Capítulo 19: Uma Procuração
A janela se alinhou com os portões do céu para iluminar o quarto, sempre ao semblante das luzes noturnas do infindável Reino das Formas, dando a ela o tratamento de um teatro. A parede à sua esquerda apoiava um grande mural de madeira, pregada com pequenas garras curvadas servindo como hastes. O mês de janeiro lhe foi uma complicação imensa.
Elas foram encarregadas com a tarefa de erguerem as armas de seu dono, com cada par dessas garras segurando duas Wakizashi – uma adaga secundária à Katana – de cor verde e azul na própria guarda, quatro Tachi – suas variantes ancestrais – embainhadas e bem amarradas por seu valor, uma Odachi – uma katana de duas mãos — ao topo do mural, tão grande que sua guarda e o gume somadas iam de uma ponta a outra do mural, três Yari – lanças — que estavam fora do mural, apoiadas em cima de um pedestal de madeira.
O mural precisava todo dia ser adaptado para expô-las sem dificuldades. Debaixo dele, havia um altar, sobre o qual estava uma katana do tipo uchigatana — a mais comum que se conhece — separada de sua bainha, desenhada com uma cena de um dragão nascendo do oceano. Além disso, havia uma bancada de trabalho, com algumas lâminas e fiações separadas, juntamente de manuais técnicos, todos com uma lista de anotações, assinadas com o nome ‘Ou Yezi’.
O altar estava decorado com pequenas formas de residências tradicionais, com inscrições pedindo a intercessão das divindades naturais. Uma estante ficava à frente da janela, vizinha ao altar, com vários livros e algumas miniaturas de soldados russos das Guerras Napoleônicas e de alguns aviões soviéticos, esses foram os presentes que recebeu. Além disso, havia miniaturas de robôs de combate combinados de um homem de cabelos brancos, vestindo um longo e poderoso casaco de couro marrom, balançando dois revólveres.
Havia uma foto ao lado desses presentes, de família, com todos reunidos, junto a dois monges budistas que quiseram também estar nela, ao lado do filho mais velho e da mãe. No seu lado, uma escrivaninha estava toda livre, com um dicionário de língua russa numa página aberta. Um monitor acompanhado de mouse e teclado de cores prata e escura também estava sobre a mesa, com um fone de ouvido encaixado num suporte acoplado na lateral da mesa. Não estava longe da cama, sobre a qual dormia o dono daquele cômodo, até que a luz da janela não quis saber de graça.
Itsuki abriu os olhos e viu seu quarto sob paz raramente vista na Escola Inyouke. Nenhum som de feiticeiros caindo ao chão e quebrando as clavículas, ou broncas de professores, era um fim de semana comum. Um tomado pelo estresse, e pelas temperaturas frias quase absolutas que se estenderam por todo o Japão.
As temperaturas caíram ao extremo lá em sua casa, mas nada incomum para o costume de sua família: no entanto, as consequências dessas temperaturas frias devem ser enfrentadas. Muito trabalho havia sido feito quanto aos assuntos da escola e aos eventos passados. Foi ao nível de infeliz exaustão, quase ao passo de fazê-lo refletir sobre o tempo que tinha, embora tenha sido por uma boa causa.
Ao voltar a Tóquio, o frio provocou um caos na cidade, e mais uma vez, ele precisou controlá-lo; como nas vezes que teve de se encontrar com Mikami acomodado em blusas enormes. Porém, embora desconfiado fosse Itsuki da polícia, sobretudo dos que mandavam em seu sargento de companhia, viu-a fazer um trabalho mínimo para dar fim a essa pressão ao sistema público.
Faltava o apoio de seu símbolo e o apelo maior que ele precisava alcançar para transformar aquele tempo; ele julgava, no fim, que revelar-se às câmeras um dia traria bons frutos ao futuro. Mas não era tempo de apressar-se. Ao topo da paciência, o céu é, como relembrava o Himalaia. Ora, não faltaria o que fazer durante as férias: abarcar consequências do tempo gelado; tempo esse que adornava sua armadura, que estava sobre um quintal aberto fora do dormitório que levava até aos outros quartos; se for vista com atenção, havia desgastes na sua couraça e vambraços de lamelar.
A noite o chamou mais, para lhe abraçar com o dom que recebeu: o de elucidar as coisas naturais. No entanto, ele tem tido pouca fama por ter deixado poucos rastros nessa rotina, e pelo receio de que seja difícil convencer às autoridades sobre suas intenções. Seus esforços não funcionavam, às vezes eram tratados como “idiotice” pelas autoridades internas que, por essa razão, ignoravam os avisos ou as evidências que ele coletava.
Seu trabalho não parecia sério diante da arrogância da vida urbana japonesa. Era fácil enrustir-se no perfeccionismo ínsito dos mais velhos, que por vezes se têm esquecido de dedicar a minúcia de uma suposta vida espiritual. A obediente polícia, em seu lado, seu trabalho havia de lançar-se à imensidão da harmonia da cidade e protegê-la como queira ela.
Ele aprendeu essa lição antes de tentar, mas o favor que ele fez para algumas pessoas foi suficiente para dizer que algumas vidas foram salvas. Algumas, apenas. Não era fácil intervir sobre uma cidade grande assim. Os problemas dela foram lavados sem usar sabão. Mas essa discussão fica para outro dia, pois o próprio Itsuki se cansou. Ele se levantou e foi até o banheiro de seu dormitório, arrumando seu cabelo e o penteando para que ele não se espetasse demais. Abrindo o celular, foi então que ele decidiu se livrar desse tempo para se atualizar das novas notícias do dia, destacadas com um marcador referente à nevasca daquele período de inverno.
“Akame Nakamura, você não sabe o quanto você tira nosso sono. Ninguém mais teve notícia. Você desapareceu como profissional nesse frio!”, disse, embora sorrisse de vez, e a tempo de superar esse receio. “Última vez vista em casa há dois meses, sumiu sem deixar rastros. Não atendeu as ligações, faltou a todas as últimas aulas sem justa causa, em passo mais rápido que a escola. Na primeira vez que eu a conheci, pelo menos era mais fácil de dizer quando você está brincando.”
“Mas os tempos mudaram. Você, no entanto, mudou mais que o relógio. Quem consegue fazer isso?”
Ele, então, abriu uma foto no telefone sobre a qual encarou por alguns segundos até sair do banheiro. Era uma ‘selfie’ que tirou com ela antes das férias. A garota tinha cabelos ruivos, leves sardas sobre as bochechas, além de roupas brancas e justas que se estendiam até as pernas com uma saia.
Logo em seguida, ele pegou uma pequena folha adesiva, juntamente de um pincel leve e suave, sem tirar os olhos da fotografia. Porém, ao contrário de apreciá-la como um todo, ele aproximou a tela, enquanto encarava a uma cor escura e desbotada, que brilhava mais intensamente na garota.
“Seus olhos não são esses”, enquanto a olhava atentamente, ele apertou as setas de seu telefone para ter visível uma outra imagem dela, dessa vez mais antiga.
Assim que lhe desceu essa estranha realização, pareceu que a confirmação se firmou após tanto tempo de pensamento. Quando muito se discutia se era apenas um erro de processamento, ele não fazia a crença de que seus sentidos poderiam estar corretos, ou ainda responsáveis de lidar até mesmo com as sensações do mundo, e as que ele mesmo criava. Mas poucas vezes uma amizade seria capaz de tanto ocultar seus próprios segredos, no mesmo passo que a desconfiança se fazia incapaz de crer que ela fosse somente uma vítima silenciosa de uma armação completamente desconhecida.
Tudo parecia escuro, muito mais que a noite, como se estivesse somente sombrio. Seu corpo mal acompanhava o ritmo que sua mente ditava, e sentia calafrios apenas de ver-se tomado por um gélido e desastroso temporal de dúvidas que o fazia fechar seus olhos para além, e voltar-se somente àquele rosto que não havia mudado em nada, senão nos olhos.
“Não é por acidente: me canso de descartar essa opção. Esconder-se nesse caos todo, longe de nós, de qualquer um que a conheça melhor não é uma decisão fácil de se tomar, sem ao menos fazer as malas ou se preparar.”
Ele se escorou sobre a escrivaninha, escrevendo à folha adesiva com alguns números, acompanhados de endereços que imediatamente foram cortados. Com um alfinete, ele o fixou sobre um mapa da cidade, anotado incansavelmente de evidências adquiridas e categorizadas por suas extensas missões de campo. Era possível enxergar a beleza daquele meticuloso e estressante trabalho de fazer garantidos seus olhos pela cidade.
“Asuras que dominam a ‘reta consciência’ imprimem visões em suas vítimas que podem atormentar ou proibir alguém. Mas por que você ficaria quieta, inerte em nos dizer o que acontece?”, perguntou para si, incomodado com o que via à frente. Logo, ele se revirou, com constante truculência de lhe restar poucas opções, principalmente aquelas que ele não desejava para si, e permaneceu atento ao que anotava na sua papelada.
“Há a hipótese de que algum espírito maligno esteja calando sua voz, usando um selo amaldiçoado para lhe proibir de falar ou dizer. Mas nada consta nos registros de algum asura capaz disso em Tóquio, e você age como se quisesse escondê-lo!”
Ao virar-se para trás, ele sentiu um leve peso cair sobre sua consciência. Nada havia sido resolvido. Outra vez, ele ficava sem respostas, chegando a ponderar sobre o submundo daquela cidade, embora nada desse suporte a desbravar aquela escura face da cidade. No entanto, mesmo contra a sua vontade, ele marcou um círculo num ponto específico do bairro de Shinjuku.
“Se os subordinados da Serpente Espelhada não tiverem noção do que está rolando, então ninguém mais terá. Fazer uma visita não será demais!”, disse, respirando fundo, enquanto escrevia um lembrete bem alarmante, destacado em vermelho. “A Akame pode estar sob efeito de alguma maldição vestigial do Kurozai. O problema é que seu uso de karma reduziu drasticamente e está completamente dependente da Sora. Mesmo se permanecesse, seria muito fraco. Um deslize seu naquela missão poderia explicar o fato de haver uma maldição em você. Mas nada explica seu silêncio!”
“Se não for nada disso…então só falta dizer que você tem duas caras”, com essas palavras, Itsuki tornou-se a fazer um pequeno relatório debaixo do mapa, escrevendo-o com todas as formalidades para que não faltasse em claridade.
Entre riscos atrás de riscos, nem seus livros faziam questão de lhe responder as perguntas que fazia. Seu cenho franziu de igual modo a seus dentes, crescendo como se estivesse fugindo de um abismo. Todas as vezes que ele se via diante de um espelho, como o mesmo que ele encarava de relance, era como se sua exaustão fizesse questão de lhe lembrar que não haveria sossego, muito menos a reparação por seus machucados.
Por muito tempo, ele consultava seus manuais de investigação e tratados forênsicos sem que pudesse encontrar uma resposta. Perante a esse sumiço, atirou-se sobre a cama para descansar. Seu coração se revoltou de uma vez e escondeu-se sobre o travesseiro, incapaz de resistir ao nervosismo e tremor de suas pernas.
Mas de repente, um pequeno guaxinim foi na sua direção, subindo e se acomodando sobre os pés dele. Itsuki sentiu cócegas, e depois viu seu animal de estimação, Ju, fazer uma bagunça enorme sobre ele e depois sobre sua cama. Ele não resistiu, e precisou de jogar o cobertor para vencer essa batalha contra ele, enrolando-o pela eternidade.
“Ei, pare, pare!”, depois, ele pegou pelo tronco dele e então o levantou em direção a sua cabeça, abraçando-o. “Não é possível. Até mesmo meu vassalo sentiu tanta falta? Não devia, pois eu sempre volto, quando que aprenderá isso? O Duque precisa de um bom súdito, afinal; um que saiba que ele voltará!”
“Você não pode me deixar na mão agindo assim, Senhor Ju, Primeiro Conde do Inferno! Agora vá, e espione meus arredores. Eu tenho que salvar uma pessoa bem especial.”
Logo depois, levou-o ao chão, e foi até uma estante de sua cozinha e partiu algumas frutas para que ele comesse à vontade, além de algumas castanhas que encontrou durante seus passeios. Depois, esticou seus braços e se aproximou de uma barra acoplada a duas hastes de metal presas sobre o chão e fez dez levantamentos comuns, usando os bíceps, até se cansar. Com as mãos sobre a cintura, cerrou o olhar.
“Um pouco mais e meu osso virava história…”, disse, sorrindo, enquanto alongava suas pernas com dificuldade, embora sentisse um pouco de progresso. Depois, agarrou seu ombro para senti-lo melhor, enquanto grunhiu por conta de seus movimentos levemente limitados. Assim, ele foi em direção ao altar, no qual se marcam as épocas do ano e também os rituais realizados.
“Seria muito bom se o Han fizesse uma surpresa de vir sem aviso como ele fazia. Se ele reclamar de novo por eu não estar me preparando quando já me organizei…”, seus olhos vacilaram, enquanto ele se agachava ao tatame para descansar, enquanto cerrava os olhos, encarando a porta à espera de uma miragem que lhe desse propósito.
Havia um leve vazio dentro de seu peito, que parecia vir de sua imensa compaixão, que lhe dava mais indicativo de que tinha pouco amor para as coisas que amava fazer. Muito mais por sua responsabilidade como professor, e inimaginavelmente por seu relacionamento. Era o tempo em que ele buscava encontrar sentido conversando com seus brinquedos e sua imaginação, mas a coragem lhe pedia para se lembrar do mundo real.

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