Pelo flanco, Cecília, pelo flanco! — berrou Óscar enquanto redirecionava os movimentos de Cecília em direção ao demônio que estavam enfrentando.

    — Eu sei, eu sei! Mas ele é muito rápido — retrucou Cecília, dando uma meia pirueta para escapar de um golpe chicote que quase a atingiu.

    — Muito bem — disse Óscar, enquanto tomava impulso em direção ao monstro.

    Óscar deslizou por baixo do chicote, que vinha de maneira veloz e ereta em sua direção. Com um movimento de pulso para cima, cortou o membro, dando lugar à uma cascata sangrenta seguida de um urro assustador.

    — AGORA! 

    Cecília aproveitou a deixa de Óscar para avançar ferozmente em direção ao demônio. Agarrou seu braço esquerdo, o único que lhe sobrara, o girou no ar seguido por um tombo arrebatador e, por fim, cravou sua lâmina de luz no peito da criatura.

    Ela parou de se mexer em alguns segundos.

    — Boa! — parabenizou Óscar, erguendo sua mão para Cecília, que retribuiu com um leve tapa — Essa sua lâmina realmente é assombrosa em… 

    — O quê? Achou que só você tinha um Manifestar incrível? 

    — Longe disso, mas… a forma como se movimenta… talvez eu possa tentar imitar algo semelhante nos meus treinos. Se eu cadenciar a frequência de explosão e condensar a implosão… não… não funcionaria assim. Talvez…

    Óscar foi tirado de seus pensamentos por um soco fraco na cabeça.

    — Não dê uma de nerd agora, vamos pra casa — disse Cecília, com um sorriso no rosto.

    As semanas três e quatro passaram rapidamente conforme Óscar e Cecília se aprimoraram, ambos tinham alcançado o Manifestar e, aos poucos, o dominaram.

    Cecília atingiu o feito logo após Óscar, muito mais rápido do que Kogo imaginou. A habilidade da garota consistia em imbuir matéria com energia, fazendo-a tomar uma forma cortante. Não era uma habilidade rara, mas o fato de que ela conseguia fazer isso nas próprias mãos nuas era inédito.

    A arte de malear energia era fácil, até os mais fracos exorcistas conseguiam atingir o nível básico da proteção energética. No entanto, a ideia em si de como funcionava a energia é algo que apenas os mais capacitados conseguem desvendar, alguns chamam de talento.

    Óscar era abençoado com o talento, alguns diriam, mas não é como se isso bastasse; Óscar descobriu isso da maneira mais difícil.

    Nas duas semanas finais do treinamento, Óscar decidiu focar em aperfeiçoar o pouco que já sabia. Embora tenha talento natural para a coisa, ainda assim não era muito experiente e muito menos versado na teoria, o que o levou a se machucar em algumas de suas caçadas.

    Algumas dicas de Kogo o ajudaram a melhorar consideravelmente seu controle, mas como a Maré Energética não era uma técnica conhecida por ninguém, Óscar teria que fazer tudo por si só.

    Seu novo treinamento inicialmente consistia em: treino físico de manhã, mental à tarde e ao anoitecer se focava no desenvolvimento técnico, treinando juntamente com Cecília.

    Essa rotina foi mantida durante os primeiros dias, mas logo sofreu certas alterações conforme Óscar se aprimorava. A velocidade com que progredia se mostrou absurdamente rápida e constante. No entanto, não havia a menor possibilidade de se tornar incrivelmente forte em apenas quatro semanas, Óscar tinha ciência desse fato.

    Em uma certa noite, quando Óscar e Cecília estavam esgotados do treino, ambos aproveitaram para ter uma conversa. De maneira incomum, Cecília disse primeiro:

    — O que pretende fazer quando acabarmos nosso trabalho?

    — Você diz quando matarmos Beelzebub? Bom, acho que não tem muito o que se fazer, né?

    — No final das contas, eu não tenho mais lar nem família para retornar. Minha casa virou um ninho de demônio e minha mãe, sua presa… E quanto a você? Ainda tem seus pais, certo?

    — Sim, eu tenho… — Parou um momento, mas continuou a dizer — Mas não tenho intenções de voltar para casa! Meus pais provavelmente vão se sair melhor sem o “filho estorvo”. E pra falar a verdade…

    Óscar tinha certos assuntos que nunca abordou com ninguém, nem mesmo ousava pensar sobre algumas coisas. Mas nessa noite foi diferente. Óscar escolheu abordar um tema que o afetava profundamente, e que talvez o tenha colocado na situação em que estava.

    — Sabe, em um dos últimos dias que estive com meu amigo, aquele que salvou minha vida, sabe? — disse, esperando confirmação de Cecília — Ele comentou sobre meu avô, e como talvez ele seja a razão para Beelzebub ter me atacado. Escolhi não pensar muito nisso até agora, mas o treino já está acabando e eu não tenho intenção de voltar para casa; isso me leva a pensar que talvez eu queira entender mais sobre minha origem.

    A noite estava mais clara do que o normal, uma grande bola branca brilhava no céu, iluminando as feições vazias de Óscar e Cecília. Óscar estava franzindo profundamente a testa enquanto falava.

    — Cruz… apenas esse nome foi o bastante para invocar a fúria de um demônio. Além do mais, as circunstâncias do sumiço do meu avô não são lá muito naturais também. Acho que vou tentar procurar minha origem.

    — E acha que vai ter sucesso?

    — Talvez, não tem como saber. Fato é que meu talento sobrenatural provavelmente é derivado da minha linhagem, não posso ignorar isso. Mas também não é como se eu fosse dedicar minha vida ao estudo genealógico da minha família — disse Óscar, suavizando sua face — No final das contas, o estudo da energia é algo que me agrada bastante, e tenho diversas teorias que quero colocar em prática um dia. Cara… bem que eu gostaria de ir aos mundos Inferior e Superior…

    — Huumm, explorar o resto do mundo em… — disse Cecília, olhando para o céu — Bom, vai ser uma aventura mesmo! Acho que vou gostar de te acompanhar.

    Com essa afirmação repentina, Óscar assumiu uma expressão surpresa. Mas não quis tentar discutir nada, apenas sorriu levemente e disse: 

    — Claro que vai.

    *****

    O último dia finalmente chegou, mas isso não era impedimento para os treinos de Óscar.

    Antes que amanhecesse, Óscar estava de pé. Se dirigiu para fora de casa e começou seu treinamento físico.

    Como todos os dias, fez 20 quilômetros correndo, o que lhe custou 2 horas e meia. Após isso, fez 300 flexões, 300 abdominais e 500 agachamentos. Seguidamente, desferiu 3000 socos no ar e 3000 chutes, 1500 chutes meia-lua com a perna esquerda e depois o mesmo com a perna direita.

    Era o esquema de treino físico dele. Era uma rotina que se manteria durante muito tempo na vida de Óscar, não porque precisava melhorar seu físico, mas porque mantinha sua mente sã.

    Quando Óscar acabou, olhou para seus pesos que agora chegavam aos 100kg. Era humanamente impossível realizar esse treinamento, Óscar sabia disso. Dado esse fato, ele se deu conta novamente de quão incrível era sua proteção energética por lhe proporcionar os meios para executar esse treino.

    — Bom dia — cumprimentou Kogo — Já finalizou seu treinamento? Ótimo! Reúna Cecília e vamos à cratera.

    Óscar executou a ordem e se sentou, junto de Cecília, no chão duro e frio da cratera.

    — Muito bem — disse Kogo, fitando friamente ambos — Esse é o último dia que passarão aqui. Com isso, quero ditar como será esse último dia e o que farão depois.

    Óscar e Cecília estavam quietos, ouvindo atentamente as palavras do homem que os treinou arduamente durante esse pouco tempo.

    — Cecília! Você treinou durante menos tempo que Óscar, mas ainda assim creio que está apta para ir embora. Você é dotada de um talento enorme no que diz respeito a controle de energia. Caso se foque nisso, creio que será capaz de localizar, controlar e mobilizar qualquer tipo de energia tão bem, ou até melhor, do que Óscar.

    Essas palavras feriram o pouco orgulho de Óscar, mas ele sabia que era verdade. Cecília se mostrou extremamente talentosa no que diz respeito ao controle de sua energia. E Óscar pensava que em breve ela até mesmo seria capaz de dominar a Maré Energética.

    — Óscar! — O olhar de Kogo baixou no rapaz — Você com certeza foi um achado neste mundo. Seu controle, compreensão e reservatório de energia estão fora da curva em todos os aspectos. Não acho que precise de muitos ensinamentos além do básico que já lhe ensinei. Mas não deixe isso lhe subir à cabeça, levante-se!

    Óscar obedeceu.

    Kogo o disse para tirar todo o peso que o acompanhou durante 3 semanas infernais. Óscar não se sentiu apenas mais leve, ele também percebeu os seus limites.

    — O que irá acontecer agora é o seguinte: Óscar vai me atacar com tudo o que tem. Depois disso ambos irão comer, arrumar suas coisas e meter o pé da minha casa. Seguirão para a casa de Cecília a pé, não deve ser problema, e lá irão matar Beelzebub. Essa é a missão de vocês, podem fazer o que quiserem depois disso!

    As palavras foram duras e com certeza impactaram ambos, mas nem Óscar nem Cecília foram contra. Exceto por um detalhe.

    — É sério que temos que lutar? — perguntou Óscar, meio receoso.

    — Sim, não há espaço para discussão!

    — É só que…

    Antes que Óscar pudesse concluir sua fala, a atmosfera pesou.

    No primeiro dia que Óscar chegou na casa de Kogo, sentiu algo semelhante. Uma aura sufocante e assustadora, no entanto, dessa vez era muito diferente. A intenção por trás da aura não era intimidadora, era assassina.

    Óscar imediatamente assumiu postura de luta e ativou uma densa camada protetora, foi instinto, não desejo. O corpo de Óscar sabia que iria morrer.

    Kogo avançou. 

    Um punho pesado atingiu Óscar no rosto, ou era o que teria acontecido caso ele não tivesse se defendido com seu antebraço. Embora tenha se defendido do ataque, Óscar voou para fora da cratera, raspando na borda e quebrando um pedaço.

    Antes que pudesse se reerguer, Óscar viu Kogo deslizar um chute em formato circular direto no ombro de Óscar. Dessa vez acertou em cheio.

    Encurralado, Óscar ativou seu despertar.

    O despertar é uma técnica que concede ao usuário um poder imenso. Basicamente, libera todo seu potencial de forma explosiva durante um curto período de tempo. Kogo disse que os exorcistas conseguem manter essa técnica durante um período de 30 segundos mais ou menos. Óscar nesse momento conseguia manter o despertar durante 3 minutos.

    Kogo não disse uma palavra, na verdade nem mesmo levantou a guarda, continuou como se nada tivesse mudado.

    Kogo desferiu mais um golpe, dessa vez um gancho direto, seguido de uma rasteira e por fim, uma finta. No entanto, dessa vez Óscar conseguiu interceptar seus movimentos. Se esquivou para trás antes que a rasteira o atingisse, logo em seguida avançou rapidamente e desferiu um golpe martelo direto no crânio de Kogo. Este, por sua vez, apenas se esquivou para a esquerda e recuou um pouco.

    Óscar estava perplexo. Estava usando seu máximo na luta, mas ainda assim não surtia efeito em Kogo. O homem permanecia inabalável e continuava em constante avanço.

    Óscar mudou sua estratégia. Parou de defender e tomou impulso até Kogo, o atingindo com um chute giratório na perna esquerda, após isso desferiu um soco no rosto do homem. Kogo deu uma pirueta para trás e, sobre uma mão, chutou Óscar em direção à cratera novamente.

    No momento em que Óscar se levantou, parou e se ajoelhou novamente. Uma aura muito intensa percorreu sua espinha, mas isso não era nada comparado à figura diabólica que estava em sua frente. 

    Óscar conheceu a sensação de morrer uma vez, testemunhou seus ossos sendo esmagados e seus órgãos sendo massacrados. Mas nada o causou tanto medo quanto o que estava vendo agora.

    Kogo caminhava lentamente em direção ao pequeno cordeiro amedrontado. Sua aura aparentava ter cerca de 5 metros de largura, se expandindo a partir do peito de Kogo. O homem não tinha expressão e sua energia era negra, puramente negra. Seus passos rachavam o chão por onde passava, e seus olhos fixaram nos de Óscar.

    Eu vou morrer”. Esse foi o pensamento mais genuíno de Óscar perante a situação.

    Quando Kogo esticou sua mão até Óscar, a atmosfera se tornou leve e toda a energia de Kogo estava retraída novamente, ele estava estendendo sua mão e dizendo: — Vamos, se levante. Já deu de aquecimento hoje.

    *****

    Óscar, Cecília e Kogo estavam sentados à mesa, desfrutando de um jantar agradável.

    — Mas ainda assim, não imaginei que você fosse desmaiar — disse Kogo, direcionado à Cecília.

    — Me desculpe… — disse a garota, cabisbaixa e claramente envergonhada — Não sei o que houve, um momento estava vendo você lá, de pé, e no outro estava acordando na cama.

    — Bom, acho que exagerei um pouco também, hehehe!

    Óscar estava pensativo, a situação para ele era absurda, tamanho poder era completamente irreal para ele. Óscar estava completamente derrotado.

    — Ei, acha que tenho chances contra Beelzebub?

    — Sim, eu acho — confirmou Kogo, de braços cruzados e olhar sério — Na verdade você durou até que muito, meu plano era te destruir mentalmente, mas não acho que cheguei nem perto disso… 

    Kogo começou a coçar o queixo enrugado.

    — Olha, garoto… Aquela luta foi explicitamente para te mostrar o que é poder de verdade. Fiz isso para que você não relaxe nos treinos e muito menos subestime seus oponentes. Beelzebub não é mais forte, mas é mais experiente e malicioso, mantenha isso em mente.

    — Certo, mestre!

    Kogo não pode deixar de sorrir ao ouvir essas palavras. 

    A noite acabou com Óscar e Cecília se despedindo de Kogo. Ambos partiram em direção à casa de Cecília.

    Nota