Parte 3
Uma cascata avermelhada surgiu daquela fumaça, numa queda calma e consistente. Ela descia com cautela e beleza, de forma que nos acabasse em destruição. Para aqueles que olhavam debaixo, encarando a tempestade que ocorria aos céus, até mesmo a menor das criaturas se depararia com a beleza do aço brilhante que havia cruzado, entre fogosa tormenta, a batalha das vontades.
Se havia entre os dois aquele que tirava mais o fôlego ao se olhar, seria difícil medir o quanto, pois ambos logo experimentaram um desmedido gosto de fuligem a preencher seus sentidos.
“O incenso acabou”, disse, fechando os olhos de desapontamento, prestes a provocar interminável repreensão. A escuridão criada pela fumaça permaneceu, ao invés da vacilante fogueira, que se latejava.
“Poucas são as ofertas aceitas pelo turíbulo, jovem. Raro é o sacrifício que lhe agrade.”
O mestre tossia, revirando-se de incômodo e aceitação após a longa experiência de provação. Uma adaga havia cruzado seu peito, atingindo-lhe o coração, que tornava a melanina rubra de escuridão, como a mão de um espírito abrindo a passagem de um riacho no início dos tempos.
“Eu queimei a única coisa que me foi permitida registrar antes de meu julgamento. Meu sangue nele escrito foi suficiente, pois não há uma ilusão ou lenda nessa terra que não possua um pingo de verdade”, respondeu-lhe.
O jovem inclinou a adaga para trás, e então revelou sua aparência límpida, que estava incapaz de tocar em qualquer gota de sangue. O peito, que havia sido perfurado, se desfez, no melhor estado de pureza. Ele ergueu sua mão esquerda, queimada, e ao entrelaçar seus dedos, a poça de sangue desaparecera às suas ordens. Ali havia transpassado um estado inominável de coragem e graça.
“Era meu último dia antes de minha sina ser anunciada. Depois disso, não haveria mais caminho”, ofegou o jovem, livre de suas queimaduras, que também desapareciam pelo leve estalar de dedos de seu mestre. “Eu sei que você queria que não fosse assim. Mas é com essa responsabilidade que escolhi viver, não com minhas memórias; muito menos pelo meu nome.”
“Grande é a tua coragem de desfazeres-te delas perante a tudo que viveste. Muito mais, sobretudo, num tempo em que se esquece com mais frequência do que nunca”, respondeu o velho, num tom desacreditado que acompanhava a sua leve e passageira indignação.
“Eu tenho a resposta para a sua pergunta, Mestre: o fim de todas as coisas não se alcança somente por coragem, ou por grandes feitos, mas por sacrifício. Não há história sem queda, sem o mal.”
“Por isso que eu não o venci. Existe um preço a ser pago, perante a tudo.”
O mestre ficou atônito, pois creu em tudo o que lhe havia ocorrido sem lhe jogar uma pitada de sal. Sombreado pela fumaça, ele se retraiu, soprando-a longe, para enxergá-lo melhor, fazer certeza de que não permaneceu nenhuma outra ilusão.
“Não digas isso, menos ainda insinues que esse é o único fim pelo qual está aqui. Preza pelos bons momentos, e aceita-os, antes que o esquecimento te pese a cabeça”, ele pôs a mão sobre o ombro esquerdo do jovem, que respirava com dificuldade, obrigando-se a sentir o cheiro de pergaminho queimado fazer seu sobrevoo entre suas narinas. O mestre, no entanto, acenou de volta, abanando a cabeça, e retomou sua compostura.
“Cruel é o mundo, Phagu. Por isso, creio, através de minha consciência, que seja necessário um último adeus, antes que nossos caminhos se desencontrem por muito tempo. Uma ilusão nossa que enganará o veneno da miséria e ganância.”
A fumaça escura foi a única que permaneceu. Também havia permanecido seu cheiro, que atraiu o mestre para mais perto do incensário, com uma impressão particularmente fechada. Ao abri-lo, ele desfez o fogo com suas mãos, e apenas pôs em mãos as cinzas daquele pergaminho queimado e poeirento.
“Não faças desses dias como se fossem os últimos. Usar essas ilusões exige muito amor pelo ensino, pelo fracasso e paciência. Pois então, pelo menos, torna-os melhores, como se estivessem perante à bela corte daqueles que seguem o dharma lá em cima”, ele passou suas cinzas sobre os dedos, fazendo-as cair de volta ao incensário. “Essa montanha é pequena comparada ao sofrimento de um homem incapaz. Subi-la é um caminho incerto e volátil.”
“Para vencer o incenso, Mestre Guru, é preciso fazer sacrifícios. Cada um deles, no fim, é passageiro, como a jornada para cá enfim deve ser”, respondeu, com os lábios apertados. “Se eu me propus a isso, então este somente pode ser meu desejo.”
Imediatamente, porém, o mestre se segurou, e então fechou os olhos, juntando as mãos debaixo de suas mangas, para que elas lhe dessem a confiança de restabelecer para si o raciocínio que tanto prezava.
“Há muito tempo que tenho visto e sentido que não estás pronto para esse lugar. Tudo o que vi foi um aluno incapaz de aceitar as ordens de um templo, porque é confiante demais em seu próprio coração.”, disse, revirado em tristeza, sabendo das coisas que o mundo abaixo podiam ofertar, aguardando aquele que mais vacilar.
“Tu não és ele, meu querido Phagu. Muito menos o teu destino necessita de ser entrelaçado a ele. Por que não escolhes viver aqui?”
“Sentirei muita falta, Mestre Guru, de todos que aqui passaram, pois, de antemão, já tomei minha decisão”, disse, sorrindo. “Mas em minhas mãos, está o que restou dele, que por pouco, não desapareceu em sangue e memória: sua inalterável entropia.”
“Lembra-te de uma coisa, então, jovem: esse mundo é grande demais para ser amado todo. Eterna será a missão de quem odeia a eternidade.”
“Era melhor ter tido o corpo aceso de fogo e agradado o paladar com um gostinho do Inferno antes de minha descida”, riu, enquanto cerrava-lhe uma confiança trêmula, exaurida de energia que seguisse seu impiedoso desafio.
Assim que disse essas palavras, o mestre reacendeu o templo, mas com mais plenitude e tranquilidade. Ele estendeu a mão sobre a frente do jovem, fechando os olhos para que tivesse certeza ponderada.
“Em verdade, é a tua língua que ainda queima em fogo, e isto eu não queria”, retrucou-lhe friamente, retendo-se por entre os lábios. “Portanto, prostra-te, para que te seja revelada a tua verdade. Faz desse templo uma memória boa. Faz tudo isso por ele. Ouvi-me, para que sejas remédio à teimosia de uma fúria impura tal qual o mundo. Essa que me convém quando ela pouco me interessa.”
O jovem concordou com o que seu mestre falou, e ajoelhou-se, de forma que seu rosto não fosse coberto pelo pequeno rastro de fogo que formava as laterais daquele singelo velho homem, de tantos anos e rugas nas costas, e ainda muito a viver depois de muito vivido.
“Que toda impressão de repugnância minha seja um exemplo de bem agir e querer, é isso que quero, mestre”, anunciou, focando sua visão ao chão, enquanto a vergonha ainda lhe era uma memória indelicada.
“Como eu poderia dar ao mundo melhor exemplo?”
“Tantas são as maneiras para fazê-lo. Todas pela tua ação, seja ela pequena ou grande. Qualquer uma delas faria desse mundo mais próximo de se revolver ao fim do sofrimento. Mas escolheste a mais suja e inestimável delas”, o jovem outra vez queria declarar, e pela ação de seu coração abalado pela exaustão e medo do fracasso, ele não hesitou.
“Mesmo assim, mestre, somos parte desse conjunto, com os mesmos deveres, regidos pelo princípio. Apenas somos porque somos pelos outros. Não somos por nós, muito menos existiríamos sem aqueles que nos rodeiam.”
Suas palavras eram duras para convencer o mestre de seu posicionamento. Ainda mais, porque ele se sentia amedrontado, mas certeiro de que essa era a realidade para a qual um bom e nobre seguidor do dharma sempre deve escalar, seja do topo da montanha, até o seu mais baixo sopé. Donde estiver a sua vontade, ali deverá reinar a razão, a ambição de um herói.
“Sê um bom ouvinte, jovem: não diminuas os pequenos atos. Torna-os abundantes, para que teu braço não se estique muito além dos ossos. Ainda és mortal, sobretudo. Se colecionares os pequenos atos, estarás dignificando tua vida sem apressá-la.”
Os estalos de combustível foram desaparecendo junto da fumaça negra do objetivo sagrado. Um leve e transparente gás branco renasceu, voltando-se a queimar em paz, com o menor incômodo que lhe seja reservado o direito de dizer.
“Sim, ainda sou. Mas é costume dar um pouco do que é imortal a todos que desbravam esse mundo. Uma chance de queimar e ter seu cheiro escancarado, e se lembrar daquele momento.”
“Só pode haver uma direção para uma roda que gira em torno de si, Mestre.”
Não havia clareza, ou mesmo paixão que atravessasse os limites da razão para ser a convincente causa dessa última conversa. Mas, o homem, então, abanou a cabeça, e com as mãos erguidas até o céu, lembrou-se de si. Alguns olhares curiosos, de túnicas laranjas e cabeças raspadas, eram a todo ouvidos para aquele testemunho.
“Prova-me, Phagu, de que estás certo. Faz que minhas noites e dias dessa vigília sejam memórias hábeis de nosso templo. Quando entraste aqui, primeiro vi um filhote, que se recusava a trepidar aos mesmos passos de meus outros irmãos. Hoje, vejo um porco ainda revoltado, escondido, perdido em meio a essa carne, deslocado de sua verdadeira casa. Esta seria a tua casa: seria teu consolo, a honra que está aquém dos que não conhecem o mundo por si. Mas parece que o mundo debaixo, há muito tempo, nos tem sido como uma montanha.”
“Quem mais teria a coragem de fazer moradia e monastério na face mais escura nesse mundo? Apenas uma pessoa.”
O jovem havia permanecido com seus pensamentos, sentindo-se incapaz, até que a palavra lhe fosse concedida. Muito lhe havia sido dito, e ele temia que seu espírito apenas não fosse suficientemente capaz de compreender o mundo através de abundante, porém necessária humildade. No entanto, a honra que veio para si neste aguardado juramento, entretanto, não esperava ele.
“O trajeto de um bom homem é procurar na montanha seu destino. Mas teu ser, o mais considerado, foi-me revelado, perante às disposições de minha sabedoria, como um retorno. Estás atrelado a um objetivo. Tu és parte de uma rara manifestação de Guru Dragpo,1a raiva e teimosia de Padmasambhava2 distintas. São por essas palavras que, sobretudo, se reitera sua própria ira de testemunhar o mundo sem ponderação ou meditação. Só podes encontrar a verdade senão na tua missão.”
Faltavam-lhe quatro palavras para que ele estivesse livre. Embora ele soubesse como dizê-las, não haveria mais retorno. Ele sabia que nada do que era dito parecia verdade, mas nada ele poderia fazer, senão provar a si. O desafio feito ao Guru, entretanto, lhe seria uma memória de uma possível resposta para esse indomável e obstinado espírito de seu avô.
“Os perdidos, hei de resgatar. Os escravizados, hei de libertar. Os desamparados, hei de confortar. Todos aqueles que não virem a revelação, hei de fazê-los causá-la,”3recitou, com paciência, as ritualizadas palavras que tiveram encontro com a repetição sonhando pelo sagrado.
“Então, com que nome selarei meu caminho, mestre?”
“Com um de casa, pois não és mais Phagu. Como fez teu amado progenitor, traz realeza, por mais que ela se pareça com de um nobre, porém honrado cortesão, um príncipe teimoso. Terrível suíno que o porqueiro não alcança! Ora, e a ti aviso: não deixes que vejam tua carne antes de que enxerguem o dharma. Não deixes que teu rosto lhe torne parte somente dessa realidade, vinculado a um único tempo, não permita tudo o que é temporal conheça a verdade primeiro que a consciência humana.”
“Que este seja meu nome, dito assim como foi pronunciado e honre o compromisso de minha família, e não a torne morrer mais”, respondeu o aluno.
“Dessa empresa, virá somente vida ao porco andarilho. Por isso, vai, despede-te dos teus colegas, olha bem os braços e as pernas, modera-te com tudo o que é da carne se não forem de encontro com a razão. Aprecia aqueles que estão contigo. Ensina, esclarece e torna lúcido o que sabes”, o fogo se encerrou, e um breve sorriso surgiu dele, embora fosse curto. Sua sucessão, entretanto, caiu bem, como uma curta onda de calor de primavera.
“Desce a montanha, Phagpo. Estás livre, Duque Javali. Dentro dos limites desse tempo, finalmente cumpriste esta promessa.”


- Mestre Dragpo, significando “aquele que é furioso, tempestuoso”.[↩]
- Padmasambhava foi um antigo mestre ritualista budista que foi responsável por estabelecer as práticas da religião no Tibete no entorno do século 8 D.C ao fundar Samye, o primeiro monastério da região. Figuras santificadas da tradição budista, como ele, possuem manifestações de seus principais aspectos de vida que servem como suporte para meditação. Nesse caso, é a sua força e violência que se destacam, como responsáveis por causar medo das consequências de não se agir conforme o dharma.[↩]
- Essa é uma versão modificada de um juramento tradicional feito por bodhisattvas quando estão prestes a assumir sua missão perante um mestre, conhecido como Os quatro votos universais (四弘誓願文/Shigu Seigan Mon). Foi traduzida de um original desconhecido em sânscrito para o mandarim, e logo depois para o japonês através da escola Tendai, fundada pelo monge Zhiyi no período inicial do Budismo no Japão, ao século 6 D.C. Originalmente, ela era:
“衆生無辺誓願度
煩悩無尽誓願断
法門無量誓願学
仏道無上誓願成.”
“Os seres sencientes são inúmeros; juro salvá-los.
As ilusões são inacabáveis; juro eliminá-las.
Os portais do Dharma são sem limites; juro estudá-los.
O caminho do Buda é insuperável; juro alcançá-lo.”[↩]
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