Quando o sol começou a esquentar a casa, Kogo já estava de pé. A terceira semana de treino começou.

    Como em todas as manhãs, o ancião preparou seu café e se sentou na varanda, aproveitando a paz do amanhecer e o frio sendo substituído pelo calor do sol.

    — Aaah o que tu tá fazendo?

    Um grito repentino interrompeu a tranquilidade de Kogo e ele imediatamente já sabia do que se tratava.

    Descendo abruptamente pela casa, uma garota adorável, mas com os cabelos longos e brancos amassados pela noite de sono, apareceu na frente de Kogo.

    A garota visivelmente irritada não era outra senão Cecília.

    — O que aconteceu, garota? Por que está esperneando logo pela manhã? — perguntou Kogo.

    — Aquele… aquele tarado!! — gritou ela, com os olhos começando a lacrimejar.

    Antes de qualquer outra coisa ser dita, Óscar apareceu na cozinha, com uma marca de mão no rosto e remela nos olhos.

    — Essa maluca me bateu cara. Eu abri sem querer a porta do banheiro e fui recebido com um tapa na cara — reclamou Óscar.

    — E você acha que foi muito? Você invadiu o banheiro enquanto eu estava… estava… LÁ!

    — Ai ai ai, como eu ia saber? Não sei se você se lembra, mas até ontem não tínhamos nenhuma enxerida aqui na casa, era só eu e esse velho caduco aí — esperneou Óscar.

    — Caduco? — lamentou Kogo, sem ter atenção de ninguém.

    A manhã começou bem agitada, mas acabou tão rápido quanto começou. Bastou palavras de ameaça vindas de Kogo e os ânimos se acalmaram.

    Mas foi a primeira vez que a garota pronunciou qualquer coisa.

    *****

    — Bom, já que estamos todos mais calmos, vamos ao treino — disse Kogo, enquanto descia a cratera.

    Kogo começou explicando para Cecília os fundamentos básicos da energia, basicamente o que já havia ensinado para Óscar.

    Kogo também deixou, na noite anterior, a garota a par da maioria dos fatos sobre exorcistas e desviantes, o que poupou tempo de treino.

    — Funcionará da seguinte forma: Óscar vai continuar seu treino normalmente durante o dia, e durante a noite treinará com Cecília. Durante o dia, Cecília vai aprender o básico sobre manipulação de energia.

    — Não faz sentido, já estou muito avançado e ela ainda é uma iniciante nisso. Ela só vai me atrasar — reclamou Óscar, recebendo olhares assassinos de sua nova colega.

    — Não, ela não vai te atrapalhar, vai te enriquecer. Ensinar algo a outra pessoa apenas reforça o que você já sabe, ajuda a colocar os pensamentos em ordem — anuiu Kogo.

    — Ok ok, fazer o que…

    — Mais uma coisa, ainda iremos caçar duas vezes na semana, e não pegarei leve com você só porque temos uma garota aqui.

    — Nem precisava dizer.

    Passando o tempo, Kogo levou Cecília para fora da cratera para começar o treino.

    Diferentemente do treino de Óscar, que era focado no despertar, Cecília iria ver o básico sobre manipulações de energia, e iria focar nos fundamentos e concentração.

    Kogo começou explicando que existem duas formas básicas de manipulação: Divino e Abismo e, depois disso, começou a explicar o que ela faria nas próximas duas semanas.

    — Olha, para ser franco, não posso lhe ensinar nada além do básico em duas semanas, por isso, vamos focar em masterizar o básico, certo? — perguntou Kogo, apenas recebendo um aceno da garota.

    —Ok… bem, vamos nos sentar então, escolha uma posição que seja confortável.

    Ambos se sentaram na grama, Kogo de pernas cruzadas e postura ereta, e Cecília de forma mais desleixada.

    — Certo, agora de olhos fechados, imagine o seguinte: ignorando todo o seu corpo, foque apenas no coração. Pense nas funções que ele exerce e como se comporta, imagine cada batida em sintonia com seu corpo inteiro. A forma como ele pulsa o sangue, como suas artérias se ligam ao longo do sistema, tudo isso ao mesmo tempo.

    A garota estava seguindo as instruções com dificuldade, isso era esperado por Kogo.

    Seres humanos por natureza não estão acostumados a imaginar coisas fora de seu viés e perspectiva. Por isso, tentar entender o funcionamento de algo tão complexo e o qual nunca foi visto por Cecília, é algo difícil.

    — Agora imagine um outro coração, só que ao invés do coração como você conhece, imagine o Yin Yang, metade negro e metade claro, mantenha as funções do coração. Pense nesse novo coração, como um sistema que bombeia sangue, mas ao invés de sangue, coloque energia no lugar, uma energia negra e uma energia branca.

    Ao decorrer do tempo, Cecília começou a suar bastante, claramente o corpo dela não estava agindo bem a todo aquele esforço, além do próprio mental da garota.

    — Consegue ver? — indagou inutilmente Kogo, já que não recebeu nenhuma resposta — Ei? Você tá bem garota?

    Por um milésimo de segundo, tudo ficou em silêncio, não deu tempo de Kogo ir até a garota.

    *clic*

    *****

    Haaa Haaa — Óscar estava bufando pesadamente, e suando profusamente.

    Enquanto esteve meditando na montanha, teve tempo de sobra para desenvolver suas teorias acerca da energia.

    Óscar buscava o fundamento da coisa, estava atrás de uma base elementar por onde tudo se desenvolvia.

    E a cada dia que passava, conseguia se conectar mais com a atmosfera ao seu redor. Conseguia sentir as vibrações da terra e o ar cochichava em sua orelha sempre que ventava.

    Nesse momento, resolveu tentar novamente a maré energética, sua técnica mais promissora até agora.

    Analisando friamente, se qualquer pessoa conseguisse manter a maré energética, ela seria invencível. De acordo com os pensamentos de Óscar, ser capaz de sentir a natureza, te faz prever qualquer ataque, afinal, o ser humano faz parte da natureza.

    Então Óscar começou a se concentrar, e quando finalmente ia entrar em transe…

    BOOOOOM

    Uma explosão atordoou seus sentidos, não era qualquer explosão, era feita de energia, pura e condensada.

    Nesse momento, Óscar estava vulnerável e suscetível a energia, então foi aturdido e esmagado contra o chão. 

    Por um breve momento, ficou sem reação, até que espalhou uma fina camada protetora pelo corpo e se dirigiu até Cecília e Kogo.

    — Aah merda… ei, garoto, me ajuda aqui. A Cecília está vazando energia demais — exclamou Kogo enquanto se arrastava pelo chão — Chegue até ela e contenha a energia. Canalize o seu poder, sugando o que está vazando e transmitindo de forma uniforme pelo corpo dela, faça rápido mas tenha cuidado, se você colocar mais do que vazou, ela vai colapsar e o corpo vai implodir!

    Com essas palavras que não eram nada amigáveis, Óscar foi até a garota.

    Ela estava em um péssimo estado na verdade, não tinha mais consciência, então o corpo agia por instinto, apenas liberando poder, tentando se defender de qualquer coisa que tentasse se aproximar.

    — Merda… mal chegou e já tá causando problemas assim — reclamou.

    “Respire… canalize e empurre…” pensou.

    Óscar usou um pouco do seu vão conhecimento ao controlar os veios de energia da garota.

    Ele primeiro sentiu a energia pela terra, percorreu todo o corpo dela e chegou ao núcleo colapsado. Tinha um leve delay, mas ele entendeu a situação.

    Óscar assimilou a energia divina e isolou a energia do abismo em uma bola negra. Mandou uniformemente pelo corpo da garota e circulou o núcleo. Depois fez o mesmo com a energia do abismo.

    Quando toda a energia estava junta no núcleo de Cecília, Óscar unificou-as em um yin yang quase perfeito, e fechou.

    Para o rapaz pareceram horas, mas num pequeno espaço de 30 segundos, ele fez algo que Kogo não pensaria nem em duas vidas.

    Óscar afundou a bunda no chão e logo depois o resto do corpo. Julgou que pelo resto do dia, o treino estava pago.

    *****

    Ei, garoto…

    Óscar e Kogo estavam sentados à mesa da cozinha. Óscar colocou Cecília na cama e Kogo preparou chá para ambos.

    Nenhuma palavra havia sido dita sobre o ocorrido, mas Óscar sentiu que fez algo que não devia.

    — O que você fez lá, como você fez?

    — Era algo proibido? — perguntou Óscar.

    — Não, não. Na verdade, nem tem o que proibir, aquilo nunca foi nem cogitado na verdade; e se já o foi, nunca chegou aos meus ouvidos.

    — Haaa, é um alívio — suspirou o rapaz — Na verdade foi a primeira vez que botei isso em prática…

    — Você diz…

    — A maré energética, foi como chamei. Na verdade, eu pensei nisso na primeira semana de treino, em como o ser humano se relaciona com a natureza, e a conclusão foi que não nos relacionamos, somos o mesmo!

    Deu uma golada no chá e continuou.

    — Alguns filósofos costumam defender que a natura antecede o homem ou até que o homem molda a natureza, mas a verdade é que ambos não se distinguem. Quando eu apliquei essa lógica à energia, comecei a estudar as relações de forma mais cosmogônica, retrocedendo de certa forma ao pensamento racional.

    Kogo ouvia calmamente, sem interromper, apenas bebendo hora ou outra seu chá.

    — Quando eu analisei as rochas, percebi que a forma como a energia se manifestava e até mesmo se comportava, era fundamentalmente diferente do que em mim, era mais natural. Eu ainda não cheguei a uma conclusão sobre o motivo, mas eu comecei a tentar imitar as rochas ao meu redor, tornando minha manipulação cada vez mais suave. — Antes de continuar, tomou fôlego — Até que eu percebi que até mesmo a forma como eu controlo a energia fora do meu corpo, mudou. Eu consigo assimilar muito mais facilmente os dois tipos de energia, trabalhar eles como se fossem diferentes, ou como se fossem a mesma coisa.

    — Hmm. Sabe rapaz — falou, finalmente, Kogo —, no estado em que ela estava, eu não imaginei que você fosse conseguir esse mérito, sinceramente eu achei que ela iria perder ainda mais o controle e quase morrer. Você superou qualquer expectativa minha lá… Que bom que eu te aceitei como aluno hehehe.

    Antes que Óscar pudesse dizer qualquer coisa, Kogo continuou.

    — Sabe, acho que está na hora de você ‘manifestar’. Não tem motivos para fugir disso — disse, bebendo o resto do chá.

    Óscar não disse nada, achou que não devia.

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