Capítulo 27: Lúcifer
— Acha que vai servir? — perguntou Astro para Óscar, que se alongava desconfortavelmente nas bandagens em volta do corpo. — Estamos com falta de pessoal agora, o ataque foi um baque forte demais, então não conseguimos dar assistência médica total.
Óscar olhou para ele e acenou para ele relaxar.
— Não se preocupe, graças a você não serei um completo inútil nas próximas lutas.
— Então já está pensando em voltar para as linhas de frente?
— Bem — Óscar virou-se para Cecília, que relaxava calmamente em uma poltrona acolchoada —, sinto que nosso próximo destino não vai ser fácil. Esse ataque à Guilda não foi o último, certo?
— Você está certo, não foi. Na verdade temo que outros lugares já tenham sido atacados também. O lado bom é que não existem muitos estabelecimentos renomados para atacar, então as mortes serão reduzidas.
— Pode nos falar sobre essa facção? A que atacou aqui? — perguntou Cecília.
— Posso dizer tanto quanto qualquer demônio que tenha certo renome…
Astro coçou o rosto, um pouco relutante. Depois foi mancando até uma cadeira e sentou-se, deixando apenas Óscar de pé na pequena sala médica.
— Muito bem — começou Astro. — A facção anti-anjos, ou facção de Babel, como eles gostam de se chamar, é o grupo rebelde que não ficou muito contente com o fim da última Guerra Imortal. Eles queriam o massacre completo dos anjos, além de não gostarem do novo Lorde Lúcifer, que assumiu o cargo do anterior.
Óscar já tinha ouvido fragmentos desse relato antes, mas cada vez mais a história parecia mais estranha e absurda.
Demônios não são irracionais, como alguns da igreja podem pensar. A mera ideia de que eles queriam o puro massacre parecia estúpida, mas ouvir esses fatos da boca de um demônio atestava a veracidade da informação.
Óscar pensou em quanto as raças eram realmente parecidas.
— Essa também foi a época onde o “boom” de desviantes aconteceu, pouco depois da morte de Lúcifer. Alguns anos depois, o novo Lúcifer tomou o trono, mas isso apenas irritou ainda mais os rebeldes, afinal, o atual Lúcifer é alguém que simplesmente não se afeiçoa pela guerra, nem odeia anjos. Dizem que a única coisa que lhe importa são as batalhas um contra um.
— Parece uma pessoa bem meiga — ironizou Cecília.
— Eu espero que realmente seja… Lúcifer nunca fez nenhum movimento para cessar a rebelião, mas agora que eles estão avançando tanto, temo que ele tome alguma atitude.
— Teme? — perguntou Óscar — Achei que era o que todos queriam, afinal os tempos de paz voltariam para Infernus, coisa assim.
— Isso na teoria. Vejam bem, vocês são fortes, mas conseguem sequer mensurar o poder de uma das duas grandes forças deste mundo? A escala de Lúcifer está além de qualquer rebelião. Meu medo é o que ele pode causar ao Mundo Inferior enquanto acaba com a revolta.
— Entendo onde você quer chegar.
Um silêncio caiu sobre a sala, deixando cada um com seu próprio pensamento obscuro.
Astro quebrou o silêncio.
— Mas ouvi rumores sobre uma arma secreta nas mãos dos rebeldes.
— Arma secreta? — indagou Cecília.
— Sim. Vejam bem, existem lendas por essa terra… Uma criatura milenar que quase acabou com o Mundo Inferior sozinha. O próprio Lúcifer teve que a capturar, já que ninguém conseguiu. Rumores dizem que essa besta está nas mãos da facção de Babel.
— Vamos torcer para que seja apenas um rumor então.
Óscar e Cecília trocaram olhares tensos.
*****
Ambos chegaram em frente à sede de Kai, passaram pela recepção e foram encontrar o Grão-Mestre e seu velho amigo.
Quando Kai os avistou, sua expressão tensa de preocupação suavizou um pouco.
— Kai — cumprimentou Óscar — Você não parece muito bem amigo.
— Bom ver vocês. E não estou mesmo, a revolta eclodiu completamente, Babel está atacando múltiplos pontos na cidade e não estamos nos melhores dias…
— Sim, a Guilda foi atacada quando estávamos lá, conseguimos ajudar o Astro, mas todo o resto foi massacrado.
— Nem os caçadores conseguiram fazer nada? Então é pior do que o chefe pensava.
— Onde está ele? Não quero soar indelicado, mas precisamos encontrar Lúcifer logo…
— Sim, eu sei, ele já organizou tudo, estávamos esperando vocês na verdade.
Kai conduziu todos até a sala de Veruhn. A pose do Grão-mestre estava pomposa como sempre, mas as rugas ao redor dos olhos afundados revelava sua preocupação.
— Chegaram então. Já era hora, a situação está agravando muito rápido, então prefiro lidar com vocês logo.
— Claro, aliás — interrompeu Óscar —, agora que estamos aqui, poderia pedir que sua funcionária parasse de nós seguir?
Veruhn abriu um pequeno, quase imperceptível, sorriso, suavizando suas expressões preocupadas.
— Que bom que eu os mandei para o deserto. Laura!
Uma figura invisível passou a ser vista por todos na sala, Cecília disfarçou muito bem sua surpresa, Kai nem tanto.
— É um prazer, meu nome é Laura, sou a imediata do Grão-mestre!
Sua voz era fina e penetrante, diferente do que Óscar imaginou.
— Fico surpresa que tenha me percebido. Sabe, me orgulho bastante de minhas habilidades furtivas.
— Posso ver o motivo, mas mesmo que esconda bem seu traço, a energia sempre age de forma descontrolada quando perto de pessoas.
— Posso ver que você evoluiu bastante, bom. Muito bom. Vai precisar disso.
— O que quer dizer? — perguntou Óscar, estranhando o tom de Veruhn.
— Você vai descobrir depois. Vamos agora.
Assim que saíram, Óscar foi barrado por uma muralha, ou assim pensou.
— Finalmente decidiu aparecer na cidade — disse a muralha.
— E quem seria você? — perguntou Óscar.
— Venho aqui buscar o relatório para o Conselho! Me diga como está a investigação.
Nesse ponto Óscar percebeu quem estava diante dele, e agradeceu por Kai ir apenas depois até a casa de Lúcifer.
— Eu irei pessoalmente até lá quando tiver terminado.
— Não é uma opção! Você foi mandado caçar um desviante chamado Kai, mas vejo que está aproveitando bem suas férias, ao invés de trabalhar.
— O que eu faço não é da conta da igreja, contanto que eu termine meu trabalho, não preciso do cãozinho deles vindo até aqui me encher o saco.
Óscar estava sendo deliberadamente hostil, mas tomando cuidado com cada palavra dita. Kogo havia alertado Óscar sobre esse homem, e o disse para não entrar em uma luta que não tivesse certeza de vitória.
— Sabe quem eu sou então?
— Fiz o dever de casa.
O homem de pele escura e com um sotaque forte estreitou os olhos. A energia divina ao redor dele era monstruosa, mais forte e mais desenfreada que a de Óscar. Claro, Óscar estava se contendo, deixando vazar apenas o bastante para que não fosse incomodado.
— Marcos, certo? A monstruosidade da igreja, o mais leal dos exorcistas. Isso não me interessa, diga ao Conselho que irei até eles em poucos dias, assim que acabar aqui.
Marcos fez uma carranca e foi embora, em uma velocidade absurda.
— Quem era esse? Não me lembro de ouvir o nome… — Cecília estava claramente perturbada.
— Um sujeito complicado, pra dizer o mínimo. Kogo me falou sobre ele uma vez.
— Eu também já ouvi sobre ele — interveio Veruhn — Marcos, o exorcista exemplar. Seu nome é famoso por aqui também, o mais capacitado dos exorcistas, além de ser extremamente dedicado à igreja.
— Foi o que ouvi também, mas a parte de ser o melhor dos exorcistas não é bem verdade. Conheço alguém mais forte…
*****
“Enorme”, foi o que Óscar pensou quando se deparou com o castelo de Lúcifer.
Uma estrutura composta de pedra lisa, que emitia uma aura sombria ao mesmo tempo em que se podia ver o próprio reflexo na estrutura.
Era um castelo em tudo, aparência, grandiosidade e potência. Digno de um dos grandes poderes desse mundo.
Foram encaminhados para um salão de espera, e alguns minutos depois foram convocados.
Cecília suava frio e Óscar se protegia de forma imperceptível, escondendo seu medo ao máximo.
Se viram em um grande salão, recheado de armaduras brilhantes e armas refinadas. Tinha meia dúzia de cavaleiros cercando a sala e, no centro, um enorme trono negro, com um crânio de um animal desconhecido atrás.
O tamanho do trono mostrou a imponência de Lúcifer. O crânio monstruoso mostrou sua força.
Poucos minutos se passaram enquanto Óscar admirava a sala escura adornada com armas e ouro, até que uma figura entrou.
Andando de forma alternada e pomposa, uma figura passou pelo grupo, sem se importar com os olhares estranhos.
Vestindo um robe vermelho rubro, portando na cabeça dois chifres que faziam uma curva e apontavam para frente novamente, a figura com poucas curvas se esparramou no trono.
— Eu já queria conhecer você há algum tempo, Óscar Cruz! — A voz era suave e feminina, mas a pressão era esmagadora.
— Você é…?
— Hm? Sim, eu sou Lúcifer, a soberana do Mundo Inferior etc etc. Por que pergunta, não é óbvio?
— É só que eu esperava que você fosse ser…
— Um cara?
Lúcifer fez um gesto de desapontamento para Óscar.
— Sempre confundem, deve ser o título masculino. Mas é meio irônico, já que a maioria dos que herdaram o título de Lúcifer eram mulheres.
— E por que queria me conhecer? Não fiz tanta coisa a ponto de chegar em alguém do seu nível.
— Oho, me sinto muito honrada pelas palavras — disse Lúcifer, ironicamente. — Acontece que eu sei uma coisa ou outra sobre você já faz um tempinho. Mas deixe isso pra depois, me diga o que quer.
Óscar sentiu malícia na fala dela, mas decidiu ignorar por hora.
— É sobre a igreja, descobrimos algumas coisas ruins recentemente e… — Óscar engasgou sob o olhar predatório da garota na sua frente. — Nós achamos que o Conselho está gerando desviantes há pelo menos uns 10 anos, desde a última guerra.
— Então querem minha ajuda para acabar com eles, é isso?
O tom dela era nada inspirador, quase decepcionado.
— Não — disse Cecília — Queremos que não haja contra eles. A informação iria chegar até você de toda forma, então decidimos vir até aqui pra te pedir isso, não queremos que outra guerra aconteça aqui, então…
Lúcifer levantou a mão para calar Cecília.
— Que garota mais determinada você é. Olhem, eu não gosto de guerras também, ainda mais contra a igreja, eles são fraquinhos em sua maioria. Mas não posso deixar isso passar também, afinal, os desviantes são parte do meu povo.
Enquanto dizia isso, sua postura se endireitou e seu tom se tornou duro, fazendo Cecília recuar um pouco.
— Tem algo que possamos fazer por você? Algo em troca de nos deixar lidar com a situação sozinhos?
Lúcifer teve um leve brilho no olhar quando Óscar disse isso.
— Sabe, existe atualmente uma revolta acontecendo nas minhas terras… — disse, olhando ao redor para disfarçar suas intenções, enquanto brincava com uma mecha do longo cabelo negro.
— Sério isso?
— Seríssimo!
Óscar esperava algo do tipo. A fama de Lúcifer era de preguiçoso e que não gostava de se meter em conflitos assim. Então no fundo ele imaginava um pedido desses.
— Façamos assim: elimine a revolta e eu deixo passar isso com a igreja, contanto que vocês lidem com ela. Concorda?
— Acho que não temos outra escolha. — Olhou para Cecília enquanto dizia isso.
Veruhn assentiu para si mesmo, silenciosamente.
— O que precisamos fazer?
— Primeiro vai ser testado por mim, venham!
Lúcifer conduziu, a passos rápidos, todos para uma arena enorme. Chegando lá disse para Óscar: — Você vai lutar comigo aqui, se falhar no teste, morre e eu extermino a igreja.
— O quê? — exclamou, exasperado. — Tá de sacanagem?
— Você quer minha ajuda, certo? Então deve conseguir pelo menos me entreter um pouquinho.
Óscar olhou para Cecília, pedindo socorro mentalmente.
— E se eu recusar? — disse por fim.
— Vai morrer também, e matarei também sua namorada.
Um sorriso diabólico adornava o rosto de Lúcifer, daí Óscar entendeu a situação onde estava agora.
— Tudo bem.
— Tem certeza disso? — perguntou Cecília, antes que ele seguisse Lúcifer para o centro da arena.
— Não tenho escolha aqui. Mas não se preocupe, não acho que ela vai com tudo.
— Boa sorte lá rapaz, não a subestime, ela é a segunda potência mais forte desse universo inteiro.
Óscar acenou em concordância e seguiu atrás de Lúcifer.
Ela casualmente tirou a manta que estava usando, revelando roupas bem fixas de treino. Com outro movimento casual, liberou sua energia abissal, fazendo com que Óscar desejasse nunca ter nascido.
— É melhor não me decepcionar, espero isso faz um tempo.
— Eu vou tentar.
Óscar parou de prender seu fluxo e fez a sala ficar pesada de tanta energia condensada fluindo de dentro para fora e vice-versa.
— Espera um pouco aí — gritou uma voz nova.
— Hm?
— Faz só umas semanas que deixei você pra trás e se meteu nessa situação? Inacreditável…
Óscar então percebeu quem se aproximava deles.
— Não é como se eu quisesse isso.
— Se importam se eu me juntar?
— Goda, o que faz aqui? — disse Lúcifer, surpreendendo Óscar.
— Tinha alguns negócios para tratar, mas me deparei com essa… seja lá o que for isso aqui.
— Bem, eu não me importo, dois de vocês vai ser uma diversão maior.
— Tem certeza que quer se meter nisso? — perguntou Óscar.
— Sabe com quem está falando? Hehe vai ser divertido. — Goda estava alegre, mas a testa suava visivelmente.
Goda parou ao lado de Óscar e manifestou duas manoplas de energia.
— Ei irmão — chamou Goda. — Não se segure aqui, ataque para matar.
— O quê?
— Não faça essa cara, olhe quem iremos enfrentar. Se você tratar ela como uma pessoa, vai morrer. Aja como se estivesse caçando uma besta. A besta mais forte do mundo.
Óscar engoliu em seco, percebendo a seriedade dessas palavras.
— Certo.
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