Capítulo 17: Clemência
Quando o veterano, sem ciência do que acontecia, estava para se virar, sentiu um movimento suspeito vindo daquele colega, e por alguns instantes considerou suas escolhas, ao longo de tudo o que vira. Porém, para sua sorte, uma agulha foi atirada com força sobre o pescoço de seu companheiro, como um pequeno dardo, de frente para sua goela. Fixou-se sobre o pescoço e agiu rapidamente: o homem até puxou sua arma e tentou apertar o gatilho, mas seus braços se paralisaram brutalmente e ele caiu com uma pancada forte.
Havia caído em um estado de sono, como o de uma anestesia. O veterano se cansou de ouvir essas histórias que lhe são ditas sobre sua fé, mas o tombo o provocou espanto sem demora alguma. Parecia que lhes faltou confiança dessa vez.
“Ei, que papo é esse?!, exxclamou, virando-se, ao apontar sua lanterna, viu-o caído desacordado com uma pistola sobre a mão, atirado ao chão pelas costas, e na sua frente, um dardo de metal encapsulado. Olhou para trás despretensiosamente: queria respostas, aquele grande projétil fora lançado de uma posição atrás dele, como se a própria ‘coisa’ já tivesse passado a porta por meio de sua astúcia e malícia.
De imediato, o veterano se lançou sobre o corredor diagonal se preparando para o combate. Nada viu, porém, senão a porta corta-fogo e os elevadores, que davam de frente para a sequência de janelas do andar, e as portas dos escritórios.
“Valha-me Deus! Foi uma tremenda vergonha mexer com demônios pensando em bem! Esses idiotas, entraram no meio de lunáticos!”, bradou, indignado e assustado. Jogou-se sobre o corpo do homem, pois não havia aviso para seu testemunho.
Era um inimigo bem tramado, ousado, embora fosse difícil dizer de onde vinha; no entanto, ele insistira que a polícia, a mesma que tanto indagou, realizava seu assalto por meio das ordens que já eram esperadas. Embora tivesse dito tanto sobre essa possibilidade, não se conformou com a tranquilidade deles. Menos ainda lhe foi agradável sentir a sensação de que seus companheiros não se aguçavam, quase satisfeitos. Na verdade, mais tensos quando seus colegas passavam por perto do que com o perigo.
Quando se afastou, até lentamente escaparem de sua percepção, os órgãos se desfizeram em seguida, como nada, e o cheiro ruim deles apenas desaparece, esquecida na escuridão por mais recente ser a memória. Cada vez mais ficava fora de si, pensando que uma força além fazia jus e regra sobre a missão.
“Apareça logo, criatura! Eu creio em Deus Pai, misericordioso, e em seu Filho, de morte de Cruz!”, exclamou, contrastando e explicando seu sotaque tão forte no japonês. Depois, aproximou-se do homem desacordado, e imediatamente o puxou para um canto mais aberto da sala, perto da janela, para que estivesse mais protegido. Desacoplou a lanterna de seu rifle e imediatamente retirou sua pistola do coldre. Estava pronto para arrastá-lo sobre a parede até chegar à porta.
Ao alto de toda essa tensão, desenhou aquela sala com os braços arrepiados e temerosos, insistentes de que deveria escapar de alguma forma. A comunicação era necessária, mas não quis perder sua posição diante daquele perigo, por todos os riscos que teria. Fora que ele sabia que deveria lidar com um desses ‘filhotes’ que tanto chamou em plena escuridão, e um que estava em descontrole, julgando-o como uma experiência absurda e falha de seus contratantes.
De pouco valia a pena arriscar tanto para uma vitória, pouco mesmo, se fosse para se aproveitar da falsa piedade das testemunhas do submundo, atirando-lhes as pistas para separar os homens da misericórdia divina, era melhor correr para as montanhas e ali rezar, ele pensaria. Sobretudo, não excedeu a arrogância. Tanto que é fácil deduzir porque ele escolheu apenas se atrofiar para retirar o seu colega dali, para salvá-lo da picada que lhe causou o desmaio, embora não soubesse de suas verdadeiras intenções.
Assim, iluminou com cautela o pescoço do homem e observou aquele dardo. Retirou-o de súbito do pescoço, e de repente dispôs-se entre as ideias; um demônio somente não seria, ou ainda, alguém usava aquela criatura com esse propósito.
No tempo passado, no início de sua carreira a se dizer, já se via no costume de duvidar e ser prestativo com os detalhes que cada indivíduo, inclusive os aliados, deixavam passar e cair: sempre há um abismo residido em cada pessoa. O vento sussurrava mais forte, cantando aquela vinda de uma força maior, e brutal. Quando puxou seu rádio, agarrou a lanterna com os dentes e depois o prendeu sob o cinto da calça do homem desmaiado, e apertou o botão.
“Atenção! Pelotão Dois-Zero-Dois em ataque, assalto realizado sobre a cobertura do prédio, câmbio!”, disse. Porém, quando percebeu, seu rádio não havia funcionado. Estava quase morto, prestes a mostrar nenhum sinal de vida, com seu visor corrompido.
A sala foi ocupada por uma névoa baixa sobre todo o chão. Não foi postergada de esforço algum, e não deu paz para o homem que estava solitário. O nevoeiro veio, como um gás letal. Apesar de ser o menos teimoso, era um dos mais amedrontados pela vinda da polícia; sempre pensou que sequestrar os oficiais levaria nada mais e nada menos para o uso de força letal extrema.
Prendeu sua respiração, e tampou o nariz de seu companheiro caído, na intenção de salvá-lo contra todas as adversidades. Para os demais, aquele homem tinha alguns princípios alheios àquele mundo. Uma sombra apareceu em meio a névoa, caminhando lentamente.
“Os poucos que não conhecem uma amizade são aqueles que nunca tiveram um amigo de verdade”, disse uma voz sinistra também em russo, andando lentamente sobre aquele mundo, hoje separado de toda a razão e conveniência.
“Vai atrás, filho do diabo! Eu não temo nada, nem a tua ciência! Se for necessário me matar, que o faça sobre meu corpo, mas jamais sobre minha alma! Nem este veneno será suficiente”, o veterano pensou que aquelas coisas são minimamente mortais por si.
Os braços e pernas pareciam humanos, a voz era memorável, e compreensível, como uma criação própria, não uma corrompida. Por um momento julgou: não era um demônio como os outros, um que fosse tão expressivo nas palavras, e ainda misericordioso na língua. Mas o vento desceu mais forte, arrepiando-lhe o tronco e as pernas. Os pelos de seu braço se emaranharam, erguidos ao comando da escuridão.
“Levantai-vos as mãos”, a figura desembainhou uma espada, e fez com que a névoa crescesse sobre ele. O homem caiu de súbito, como se tivesse falhado o braço. Assim que ele colapsou, feito um homem ferido nos braços, cansado, ele se agachou sobre a névoa, quase vomitando. Sua respiração estava intermitente, e sobretudo estável. Por fim, levantou as mãos, embora, oculta pelo nevoeiro, estivesse pressionando seus dedos sobre a boca das mangas de sua jaqueta, dobrando também sua palma.
Assim que se escondeu na névoa, poupar-se de um esforço exaustivo tornou-se uma alternativa; então, ele abriu os olhos com severidade após fechá-los por um longo tempo. Recusava-se a crer no que via. Quando viu parte da névoa se alterar, de súbito percebeu que ele se aproximou. A criatura então veio com uma força brutal sobre ele, impondo-lhe que pensasse sobre sua vida.
Arrastou-se para trás e levantou as mãos lentamente, com cautela. Balançou sua mão em dor, tremendo. Apesar de tudo, o veterano também estava passando pelos efeitos da idade, embora sua mente fosse afiada. A criatura se tardou demais, incapaz, porque o homem percebeu cedo, talvez demais, que os olhos delas são como os de uma aranha: viam todos os lados, porém sem a mesma atenção.
Estando colado sobre o homem desmaiado, ele se jogou para o lado, puxando-o para mais próximo da porta. Largou o próprio rádio, revelou sua pistola, fazendo-a cair escondida de sua manga, e a apanhou com duas mãos, pronto para apertar o gatilho. Mas nada apareceu, terminando apenas em uma névoa sinistra, nada diferente de uma sob as copas de uma floresta. Então, quase se esticando todo para abrir a porta, entortou seu corpo e violentamente apertou a maçaneta. A porta então se escancarou perante a uma escada transversal, descendo diagonalmente até o térreo.
Entretanto, depois de agarrar a maçaneta, percebeu-a escorregadia e quase a perdeu da mão de tanta pressa. Ele dobrou os dedos sobre ela, do mesmo modo para o gatilho, quase na pressão errada. Era o mesmo odor de sangue, dessa vez muito mais intenso do que antes; ao ponto de deixar seu próprio nariz arrebentado, ardido por aquela amargura. Quando olhou sua palma, viu-a suja, manchada em vermelho sobre a lã da luva, e de imediato ele não conseguiu acreditar; assim, no instante em que pensou sobre o impossível, o odor cessou de fragrar.
De repente, pareceu que havia apenas encostado em tinta descascada e velha de uma parede mal cuidada, como se ela tivesse passado dez anos apenas assim. Não era sangue, felizmente. Porém, ele se recordou de que era uma porta de metal: como ela poderia se descascar como tinta de parede? Dali em diante, o militar deslizou seu raciocínio mais além do que devia.
Logo depois, sem haver relutância, sua mão foi puxada brutalmente para trás, em direção à parede em que ele se arrastou com o corpo. Seu cotovelo foi arremessado para trás quase fraturando a articulação. O homem não se exigiu muito e jogou a própria lanterna sobre o chão para contra-atacar.
Agarrou de súbito aquele braço, para tentar empurrar, mas ao mudar sua postura, mais seu braço armado foi distendido. Durante esse tempo, sussurros exclamaram pesadamente, mais ainda depois que o soldado, sem mais opção, dobrou o joelho e chutou através de sua sola a coisa que o puxava para além, embora fizesse ainda mais esforço pelo antebraço, praticamente sufocando a própria mão sem sucesso algum, sendo arremessado ao chão pela chave de braço.
Depois de tanto apreço, não houve muita alternativa: sua pistola caiu sobre o chão. O tronco do homem foi largado sobre a parede, e uma ponta brilhante de uma lâmina foi apertada no limite entre violência e a piedade sobre seu pescoço. O corpo desmaiado ficou entremeado sobre as pernas do homem desarmado, pressionado violentamente sobre a parede.
“Eu vos disse para levantar as mãos”, o homem quase quebrava os dentes em silêncio, de tanta dor sentida. “Estás tão certeiro sobre as próprias crenças, que as deixaste cair, pois acreditaste, resoluto, de que teriam valor. Que infeliz engano, mortal! Quem tem maior valor é o tempo, tão precioso hoje, que a ti valerá e durará muito mais que as verdades tuas, temporárias como a própria consciência, subservientes ao próprio.”
O homem não piou. Abria a goela com força através do exagero, tossindo abruptamente enquanto segurava a própria barriga de dor. Suas mãos colapsaram. Tendo mais nada a perder, ele agiu; enquanto suas mãos estavam abaixadas, ele agarrou sua faca de combate e se virou para agarrar o braço de seu capturador. No entanto, o mascarado imobilizou sua perna e fez a cabeça dele colapsar com força sobre a parede, quase forçando a arcada dentária nela. Sua faca foi violentamente retirada e o homem estava rendido finalmente.
O Duque, de súbito, puxou a alça do rifle de seu tronco; o homem grunhiu indefinidamente, quase definhando, porém de forma acautelada. Averiguou a cintura, da qual não retirou nada, e as calças. Quando continuou a sofrer, o Duque o agarrou com brutalidade e o arremessou novamente sobre a parede, aproximando o rosto.
“És muito bravo para a guerra, mas és pouco traiçoeiro para ser destemido de fato, e livre. Serves bem a um exército; porém não digo que és digno de uma milícia de cobras. O que não dizes é suficiente para contar muito de teu sofrimento. Quem será que o causou?”, sussurrou com delicadeza. O homem não fez contato visual, apesar de ter beirado na curiosidade para testemunhar. Ele tossia ainda mais, ofegante, tentando ajoelhar. Sofreu mais um golpe sobre a parede, grunhindo com mais força, e mais convencimento. Foi agarrado em outro impulso para mais atrás, com a ponta do osso da nuca se dobrando de adrenalina, assim como seu cotovelo.
“Não ajoelhes pensando que controlas a própria dor! Não serão dias nem horas de vida correndo da morte que protegerão tua mente. És um escravo de serviço, a mão de um mestre. Ele não precisa de tua dor”, o Duque então envolveu a névoa com mais intensidade sobre os lados dele. De repente, com seu outro braço, agarrou-o novamente pelo pescoço e retirou a adaga da nuca para a goela do homem, quase arranhando a traqueia suavemente. O homem, que fazia de tudo para sobreviver, rezava para não entrar em contato visual.
“Olha-te mais profundamente, tu crês que tudo te é mais permitido porque libertaste a ti mesmo do exército no qual vomitavas de nojo e exaustão dia e noite. Escolhes o silêncio como foste treinado”, disse, olhando com as pupilas brancas sobre o homem, que estava se entortando diante daquela visão diabólica. “Mas, por acaso esqueceste que o homem prefere a paz e a própria morte a saber escolher livremente a vida e saber o que é a verdade?”
“Que Satã te leve para o inferno de onde vieste”, finalmente, e após tanto sofrimento, o homem gritou, cuspindo. “Criatura infernal, demônio de toda a criação! Отойди от Меня! Nada sabes, demônio.. Sei bem, e antes de todos, que esse mundo desgraçado e moderno está sendo tomado pelos anjos caídos. Eu creio na força do Espírito Santo. Os teus vassalos aqui na Terra não são nada iguais em natureza e arrependimento quanto tua vilanidade!”, jogando sua primeira cartada, ele se via explodido e amedrontado. Sua dureza não precisava de ser provada entre os homens, porém além desse mundo, ele enfrentava o desafio de seu próprio espírito.
“Admirável, tu és; além de excelso”, disse, desfazendo lentamente a névoa, embora mantivesse sua força sobre ele. Sua expressão era mais sorridente, dando aparência maior aos seus dentes caninos.
“Eu não sirvo a ninguém, e não é meu desejo tirar a vida de alguém que já fugiu tanto do tribunal. Mas se olhares por mais tempo aos homens daqui, encontrarás o inferno facilmente, embora meus olhos sejam fracos como os teus para vê-lo em toda sua integridade”, respondeu, apertando ainda mais o pescoço, no limite de não sufocá-lo, aliviando-o em seguida.
“Maldito seja! Como se isso fosse preciso para dizer que existe: em nenhum lugar, devo dizer! Meu espírito está tão condenado quanto o de qualquer homem, não há mal em mim que não exista neles. Escolhi esse trabalho pois fui livre de fazê-lo, como qualquer um faria. Mas o que afinal é teu desejo?! A minha alma está guardada, longe de tuas garras!”, exclamou, rangendo os dentes de raiva.
“Não vais tirar nada de mim! Não há tribunal ou passado que me condenará.”
“Eu queria que fosse verdade, mas não sou juiz. Parece que, numa lógica causal, de repente, tu te vês na obrigação de seguir o rebanho e ser também pecador. Por quê? Há cinco andares abaixo, e tu não sabes nem onde cada um deles está. Se és fiel ao rebanho, ou sábio minimamente, tu pensarias pelo menos duas vezes antes de acreditares na palavra de um outro homem”, o Duque brutalmente se impulsionou para mais perto do corpo caído arrastando o homem imobilizado e então mostrou o homem caído com uma pistola silenciada.
“Eu confio nos camaradas que são parte do povo de Deus, povo que nunca entenderás e dificilmente te juntarás. Esse que afrontaste com um dardo sobre as veias daquele homem para envenená-lo é um homem que poderia se arrepender ainda em vida. Seja qual a fantasia de carne humana que vestires, a minha vida fracassou. Tiraram tudo de mim, mas não minha misericórdia”, retrucou violentamente.
“Não, amigo. Não é veneno, de que vale a morte para responder a mortidão provocada pelo homem? O mal que volta seria bondoso, na verdade, se viesse ceifar vidas somente. Não é o que acontece, contudo…”, disse, deixando seu semblante mais pacífico e controlador.
“A verdadeira fantasia vestida seria esta tua: a de vestires como um soldado e creres na liberdade. Como haverias tu misericórdia estando armado e pronto para matar? Qual o critério de aclamação, para reconhecer os merecedores dela?”, afastou-o da parede para não ter mais referência de onde estava, escancarando-se para ele com um rosto entristecido, temeroso. Os olhos brancos se abanaram tristemente.
“O homem, amigo teu, se é que chamas assim — eu jamais o chamaria assim — procurou teu assassínio”, mostrou e puxou o rosto dele para olhar fixamente para o homem, quase empurrando a nuca para baixo. Ele se recusou, mas depois que abriu os olhos, viu que ele havia caído com uma pistola silenciada sobre seu colo. Ele ficou em choque, pois era um armamento muitíssimo caro, que ele sequer contou que tinha. Não só, como também ele não a viu em seu coldre, dando a entender que de fato ele a ocultou de si.
“Tu estás me fazendo servo de tuas palavras! Eu não creio! Eu não posso acreditar!”, fez força para sair, mas outra vez, ele retornou à parede, dessa vez com a bochecha apertada, quase amassada pelo enorme muro. “Independente do quão verdade seja, há sempre uma ponta bifurcada na tua língua, como a de uma cobra, que esconde a verdade maior. Não saberás nada de mim, não ceifarás alma alguma!”
“Tu não acreditas porque as convicções fingem te servir, mas todas elas são receptáculos de um desejo maior teu, o de todo homem: o da ganância. Se creste num homem como este, então não sabes discernir um demônio de um anjo. Mas não é ignorância, tu sabes sim, pois tu farás apenas o necessário para usufruir do mal para fazê-lo em devolução. Os que experimentam essa labuta são os últimos a entrar na fila do inferno de eterno sofrimento”, olhou profundamente nos olhos dele, que já estavam sofrendo desesperadamente.
Ele não sabia como reagir. Havia visto tanto em sua vida. Enquanto aquele espírito o questionava de tudo, não morrera ainda. As perguntas cresciam em sua cabeça, assim como as próprias decisões, além de toda aquela mortidão tomando morada nos seus ouvidos apenas para seu desprazer. Havia percebido que conversava com um homem.
“Quem seria tão diabólico ao ponto de deixar um demônio entrar num corpo humano? Que razão há nisso? Quem é teu mestre? A polícia? O governo?”, ofegou. O Duque, então, quase pressionou sua adaga sobre o pescoço dele e se desequilibrou. Mais uma vez sorridente, seus dentes ficaram bem abertos como o de um monstro.
“Não tenho mestre, homem de armas. Tua vida foi salva pois ela tem valor. Se a valorizas bem, então devolve-me a minha gentileza. Havia outro homem neste andar que terminaria o serviço caso teu amigo falhasse, tua morte era esperada”, respondeu, compondo-se melhor para que ele o ouvisse claramente. “Faze-o simples: quantos de teus colegas estão lá embaixo?”
“Estás querendo me matar com isso! Independente do que sejas, um homem ou demônio, ou um daqueles mestres. Traição! Se não tens um mestre, nem a quem servir, então por que estás aqui? Essa é a mentira que não cai! Como um homem não saberia obedecer para entrar nesse inferno?!”, o homem absorvia a recepção inóspita e inesperada daquela criatura humana.
“Era tempo dos mestres ensinarem aos alunos a serem os próprios mestres. Mas tu não acreditas que um homem pode ser livre, porque nem colocas fé de que poderás ser livre algum dia…”, respondeu.
Aquele interrogatório doía muito nele, mas estando desarmado e tendo toda a ignomínia imposta sobre ele justificada, confiou sua palavra naquela máscara, suspirando profundamente. Percebeu que aquelas palavras eram reais, assim como a tragédia que lhe foi causada, além de sua sinceridade. Há quanto tempo não ouvia algo tão bom, mas assustador, ele pensava. De tamanha força de vontade que pudesse, no fim das contas, ser uma luz para arranjar uma saída. Ao sucumbir-se perante àquela honestidade, banhando-se de paz por todo o corpo, convenceu-se de que lhe devia respostas.
“Se tu soubesses mesmo o que me ocorreu, foi como se um demônio viesse me torturar! Tal como agora! O próprio Baba Yaga ceifou tudo. Nessa luz, tu vieste com promessa alguma senão dizer-me que nada tenho: até um seminarista o disse de mim!”, desesperou-se.
“Aonde mais eu iria, besta? Minha família foi destruída na Guerra, perdi tudo. Não foram todos os recebidos com a anistia, e muitos de meus colegas se mantiveram encarcerados, para a pouca importância do presidente. É por isso que muitos foram embora, deportados depois daquela desgraça, para esconder as manchas desse pandemônio todo! Ele chegou para libertá-los e lhes dar uma nova vida. Ao menos diriam alguma outra mentira que menos enjoasse a mim!”
Tensiona os braços, dando-lhe cotoveladas arrebolidas de medo, enquanto o sangue a espraiar desordenado aconselhava seus músculos a colapsar sem qualquer precedente. Os sinais raivosos de um tempo em que a semelhança lhe era rainha faziam-no tornar-se um vislumbre ao guerreiro, que foi rendido perante os cavaleiros da estepe.
“Eu odeio toda essa porra, pois, contra tudo e todos, faço todo o possível para ser um cofre para guardar alguma riqueza para meu filho, e me recuso a seguir nesse mutirão infernal. Por Deus, que ele fique longe daqui, lá em Krasnodar! Ele não merece ver essa sujeira do Japão, menos ainda a do Daguestão, ou de qualquer cu de mundo! Caso contrário, ele será brutalmente apanhado, seja pela grosseria da ganância daqui, ou da tirania de lá”, disse, resistindo-lhe menos, finalmente revirando os olhos, desesperançoso.
“Não podes fazer nada contra isso. Menos ainda podes me ajudar. É minha responsabilidade à qual devo servir da melhor forma. Não pretendo me assemelhar a um homem sem palavra ou responsabilidade. Não sou livre, pois nunca precisei ser livre para me redimir.”
O Duque convenceu–se num passo de relâmpago. Pois, dentro dele, era ele também Itsuki, que se sentiu tocado por ouvir uma história terrível, embora trágica e irremediável. O jovem, por dentro daquela máscara, relaxou os músculos para dizer-lhe alguma coisa que sabia, embora tivesse vivido tão pouco e fosse quem, no lugar dele, deveria receber conselho.
Lembrou-se por um momento dos feitos de seu avô, e pensou se um dia haveria salvação a eles, se vestir a bandeira de um exército seria razão para se haver paz, embora, na verdade, nada o confirmasse. Olhou-se profundamente, caindo um arrepio no coração ao saber de sua dor. Ele foi imediato ao se pronunciar a ele, para cicatrizar o que havia restado de ‘humano’ nele.
“Apesar de tudo isso, tu és quem tu és e tu existes bem antes de toda dor. Não te enganes: a maior certeza que podemos ter é de nossa existência, que talvez chamas tu de essência, ou de alma. No mais, é provável que essa escolha tenha sido um infortúnio de teu tempo, uma que poderia ter sido superada com uma força maior, mas muito difícil de ser obtida. Sinto muito”, respondeu. Embora não estivesse convencido, ele segurou os próprios lábios de tanta raiva e se sentiu fortemente amargurado. Sua mente abriu-se para ouvi-lo melhor, no tocante à personalidade dele: dificilmente palavras tão sinceras teriam surgido de uma criatura. Era um homem atrás da máscara, e descia-lhe essa verdade cada vez mais.
“O que tu és então, homem? Eu estou velho demais para lidar com isso, nunca tive a chance de ao menos ser ouvido e tu o fazes, como um filho meu a me ouvir. Fui varrido para longe durante a queima de arquivos, naquela anistia, e cá estou, sem mais aonde ir.”, perguntou-lhe, tentando respirar. Quando o Duque também aliviou seu esforço sobre ele, o homem não reagiu.
“Eu sou um pária, soldado. Um exilado, que viu mais do que devia”, disse, tranquilo em espírito. Seus olhos se amenizaram. “Tu me verás mais por outros nomes. Mas o que está em minhas mãos não é um comando, nem ordem, mas uma lei natural: a continuação da vida. Ela é uma necessidade, soldado, assim como o privilégio de se libertar dela e vê-la com toda sua beleza. Esse direito deve permanecer na humanidade. Ou por acaso queres deixar a flor do homem nunca desabrochar e se salvar?”
“Mas tu lutas como se tivesse uma vida inteira, anos de experiência. É paradoxal. Não és demônio, mas não ages como um homem”, disse, incomodado. Desceu os olhos, cansado. “Não. Um demônio permaneceria mentindo, pois ele não pensa, tu pensas mais que muitos outros. De que vale fazer algo contra essas forças inevitáveis, se os próprios japoneses são espertos demais com esses frutos do diabo?”
“Se quisesses o esquecimento, me mataria. Para tu seres tão orgulhoso, no mínimo existe uma alcunha com essa dedicação à arte.”
“Teu nome é mais importante que o meu, pois ele foi dado no berço. No batismo, como chamais vós”, disse, acenando-lhe a cabeça em respeito, e então, sentiu-se à mercê de fazer ocorrer de maneira que ele seja livre. Para dar-lhe a liberdade, então, o Duque repetiu seu movimento e travou seu braço no pescoço do homem. Compreendendo a necessidade, pensou em não parar sua missão.
“Promete que me salvará daqui, homem, seja quem estiver atrás daí”, então o Duque agarrou sua adaga e apontou-a novamente ao pescoço dele.
De repente, parecia que tudo havia-se voltado para como havia começado. O Duque se prostrou raivosamente e fez uma névoa cobri-lo sem lacuna. No fim, o demônio criara um coração para entender que o curso da natureza prossegue, por vezes, escondido, como prosseguirão essas palavras de gentileza. Considerou suas escolhas, mas não hesitou.
“Então, responda-me: onde estão os policiais? Dize-os, e direi meu nome para que me procure e te prometerei liberdade, pois agora sabes quem tu és veramente. De nada adianta resistir, a menos que seja um homem livre. Faze-o, e eu darei liberdade”, respondeu, sorrindo orgulhosamente para ele.
“Três andares abaixo, besta. Pelo menos quinze, vinte, não sei. Estão protegendo as escadas apenas, tanto de cima como de baixo, ao meu conhecimento. Aqueles carros eram um plano B, mas acredito que eles fizeram isso para matá-los a todo custo”, disse, se debatendo entre a adaga e os braços daquele mascarado.
Fez muita força para resistir, e o Duque deixou passar para que levantasse os braços e o agarrasse para vê-lo nos olhos, embora com mais fraqueza por conta da exaustão. Porém, uma ponta de uma agulha veio até o pescoço, fazendo-o encará-la amedrontado, com todo o desejo de recebê-la.
“Qual é teu nome, soldado?”, a criatura perguntou, e o homem então acenou.
“Afanisy Aleksandrov, Divisão Motorizada do Daguestão, um fantasma exorcizado do Cáucaso, mas fiel ao propósito da divina providência”, de súbito, aquela agulha se aproximava lentamente, mas hesitou por um momento, para que ele ouvisse com clareza.
“Trata isso como uma gentileza de um guerreiro para guerreiro, Afanisy. Meu nome é Duque Javali, foi um prazer imenso conhecer um homem honesto como tu. Vai, tu estás livre”, ao encaixar a agulha naquele pescoço, as pupilas daquele olhar diminuíram ao ouvir aquele nome. Perante a essa clareza, abriu a boca para falar, mas não disse nada, caindo ao chão desmaiado.

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