da teimosia e da pirraça.
Para aquele dia, veio a plenitude de uma vida tranquila próxima da natureza, que de fato era um presente para todos os que viviam ali. Itsuki, desde o princípio, foi cotado para herdar a casa e a linhagem de sua mãe, enquanto seus irmãos não tinham tanto amor por aquela vida e sonhavam em viver pelos ares, sobrevoando o mundo.
Era um misto de gentileza com antiguidade, lado a lado, dando confiança até para a mãe, suada por trabalhar mais do que realmente imaginava, e não hesitava para fazer mais, se pudesse. Os hábitos de casa de ora em ora se dividiam entre eles, com cada um lidando com o que foi ensinado.
A verdade era que algumas pessoas da comunidade, vizinhos que moravam pela estrada, também vinham de vez em quando para qualquer ocasião, ou apenas por visita; a dona da casa mantinha-se atenta com suas relações, conservando boas amizades por todo o lado. Também no porão foram colocadas algumas relíquias, inclusive, que ela própria organizou e guardou para não se empoeirar com o tempo pelo toque dos curiosos.
Havia um rifle de serviço, lâminas amoladas, e a cada semana, ela dava uma olhadinha para ver se a maldita poeira não chegava lá. Nas palavras dela, essas coisas também se tratavam de “furto”, pois foram retiradas do antigo Exército, mas não passam mais de velharia que seu antigo dono usou por suas andanças.
“Senhora Haruka, achamos alguns papéis do senhor Mihoshi ao chão…”, apareceram dois homens pequenos que vestiam chapéu de palha, com um deles se pronunciando mais alto.
“Algo lá no Tibete o deixou muito irresponsável”, disse, virando-se risonha até ele, enquanto cerrava o olhar de consideração pelo garoto, que entortava o semblante, “bagunceiro, ele é.”
“Na bagunça, se encontram muitas coisas”, disse, pondo-lhe comida até a boca. “Eu arrumo depois.”
“Para o pouco que seu avô organizava, isso seria um nojo. É uma bagunça profissional!”, Haruka fechou os olhos com força na direção de Takumi, que comia rápido demais. Ameaçou-lhe jogar um calçado antes que ele se arrependesse.
“Bem, são muitas as coisas que me inspiro nele”, disse o jovem, arregalando os olhos ao vê-la tão movida pela malícia, e imediatamente negou sua reação tão movida contra seu pai. “Ah, melhor não, mãe! Deixe-o em paz. Se ele não tem sossego numa moto de 150 cilindradas, imagine em uma forte.”
“Ai, meu filho, agora está brincando com o perigo! Isso é sério, minha honra está em jogo aqui!”, Takumi levantou a voz, em desafio.
“Parem de falar enquanto comem”, a senhora da casa deu um soco suave sobre a mesa, e viu até seus filhos. Ela riu, e então sorriu, quase como se tivesse um plano para lhes dar um jeito.
“Está bem! Não se preocupem, senhores Duong. Podem deixar na mesa que eu ainda estou para usar”, acalmou-os Itsuki. Quando disse essas palavras, os serviçais respeitaram sua vontade com um tom risonho e despreparado. Logo em seguida, ele abriu seu diário para colocar toda a papelada que era devida de estar em uma de suas páginas.
“Paz e muita saúde ao senhor, Príncipe Oyakawa”, curvou-se sorridente, e então partiu na direção do interior da casa.
Mais ainda se julga assim por conta do livro às mãos de Itsuki, assinado com o nome Oyakawa Mihoshi, o homem de quem tanto se falava. Ele havia escrito incontáveis nomes organizados por local e país. Havia bandeiras, alguns brasões da Malásia, Manchúria, Indochina, Indonésia, Filipinas, mas principalmente, de cantões da China, em pelo menos centenas registradas. Ali a família havia anotadas as impressões de seu ascendente, e remarcava o quão suados era seu trabalho e a mortandade que ele provocou como preço a ser pago. Os nomes pareciam prisioneiros civis e de guerra que foram liberados por ele durante seus onze anos fora de casa.
Esse livreto era um tesouro de estima muito grande, mas uma evidência fatal para a traição de Mihoshi. Ela nunca foi conhecida, porque, como Haruka relatou, ele nunca desejou de forma alguma a fama de libertador, em especial vindo daqueles que eram novos visitantes. Um herói para mais de centenas e talvez milhares de pessoas, proibido de ser anunciado ao mundo. Mesmo assim, para seus contemporâneos, não se assemelhava a nada além de um traidor, e um que viveria num estado derrotado, persistente ainda na sua herança antiga; e dessa persistência nasceria o desejo de lhe impor uma punição.
Enfim, toda essa história leva até o presente dia, o trabalho havia dado frutos, dos mais valiosos a se provar. Antes mesmo desse passado, muito zelou a família de manter os costumes e a união dos familiares; e deu certo. Tudo isso fez parte do agradecimento dos assentados à mesa.
Mas enquanto esses pensamentos sobrevoavam as paredes, todos começaram a comer em paz, mas já estava quase sendo dado por inevitável que as crianças fariam o pior possível para ter suas armas de volta, presas pela altura, nem que elas tivessem de voar. Uma delas disse que iria ao banheiro, andando de leve pelo cômodo até lá, mas antes que ele realmente entrasse, o garoto, sagaz, tentou pegar um banco para subir pela estante, mas o pai, querendo mais rir do que chorar com a falta de vergonha, apenas cruzou os braços e o olhou, rindo.
“Só depois de comer”, ordenou o homem, com um tom de riso. Sua voz não falhou, mesmo não sendo nada exótica aos meninos.. Ele tinha óculos, uma aparência bem cuidada, mas séria, “se quiser fazer bagunça, eu consigo fazer uma com o controle do simulador e fazê-lo sumir se você continuar!”
“Vai querer isso mesmo?!”
“Hmmmpf, tá bom!”, resmungou o pequeno Ito, com o rosto baixo, voltando para a cadeira. Ele já tinha tido a vivência de não poder usar o computador de seu pai pela pressa que ele tinha para ter a sua vez de jogar no Simulador de Voo. Yoshihara, por um lado, sendo o filho do meio, já estava estudando, tendo em mãos apostilas de física e matemática, além de introdução à Aeronáutica, todos pertenceram antigamente a seu pai. Ele estava prestes a comer enquanto deixava seus livros sobre o joelho, porém, seu pai pegou os livros e os pôs no chão.
“Comer enquanto lê faz mal para a digestão, garoto”, no entanto, sem dar os instantes para recuperar a paciência, ele não os acalentou.
“Vocês dois não sabem descansar por acaso? Se for para comer, converse com a gente. Isso é tempo sagrado!”, repreendeu o pai. Haruka, por um lado, cerrava os olhos, até acalmar seu marido.
“Sim, vocês ficam o dia inteiro nisso aí. Dá para esperar!”
“Mãe, eu não sei se a senhora sabe, mas eu estou estudando! Não posso perder um dia com isso! Eu vou ter exames depois das férias!”, o filho do meio, conhecido como Yoshihara, respondeu, com elegância em seu tom, estava se contorcendo em indignação.
“Yoshi, fale com mais simplicidade porque assim o seu pai não entende nada. Quando você parar de se preocupar com isso, e descansar a cabeça do tempo que você fica estudando, talvez fique melhor!”, respondeu, virando-se depois para o pequeno Ito, “e você já tá ficando grandinho para aprender a esperar, Ito. Que desespero em jogar, depois come mal e desperdiça comida por causa dessa vontade de voltar!”
“Alô?! Você está me ouvindo? Ah, por tudo o que é bom, ele está ficando surdo também”, outra vez, a mãe levantou a voz. O menino não deu ouvidos, estava focado nos seus próprios pés, até ela puxar suas costas e levantar sua postura. Estava desamparada, coçando os olhos.
“Mas você sempre deixa o Suki e o Yoshi estudarem no tempo que eles gostam e reclama que eles não brincam. Eu brinco, mamãe”, reclamou.
“O que tem a ver uma coisa com a outro, filho? É para equilibrar, você tem que estudar mais, eles têm que brincar mais. Poxa, quer que eu desenhe?”, resmungou. Ito não respondeu, e então a mãe teve o tempo suficiente para deixá-los à vontade e comer. Superando os esporros que deu, Haruka então juntou suas mãos e permaneceu serena, transitando para plena calmaria.
“Enfim, agora, prestem atenção, bobos! Nós precisamos ser muito gratos pela comida que estamos tendo, pois existem muitas pessoas que prezam pela nossa vida e que lutam para nos fazer estar aqui, e não damos a devida gratidão. Deem graças a todos os que passaram, em especial aos que essa casa protegeu. Tratem essa residência com o respeito que ela merece, porque quem vai cuidar dela será o Itsuki”, ela se virou até ele, dando uma cotovelada em seu ombro. Itsuki retruca com outra, sorrindo.
“Você não precisa falar disso o tempo inteiro. Mas se eu não ficar agradecido pela sua insistência, sairei mal…”, Itsuki fechou os olhos, com as bochechas avermelhadas.
“Que coisa mais linda. Que bom saber disso, porque se eu puder, eu falo ainda mais!”, ela devolveu mais outra cotovelada, mais forte ainda, e ele sentiu a pancada em seu ombro. Estava feliz, sem ressentimento, pois não havia rugas ou traços de escuridão que viessem sobre seu rosto.
“A propósito, Itsuki, o Yezi e eu queríamos pegar a sua Ninja para ir no circuito. Vai ser no de off-road para motocross”, disse, risonho, colocando a memória no topo da cabeça. “
“Você precisa de bons truques lá na cidade.”
“Eu duvido que o senhor ainda tenha algo a ensinar, eu já ganhei tudo”, respondeu o jovem, aceitando o desafio. “Conta comigo.”
“Quem sabe faz ao vivo, filho! Abaixe os ânimos. Um dia, pelo tanto que promete, quero ver dar grau numa rodovia a pelo menos duzentos por hora. Vai ter que ser melhor do que eu fazia quando eu era garoto”, desafiou-lhe, porém foi imediatamente interrompido.
“Takumi, quer parar de colocar ideia errada no Itsuki, por favor?!”, gritou-lhe. “Ele é um piloto responsável, eu só o deixei ter uma motocicleta porque é o Han que está tomando conta dele lá em Tóquio. No dia que ele fizer isso, eu acabo com os dois numa tacada!”
Assim, o jantar começou bem, mesmo com esses comentários e essa ardência que, no fim das contas, constituía o temperamento congênito da família Oyakawa. A residência deles valia o apreço todo de sua mãe, e até o amor de seu próprio filho pela paz que ela tinha, pelo marco histórico que se significou perante aos monges, que viram naquele lugar um santuário para se estar.
Por fim, o silêncio se manteve, mais pelo costume de não falar numa refeição, ainda que pouco antes tivessem aumentado a voz para que seus filhos mais jovens ouvissem a lição, pois muito eles falavam com os olhares tranquilos; um lema que Mihoshi inscreveu na porta de casa tinha o seguinte dizer: “O silêncio ensurdece os covardes para que a voz, quando modesta, propague a paz.”
Itsuki, de imediato, contou sobre as missões que fazia, sem faltar-lhe honestidade. Tratando-se de uma união preciosa e meticulosa, principalmente em prol de sua vocação, também seriam cuidadosas as palavras que vinham da boca de um Oyakawa; pois até os que não pressentiam e se antecipavam com a sabedoria dhármica asseguravam-se cientes de como a natureza funciona.
“Alguns já estão me dizendo que meus braços ficarão manchados pelo tanto que deslizo no asfalto e levo porrada”, riu o jovem.
“Isso é perigoso para caramba, filho. Nós passamos dias preocupados com seu bem-estar: dessa maneira nós ficamos assustados com essa brincadeira. Só não dou cascudo porque eu cairia duro no chão por sua causa. Ficou velho cedo.”
“Cessa esse drama, poxa! É segundo a segundo como se fosse uma corrida”, respondeu, pondo os cotovelos sobre a mesa para se aproximar. “Vai saber o porquê. Eu tenho que fazer o traçado de cada curva a mais de 140km/h com apenas uma mão no guidão. Daria para ser mais rápido com as duas e você ainda reclama.”
“Olha lá, o senhor prudente falando que é cuidadoso! Acreditarei com certeza”, gargalhou, “mas se der problema, eu já adianto: nunca ensinei a pilotar moto assim. Se a escola me colocar culpa, eu chamo um advogado!”
“Ah, é claro. Levar um tombo de uma árvore com certeza é melhor, pai. Sai para lá com essas besteiras também!”
“Que seja assim, então. Depois se chorar por perder o braço, não venha reclamar até mim!”, respondeu, coçando a cabeça, para que no fim não houvesse como seguir mais em frente. Mas confesso que queria saber a feitiçaria que fazem para sua motocicleta demorar tanto para trocar de óleo. A grana que me pouparia seria boa!”

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