— Acha que vai servir? — perguntou Astro para Óscar, que se alongava desconfortavelmente nas bandagens em volta do corpo. — Estamos com falta de pessoal agora, o ataque foi um baque forte demais, então não conseguimos dar assistência médica total.

    Óscar olhou para ele e acenou para ele relaxar.

    — Não se preocupe, graças a você não serei um completo inútil nas próximas lutas.

    — Então já está pensando em voltar para as linhas de frente?

    — Bem — Óscar virou-se para Cecília, que relaxava calmamente em uma poltrona acolchoada —, sinto que nosso próximo destino não vai ser fácil. Esse ataque à Guilda não foi o último, certo?

    — Você está certo, não foi. Na verdade temo que outros lugares já tenham sido atacados também. O lado bom é que não existem muitos estabelecimentos renomados para atacar, então as mortes serão reduzidas.

    — Pode nos falar sobre essa facção? A que atacou aqui? — perguntou Cecília.

    — Posso dizer tanto quanto qualquer demônio que tenha certo renome… 

    Astro coçou o rosto, um pouco relutante. Depois foi mancando até uma cadeira e sentou-se, deixando apenas Óscar de pé na pequena sala médica.

    — Muito bem — começou Astro. — A facção anti-anjos, ou facção de Babel, como eles gostam de se chamar, é o grupo rebelde que não ficou muito contente com o fim da última Guerra Imortal. Eles queriam o massacre completo dos anjos, além de não gostarem do novo Lorde Lúcifer, que assumiu o cargo do anterior.

    Óscar já tinha ouvido fragmentos desse relato antes, mas cada vez mais a história parecia mais estranha e absurda.

    Demônios não são irracionais, como alguns da igreja podem pensar. A mera ideia de que eles queriam o puro massacre parecia estúpida, mas ouvir esses fatos da boca de um demônio atestava a veracidade da informação.

    Óscar pensou em quanto as raças eram realmente parecidas.

    — Essa também foi a época onde o “boom” de desviantes aconteceu, pouco depois da morte de Lúcifer. Alguns anos depois, o novo Lúcifer tomou o trono, mas isso apenas irritou ainda mais os rebeldes, afinal, o atual Lúcifer é alguém que simplesmente não se afeiçoa pela guerra, nem odeia anjos. Dizem que a única coisa que lhe importa são as batalhas um contra um.

    — Parece uma pessoa bem meiga — ironizou Cecília.

    — Eu espero que realmente seja… Lúcifer nunca fez nenhum movimento para cessar a rebelião, mas agora que eles estão avançando tanto, temo que ele tome alguma atitude.

    — Teme? — perguntou Óscar — Achei que era o que todos queriam, afinal os tempos de paz voltariam para Infernus, coisa assim.

    — Isso na teoria. Vejam bem, vocês são fortes, mas conseguem sequer mensurar o poder de uma das duas grandes forças deste mundo? A escala de Lúcifer está além de qualquer rebelião. Meu medo é o que ele pode causar ao Mundo Inferior enquanto acaba com a revolta.

    — Entendo onde você quer chegar.

    Um silêncio caiu sobre a sala, deixando cada um com seu próprio pensamento obscuro.

    Astro quebrou o silêncio.

    — Mas ouvi rumores sobre uma arma secreta nas mãos dos rebeldes. 

    — Arma secreta? — indagou Cecília.

    — Sim. Vejam bem, existem lendas por essa terra… Uma criatura milenar que quase acabou com o Mundo Inferior sozinha. O próprio Lúcifer teve que a capturar, já que ninguém conseguiu. Rumores dizem que essa besta está nas mãos da facção de Babel.

    — Vamos torcer para que seja apenas um rumor então.

    Óscar e Cecília trocaram olhares tensos.

    *****

    Ambos chegaram em frente à sede de Kai, passaram pela recepção e foram encontrar o Grão-Mestre e seu velho amigo.

    Quando Kai os avistou, sua expressão tensa de preocupação suavizou um pouco.

    — Kai — cumprimentou Óscar — Você não parece muito bem amigo.

    — Bom ver vocês. E não estou mesmo, a revolta eclodiu completamente, Babel está atacando múltiplos pontos na cidade e não estamos nos melhores dias…

    — Sim, a Guilda foi atacada quando estávamos lá, conseguimos ajudar o Astro, mas todo o resto foi massacrado.

    — Nem os caçadores conseguiram fazer nada? Então é pior do que o chefe pensava.

    — Onde está ele? Não quero soar indelicado, mas precisamos encontrar Lúcifer logo…

    — Sim, eu sei, ele já organizou tudo, estávamos esperando vocês na verdade.

    Kai conduziu todos até a sala de Veruhn. A pose do Grão-mestre estava pomposa como sempre, mas as rugas ao redor dos olhos afundados revelava sua preocupação.

    — Chegaram então. Já era hora, a situação está agravando muito rápido, então prefiro lidar com vocês logo.

    — Claro, aliás — interrompeu Óscar —, agora que estamos aqui, poderia pedir que sua funcionária parasse de nós seguir?

    Veruhn abriu um pequeno, quase imperceptível, sorriso, suavizando suas expressões preocupadas.

    — Que bom que eu os mandei para o deserto. Laura!

    Uma figura invisível passou a ser vista por todos na sala, Cecília disfarçou muito bem sua surpresa, Kai nem tanto.

    — É um prazer, meu nome é Laura, sou a imediata do Grão-mestre!

    Sua voz era fina e penetrante, diferente do que Óscar imaginou.

    — Fico surpresa que tenha me percebido. Sabe, me orgulho bastante de minhas habilidades furtivas.

    — Posso ver o motivo, mas mesmo que esconda bem seu traço, a energia sempre age de forma descontrolada quando perto de pessoas.

    — Posso ver que você evoluiu bastante, bom. Muito bom. Vai precisar disso.

    — O que quer dizer? — perguntou Óscar, estranhando o tom de Veruhn.

    — Você vai descobrir depois. Vamos agora.

    Assim que saíram, Óscar foi barrado por uma muralha, ou assim pensou.

    — Finalmente decidiu aparecer na cidade — disse a muralha.

    — E quem seria você? — perguntou Óscar.

    — Venho aqui buscar o relatório para o Conselho! Me diga como está a investigação.

    Nesse ponto Óscar percebeu quem estava diante dele, e agradeceu por Kai ir apenas depois até a casa de Lúcifer.

    — Eu irei pessoalmente até lá quando tiver terminado.

    — Não é uma opção! Você foi mandado caçar um desviante chamado Kai, mas vejo que está aproveitando bem suas férias, ao invés de trabalhar.

    — O que eu faço não é da conta da igreja, contanto que eu termine meu trabalho, não preciso do cãozinho deles vindo até aqui me encher o saco.

    Óscar estava sendo deliberadamente hostil, mas tomando cuidado com cada palavra dita. Kogo havia alertado Óscar sobre esse homem, e o disse para não entrar em uma luta que não tivesse certeza de vitória.

    — Sabe quem eu sou então?

    — Fiz o dever de casa.

    O homem de pele escura e com um sotaque forte estreitou os olhos. A energia divina ao redor dele era monstruosa, mais forte e mais desenfreada que a de Óscar. Claro, Óscar estava se contendo, deixando vazar apenas o bastante para que não fosse incomodado.

    — Marcos, certo? A monstruosidade da igreja, o mais leal dos exorcistas. Isso não me interessa, diga ao Conselho que irei até eles em poucos dias, assim que acabar aqui.

    Marcos fez uma carranca e foi embora, em uma velocidade absurda.

    — Quem era esse? Não me lembro de ouvir o nome… — Cecília estava claramente perturbada.

    — Um sujeito complicado, pra dizer o mínimo. Kogo me falou sobre ele uma vez. 

    — Eu também já ouvi sobre ele — interveio Veruhn — Marcos, o exorcista exemplar. Seu nome é famoso por aqui também, o mais capacitado dos exorcistas, além de ser extremamente dedicado à igreja.

    — Foi o que ouvi também, mas a parte de ser o melhor dos exorcistas não é bem verdade. Conheço alguém mais forte…

    *****

    “Enorme”, foi o que Óscar pensou quando se deparou com o castelo de Lúcifer.

    Uma estrutura composta de pedra lisa, que emitia uma aura sombria ao mesmo tempo em que se podia ver o próprio reflexo na estrutura.

    Era um castelo em tudo, aparência, grandiosidade e potência. Digno de um dos grandes poderes desse mundo.

    Foram encaminhados para um salão de espera, e alguns minutos depois foram convocados.

    Cecília suava frio e Óscar se protegia de forma imperceptível, escondendo seu medo ao máximo.

    Se viram em um grande salão, recheado de armaduras brilhantes e armas refinadas. Tinha meia dúzia de cavaleiros cercando a sala e, no centro, um enorme trono negro, com um crânio de um animal desconhecido atrás.

    O tamanho do trono mostrou a imponência de Lúcifer. O crânio monstruoso mostrou sua força.

    Poucos minutos se passaram enquanto Óscar admirava a sala escura adornada com armas e ouro, até que uma figura entrou.

    Andando de forma alternada e pomposa, uma figura passou pelo grupo, sem se importar com os olhares estranhos.

    Vestindo um robe vermelho rubro, portando na cabeça dois chifres que faziam uma curva e apontavam para frente novamente, a figura com poucas curvas se esparramou no trono.

    — Eu já queria conhecer você há algum tempo, Óscar Cruz! — A voz era suave e feminina, mas a pressão era esmagadora.

    — Você é…?

    — Hm? Sim, eu sou Lúcifer, a soberana do Mundo Inferior etc etc. Por que pergunta, não é óbvio?

    — É só que eu esperava que você fosse ser…

    — Um cara?

    Lúcifer fez um gesto de desapontamento para Óscar.

    — Sempre confundem, deve ser o título masculino. Mas é meio irônico, já que a maioria dos que herdaram o título de Lúcifer eram mulheres.

    — E por que queria me conhecer? Não fiz tanta coisa a ponto de chegar em alguém do seu nível.

    — Oho, me sinto muito honrada pelas palavras — disse Lúcifer, ironicamente. — Acontece que eu sei uma coisa ou outra sobre você já faz um tempinho. Mas deixe isso pra depois, me diga o que quer.

    Óscar sentiu malícia na fala dela, mas decidiu ignorar por hora.

    — É sobre a igreja, descobrimos algumas coisas ruins recentemente e… — Óscar engasgou sob o olhar predatório da garota na sua frente. — Nós achamos que o Conselho está gerando desviantes há pelo menos uns 10 anos, desde a última guerra. 

    — Então querem minha ajuda para acabar com eles, é isso?

    O tom dela era nada inspirador, quase decepcionado.

    — Não — disse Cecília — Queremos que não haja contra eles. A informação iria chegar até você de toda forma, então decidimos vir até aqui pra te pedir isso, não queremos que outra guerra aconteça aqui, então…

    Lúcifer levantou a mão para calar Cecília.

    — Que garota mais determinada você é. Olhem, eu não gosto de guerras também, ainda mais contra a igreja, eles são fraquinhos em sua maioria. Mas não posso deixar isso passar também, afinal, os desviantes são parte do meu povo. 

    Enquanto dizia isso, sua postura se endireitou e seu tom se tornou duro, fazendo Cecília recuar um pouco.

    — Tem algo que possamos fazer por você? Algo em troca de nos deixar lidar com a situação sozinhos?

    Lúcifer teve um leve brilho no olhar quando Óscar disse isso.

    — Sabe, existe atualmente uma revolta acontecendo nas minhas terras… — disse, olhando ao redor para disfarçar suas intenções, enquanto brincava com uma mecha do longo cabelo negro.

    — Sério isso?

    — Seríssimo!

    Óscar esperava algo do tipo. A fama de Lúcifer era de preguiçoso e que não gostava de se meter em conflitos assim. Então no fundo ele imaginava um pedido desses.

    — Façamos assim: elimine a revolta e eu deixo passar isso com a igreja, contanto que vocês lidem com ela. Concorda?

    — Acho que não temos outra escolha. — Olhou para Cecília enquanto dizia isso.

    Veruhn assentiu para si mesmo, silenciosamente.

    — O que precisamos fazer?

    — Primeiro vai ser testado por mim, venham!

    Lúcifer conduziu, a passos rápidos, todos para uma arena enorme. Chegando lá disse para Óscar: — Você vai lutar comigo aqui, se falhar no teste, morre e eu extermino a igreja.

    — O quê? — exclamou, exasperado. — Tá de sacanagem?

    — Você quer minha ajuda, certo? Então deve conseguir pelo menos me entreter um pouquinho.

    Óscar olhou para Cecília, pedindo socorro mentalmente.

    — E se eu recusar? — disse por fim.

    — Vai morrer também, e matarei também sua namorada.

    Um sorriso diabólico adornava o rosto de Lúcifer, daí Óscar entendeu a situação onde estava agora.

    — Tudo bem.

    — Tem certeza disso? — perguntou Cecília, antes que ele seguisse Lúcifer para o centro da arena.

    — Não tenho escolha aqui. Mas não se preocupe, não acho que ela vai com tudo.

    — Boa sorte lá rapaz, não a subestime, ela é a segunda potência mais forte desse universo inteiro.

    Óscar acenou em concordância e seguiu atrás de Lúcifer.

    Ela casualmente tirou a manta que estava usando, revelando roupas bem fixas de treino. Com outro movimento casual, liberou sua energia abissal, fazendo com que Óscar desejasse nunca ter nascido.

    — É melhor não me decepcionar, espero isso faz um tempo.

    — Eu vou tentar.

    Óscar parou de prender seu fluxo e fez a sala ficar pesada de tanta energia condensada fluindo de dentro para fora e vice-versa.

    — Espera um pouco aí — gritou uma voz nova.

    — Hm?

    — Faz só umas semanas que deixei você pra trás e se meteu nessa situação? Inacreditável…

    Óscar então percebeu quem se aproximava deles.

    — Não é como se eu quisesse isso.

    — Se importam se eu me juntar?

    — Goda, o que faz aqui? — disse Lúcifer, surpreendendo Óscar.

    — Tinha alguns negócios para tratar, mas me deparei com essa… seja lá o que for isso aqui. 

    — Bem, eu não me importo, dois de vocês vai ser uma diversão maior.

    — Tem certeza que quer se meter nisso? — perguntou Óscar.

    — Sabe com quem está falando? Hehe vai ser divertido. — Goda estava alegre, mas a testa suava visivelmente.

    Goda parou ao lado de Óscar e manifestou duas manoplas de energia.

    — Ei irmão — chamou Goda. — Não se segure aqui, ataque para matar.

    — O quê?

    — Não faça essa cara, olhe quem iremos enfrentar. Se você tratar ela como uma pessoa, vai morrer. Aja como se estivesse caçando uma besta. A besta mais forte do mundo.

    Óscar engoliu em seco, percebendo a seriedade dessas palavras.

    — Certo.

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