Capítulo 16: A Libertação
Sempre há de chegar a hora da tempestade retornar de volta a seu antigo lugar depois da calmaria. De igual modo acontece com as coisas que retornam a seu devido lugar, passivamente. Perante ao jovem, ergueu-se o desafio de infiltrar-se em um prédio de grandes proporções.
Mas não foi rápido para se dispôr com estratégia, sem faltar no preparo de seu movimento com os pés e mãos. Todo instante parecia cutucar mais perto de um machucado, embora não se saiba se seria para curá-lo, ou para piorá-lo, ou se haveria de arcar com um preço alto para ter sucesso.
O Duque preparou-se, compondo-se através das costas e mãos. Assim que manteve a adaga próxima ao peito, encostando-lhe o polegar, agarrou com sua mão livre um dardo shuriken entre o dedo anelar e o do meio. Contudo, aquele dardo tinha, no lugar de sua lâmina distendida sobre seu tronco, uma agulha mais grossa acoplada a uma cápsula de uma substância sedativa, preparada com uma receita imanente e controlada entre os elementos madeira e fogo, todas imbuídas através do corte de folhas nativas.
Quando deu dois passos escorados sobre a parede para trás, ajoelhou-se, para desenhar mentalmente sua trajetória. Conduziu o dharma a não perder sua força até, suavemente, impregná-los de suas ilusões. Toda percepção é uma alteração do fluxo, da attā, o não-ser governante sobre a realidade, que jamais será essencial, sendo um princípio da inata progressão da realidade.
Afinal, cada instante desse fluxo é temporário, como um rio que muda eternamente. Os sentidos de um homem mortal estão acorrentados ao seu sentir, ouvir e ver, e cada um deles induz ao outro a sua autogeração. Quando um falha, a corrente puxará os outros para o desentendimento e para a ilusão.
A porta, então, pariu de seu colo um rosto, visível tanto para o seu criador, quanto para as mentes mortais, súditos e servos das sensações. Tratava-se de uma ilusão imperfeita, um distúrbio do que já existe. A mais firme e autônoma mente é a mais dotada do poder de se duvidar de todo produto realidade, seja ele originário, ou não. Toda perturbação inevitavelmente modifica seu redor, invocando todos os seres pensantes próximos a ela a sentirem-na, assim como a ilusão da porta convida os seus próprios guardas, inconscientes do que ocorria.
Um distúrbio jamais poderá ser destrutivo ou removedor, menos ainda construtivo ou adicionador. São como correntes de ar que descem sobre um prédio, por exemplo; elas podem se separar e de repente se encontrar, mas naturalmente, quando elas se opõem, elas também se ordenam, trazendo, ao caos inicial a ordem, num ciclo dialético, como se fossem duas partes de uma coisa só.
Mesmo com tantas cerimônias e solenidades, é apenas com muito esforço que se consegue compreender para usar tão pouco, porque tudo o que é recriado apenas sobrepõe o já existente. Uma mente transcendida, autêntica e compreendida como a de um monge não teme ou se afugenta no irreal; ao saberem o que é real ou não, de nada adianta usar essa habilidade.
São os segundos que valem, e os instantes que podem salvar vidas. Cada um deles não poderia ser esquecido e deixado à parte, pois o tempo havia de correr. Não há razão para abusar dessa técnica para ele, caso ele queira manter-se seguro. Sua criatividade, o bem mais valioso de um explorador de mundos, é frágil perante ao sofrimento e se inibe caso ela seja enfraquecida pelas sensações.
É por isso, também, que a bocarra da criatura se abriu tão alto e lambeu a cor vermelha da porta, que agora havia se tornado rubro e escuro como sangue humano, para que sua essência não falecesse depressa pela descrença. Ela tinha que ser cuidadosa, meticulosa, para assustar naqueles segundos cruciais, e não perder mais tempo. A forma animal começou a pingar sangue sobre o chão, coagulando e queimando logo em seguida ao encostar o concreto. Cheirava a fogo sanguíneo, mas como um perfume de boa fragrância, uma essência de alta ponta.
“Que goteira é essa?”, afrontou-se para encontrar a origem do barulho, até seu esforço tornar-se nauseante. Embora chovesse tanto num prédio todo selado, os pingos eram mais espalhafatosos, caindo frente à porta corta-fogo, com sua cor e aparências costumeiras à primeira vista. No entanto, eram avermelhados, e com um cheiro particularmente indiscernível, de modo que parecesse chuva, mas fragrante, um pouco, de sangue. Em verdade, são poucos detentores de um olfato antecipado para perceber que era sangue, porque os sentidos físicos, apesar de independentes, se atrelam às expectativas da mente.
“Essa aqui?”, respondeu-lhe, desacreditado. O cheiro atacou suas narinas antes que se recusasse a virar. De repente, a ferida da porta parecia curada, como se tivesse apenas uma cicatriz do animal que o empossou. A menos, claro, por um dos olhos, que se mantinha aberto ao se apoderar da escuridão.
“É claro que é essa! Mas, está tão perto assim? Parecia que estava mais longe. Nunca passou na minha cabeça que uma delegacia seria tão porca”, olhou o teto, procurando uma fenda ou uma rachadura. Os sons de uma ilusão eram o convite para que ela crescesse tanto no tato quanto no olfato.
Tinha feições mais fechadas, distintas de seu companheiro. Além da garganta mais distendida, que lhe dava uma voz mais soberana, seu sotaque ao falar japonês lhe fazia questão de dizer que não era dali. Na braçadeira, estava um símbolo dos Gimutai, escrito em cirílico. Embora tenha feito a mais exigente vistoria, não viu nada. Agachou-se para ver melhor. Viu, então, o outro pôr a mão sobre o nariz, apertando as narinas. Havia uma vantagem ao se manipular as sensações e entendê-las através da experiência: não são percepções concretas.
“A minha alergia ataca quando fazemos ‘plantão.’ Meu nariz está sangrando. Se não é o ar seco, é o estresse”, disse. Quando mencionou sobre o aparente odor de sangue, o outro guarda replicou a mesma sensação, virando os olhos, e depois o rosto para os cantos da sala.
“Na verdade, eu estou sentindo cheiro de sangue também”, respondeu. De imediato, olhou-se para ver se não havia algum corte. Suas pupilas cresciam rapidamente. Quando seu companheiro pôs as mãos sobre o nariz, não se sujou de sangue, até soar as duas narinas, de um lado, depois de outro, e mais uma vez nada. Não haviam sequer olhado para trás, no convencimento do dever de patrulha retido pelos dois.
“Poxa! Claro que não é seu nariz, senhor hemorrágico! Tem mais alguém conosco nesse andar?”, perguntou-lhe.
“Ninguém informou nada a nós”, disse, “a não ser claro, que eles acionaram o protocolo vermelho neste instante. Não houve ordem dada!”
“Então que cheiro é esse?”, questionou-lhe, e logo se escorou na parede, apoiando as mãos sobre seu rifle. “Tenho absolutamente nada por certo, mas que porcaria é essa? O que me estranha é que não vi nenhum cerco policial aqui. Vai acionar o protocolo para quê? Há vezes que não vejo razão em manter policiais como reféns, não são como soldados.”
“Enfim, está chovendo muito, ferro molhado cheira a sangue como o contrário também. Mas se quiser fazer vista grossa, não será comigo”, novamente, não se conformou com aquela resposta, cerrando o olhar em busca de uma explicação.
O veterano se dispôs sobre a sala, vistoriando o corredor diagonal brevemente, sem que deixasse passar algum rastro, embora não tivesse tempo para limpá-lo com plena segurança. Também inspecionou seu colega de cima para baixo, vendo-o melhor para que se esclarecesse. Depois, por seu lado, ele se enxergava e mantinha as sobrancelhas fechadas, como se procurasse por algo atrás da escuridão. Hesitantemente, também ligou a lanterna, espreitando-se atrás do veterano, para acompanhar o ritmo tão caótico da situação. Depois, viu-o escapar de sua visão depois que não encontrou nada, parecendo-lhe uma corda escapando lentamente depois de amarrada, mais do que era devido.
“É melhor limpar esse andar e checar as salas, não há porque seguir as mesmas ordens o tempo inteiro”, o veterano ordenou-lhe em seguida. Sem delongar, apressou-se para arrumar sua postura, visando garantir seus arredores. Ligou a lanterna acoplada no cano de seu rifle. Ajoelhou uma das pernas, apoiou sobre a coxa seu braço e apontou o rifle para suas laterais que se davam diante de um corredor extenso. Seu colega também o fez, mas de forma hesitante, mais cautelosa. Enquanto o veterano se via contra o tempo, ele apenas se entortava para confirmar-lhe algo que julgava dentro de si.
“Dá para fazer uma varredura boa indo por ali e vistoriar toda a sala. Vamos nos separar”, o guarda apontou para o fim de um outro corredor, praticamente apagado sob o breu, o mesmo que cruzava o caminho de frente às janelas. O mais assustador de se ver era a certeza daquele homem ao dizê-lo. Virava os olhos, procurando na escuridão uma presença mais certeira.
“Você vai separar meu pinto, isso sim! Não há janela que leve àquele corredor, está escuro. De forma alguma, não: você ficará bem perto de mim e fará tudo o que eu mandar independente do que for. Uma vez que tocaram nos servos inferno, deverão aturá-los da maneira que são, e para começar, é melhor que abaixe a cabeça para essa politicagem e aprenda a sobreviver”, exigiu-lhe com bruta força na voz.
“Eu acharia que você é suicida, mas você só me parece burro. Bem, as aulas são minhas! Venha logo!”
“Sua retaguarda é minha”, falhou seu tom, como se fraquejasse os músculos em decepção. Então os dois foram em direção ao corredor. Depois, mexeu no comunicador que estava sobre a traseira da cintura e apenas apertou um botão, silenciosamente.
Um som de uma coisa viva caindo sobre o chão ensurdeceu a todos. Antes que caminhassem, os dois se paralisaram, com os olhos atentos, mas escarnecidos pela realidade. O veterano manteve o olhar sobre o corredor, e o outro tivera mais atenção com o teto, vendo uma escada de mão que dava para a cobertura do prédio. Olhava de relance, sempre atencioso, mas insípido. Seu corpo foi abraçado por um alívio, seja qual fosse.
Do seu lado oposto, o veterano vinha a aproximar-se lentamente do canto do corredor horizontal, indo em direção às janelas e à luz da cidade, opostas à estação. Um lugar aberto assim era perigoso, mas também uma brecha fácil, e de imediato abriu sua postura para mirar nos dois lados da passagem. Estava limpa, sem inimigos, embora de longe se vissem alguns cacos de vidro, brilhantes à distância. Naquele momento, sua suspeita aumentou ainda mais, muito mais do que a confiança. Então, virou-se para seu colega, para averiguar o que ele fazia.
“Há uma janela quebrada no corredor. Atividade suspeita seríssima, a polícia deve estar entrando agora. Eles estão aqui! No teto e no andar, precisamos recuar”, alertou-lhe. No entanto, assim que mirou sobre o chão à procura da origem do barulho, o veterano pulou assustado, dando dois passos para trás. Quando iluminou melhor, o homem percebeu que haviam caído há pouco tempo o que pareciam ser tripas, sangrentas, avermelhadas, pulsando vivas, sem parar. Eram frias, cheiravam mal, além de parecerem criar bolhas a cada vez que respirava, coagulando e perdendo sangue aos poucos. Contorcera-se tanto, que mordeu os beiços de raiva.
“Aqueles perturbados, os demônios desse país! Devem estar aqui!”, exclamou. O guarda ouvira tudo com delicadeza no espírito. Sentiu-se mais à vontade. Não virou os olhos para tentar ver o que estava atrás dele, a não precisar encarar-se necessário de confirmar suas esperanças.
“O alto-escalão não quer colocá-los aqui, nem se pagassem”, disse, ainda virado de costas para o veterano. Quando o olhou, enxergou-o de frente para o corredor dianteiro, apontando o rifle para o chão, para aquela coisa. Não se comoveu. O veterano o olhava mal, mas ao disparar até aquela coisa, ele não tinha mais a opção de negar o quão real parecia ser.
Todo aquele organismo o fazia persignar-se perante sua crença e sentir um nojo de um tamanho inigualável. Para tanto, ele precisou de morder a língua para aguentar enxergar aquela visão tão desgracenta, pior que a de um cadáver. O veterano se arrepiou entre os pelos de seus braços apenas ao ouvir a chuva. De repente, pegou um crucifixo que carregava no seu bolso, particularmente decorado, e o beijou. Era tão real na aparência, porém irreal na sua consistência, de modo que alguma coisa o alimenta, afogando a mente dele na incompreensão.
“Desgraça! Senhor Deus me proteja!”, disparou-se em temor, travando suas pernas. “Não fico mais aqui! Desce logo, liga para esse rádio. Esses filhotes de satanás estão na mão da polícia!”, gritou-lhe com enorme incisividade, era o comando mais importante a ser seguido. Apontou a lanterna para ele, e depois tornou-se em direção à porta.
“Eles fariam como nós”, respondeu. Depois, deixou o rifle sobre as costas e puxou-lhe lentamente do coldre uma pistola silenciada. Pensava se ele falava a verdade, ou apenas nada além de uma mentira. A concorrência do mundo não teria tanta paciência com ele; era levar ou largar. Assim, apontou para frente, em direção ao veterano. As instruções foram claras e detalhistas em todas as pontas.

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