Ao passar pelo portal, Cecília e Óscar tiveram um pequeno momento de cegueira para se adaptar à mudança abrupta de cenário.

    Cecília levou a mão sobre os olhos, Óscar apenas os fechou.

    — Uaaa — soltou Óscar, com a visão ainda se acostumando ao cenário inédito.

    Até onde ele via, uma gigantesca cidade se estendia. Cercada completamente por muros enormes que a protegia de… absolutamente nada. Fora dos muros, um grande deserto vermelho ocupava a visão, mas a cidade era tão abissal e sufocante que era como se o deserto não existisse.

    O trio estava no topo de uma pequena montanha localizada a 40 metros de distância da cidade, e ainda assim a movimentação lá dentro era tão opressora que tirou o ar de Cecília.

    — Bem-vindos a cidade de Infernus! O maior e único centro populacional do Mundo Inferior — exclamou Goda, abrindo os braços e seguindo em direção à cidade com um sorriso sugestivo e largo no rosto.

    Óscar e Cecília seguiram logo atrás, vislumbrando cada canto da cidade que podiam.

    Ao receberem permissão para entrar em Infernus, a visão dos três foi obliterada pela dinâmica bruta de pessoas.

    A cidade gigante era rodeado por casas feitas de blocos maciços de pedra lisa, o mesmo material da muralha, o que dava à cidade uma visão uniforme de estética fria.

    Cada casa era igual de certa forma mas diferente de outra. Os telhados eram iguais, mas os adornos sobre a janela eram distintos entre si. As pequenas calçadas eram todas feitas de mármore seco e mal polido, mas ao redor a forma das caixas de correios eram abstratas e estranhas. Depois das janelas, as casas eram pintadas de cinza claro com um sofá no centro de cada sala, mas cada capa de sofá era única de sua maneira, e cada indivíduo de pele cinzenta também tinha feições diferentes de seus semelhantes.

    Sim, é claro, os indivíduos cinzentos.

    Após se acostumar ligeiramente com a cidade e sua estranha arquitetura, Óscar reparou nas pessoas ao seu redor.

    Eram de fato pessoas, mas não brancas nem negras, como as de sua sociedade. Cada pessoa era adornada com um colar preto exclusivo, um tipo de crença comum. Para cada pessoa, um tom de cinza diferente marcava a pele. Eram demônios, de fato.

    Mais do que o formato da cidade, a quantidade de demônios ao redor de Óscar o pegou muito mais desprevenido.

    Eram centenas de demônios circulando pela cidade de forma não desordenada, mas confusa, como se o objetivo fosse claro mas os caminhos fossem turvos.

    Mas claro, o trio estava na cidade dos demônios, não era estranho terem… demônios ali.

    Após caminhar por cerca de uma hora, Goda parou e olhou para seus companheiros.

    — Bem, vamos nos separar aqui. Tenho alguns assuntos para tratar e vocês também.

    — É claro — respondeu Óscar, afastando uma mosca com a mão — Alguma dica para nós virarmos por aqui? 

    — Imagino que este seja o centro, correto? — Cecília finalizou.

    — Na verdade não, mas sim.

    Óscar e Cecília trocaram um olhar curioso.

    — Este é de fato o centro, mas apenas um deles. — Goda tomou um tempo para reunir as palavras — Na verdade, como essa é a única cidade do Mundo Inferior, ter apenas um centro era problemático. Lúcifer então separou o “centro” em três, e os denominou em áreas afastadas umas das outras aqui.

    — A única cidade…

    Óscar deixou as palavras no ar.

    — Exato, então é bom deixar avisado que não vão conseguir turistar por aí em uma única semana ou coisa assim. Aliás — Interrompeu a si mesmo enquanto puxava algo do bolso e jogava para Óscar — tomem, é dinheiro daqui, chama-se Drakar e dá pra comprar quase tudo aqui.

    Quando Goda estava se virando para ir embora, Óscar o chamou. 

    — Espera aí, e se quisermos te encontrar?

    Goda pensou um pouco e simplesmente respondeu: — Eu vou até você! Até mais irmão.

    Com isso, Óscar e Cecília foram largados em Infernus.

    — Então? Vamos direto para Kai ou…

    Cecília deixou as palavras morrerem com um pesar na voz. Óscar pensou alguns segundos e relaxou os ombros.

    — Acho que Kai não vai ligar de esperar um pouco mais. — Cecília abriu um sorriso surpreso no rosto. — Além disso — continuou Óscar, balançando o saco de Drakar — eu te devo uma volta pela cidade.

    *****

    Ambos caminharam por 20 minutos, andando sem rumo e apenas apreciando a cidade desconhecida.

    Pararam algumas vezes no caminho. Cecília viu um tipo estranho de carne no espeto e Óscar comprou, o atendente disse o que era mas nenhum dos dois conheciam o animal.

    Depois pararam em frente a uma pequena passarela, mais próxima a uma ponte, e observaram um pequeno rio que corria em duas direções distintas ao mesmo tempo. O único peixe ali era roxo e tinha dois dentes avantajados do tamanho de facas, além do seu próprio corpo ter cerca de 40 cm de comprimento.

    — Ei, Cecília, venha aqui. — Óscar parou em frente a uma loja de fachada chamativa e vermelha, fazendo com que Cecília parasse abruptamente.

    — Hm? O que foi… Oh, uma loja de roupa?

    Na fachada estava escrito com letras miúdas: “Vista-se como Lúcifer! As melhores roupas de Infernus”. Em letras maiores estava escrito algo como “Ednar”, mas Óscar não entendeu a caligrafia ruim.

    — Agora que penso, ainda estamos usando esses trapos — ponderou Óscar, olhando para os tecidos grossos de pano que ambos carregavam desde a casa de Kogo.

    Não era de material ruim, apenas era feio e isso tornava chamativo. Além de serem longas e atrapalharem Cecília a se locomover com agilidade.

    — Não acho que uma dama deveria usar roupas tão imundas assim — zombou Óscar, dando um sorriso sarcástico — Além disso eu também gostaria de roupas mais suaves, panos grossos não vão me proteger mais do que minha própria aura.

    — Seria bom nos vestirmos como locais também, ajudaria a se disfarçar melhor.

    — Embora não acho que dois humanos vão se disfarçar muito aqui — retrucou Óscar. Ambos olharam para a multidão que os cercavam.

    — Bem-vindos! — Assim que ambos entraram na loja, foram recebidos por um demônio alto e magro com um sorriso radiante. Ele usava uma longa trança caindo sobre as costas, e dois coques menores nas laterais da cabeça, seu cabelo radiante com a coloração dourada.

    — Olá, gostaríamos de um par de roupas para cada. — Óscar deu um leve aceno enquanto entrava pela sala, analisando o ambiente.

    Apesar da fachada, o lugar não era menos do que incrível. 

    Cada disposição de roupa era perfeitamente posicionada, seja nas vitrines ou ao redor dos sofás, de maneira que uma varrida pela sala com o olho lhe permitisse ver o que a loja oferecia de melhor. Vestidos negros como noite enfileirados de maneira primorosa, ternos elegantes de diversas cores diferentes posicionados de maneira que pareciam vivos e até roupas casuais para passear na rua. Tudo na loja chamava atenção de sua maneira, ressaltando o apreço e detalhe que o dono tinha pela ordem. Óscar notou que toda peça de roupa na verdade era mais contrastada ainda pela escolha de cores da própria sala. Sofás cinzas de couro brilhavam enquanto refletia o tom de branco quartzo das paredes, o reflexo do próprio couro e dos vários espelhos apenas serviam para realçar o leve e estranho tom de rosa que permanecia na atmosfera, quase indetectável, mas ainda lá.

    — É claro que querem, esta é uma loja de roupas, afinal. — O atendente analisou Óscar de cima a baixo e passou a língua levemente pelos lábios — E ainda um rapaz tão bonito e másculo veio até mim. Diga-me, quer parecer impecável com meus ternos finos e digno até mesmo do Grão-Lorde de Infernus sentir inveja?

    — Uh, na verdade não… — Óscar se afastou um pouco e Cecília tomou a frente, como um escudo. 

    — Bem, você também é uma bonequinha.

    Então ela se afastou também.

    — Mas chega disso, meu nome é Ednarson, mas podem me chamar de Ednar ou apenas Ed está bom.

    — Sou Óscar e esta é Cecília. — Novamente Óscar fez uma referência cortês.

    — Do que precisam pombinhos?

    Cecília se afastou para olhar os vestidos.

    — Roupas que as pessoas locais costumam usar, pretas de preferência e que sejam finas e leves o bastante para não atrapalhar em uma luta, mas resistentes para que não se rasguem nela.

    Ed pensou alguns segundos e disse em seguida.

    — Não é tão difícil assim, muitos caçadores usam esse tipo de roupa, mas posso perguntar se você é adepto a alguma facção?

    Depois de perceber o olhar confuso de Óscar, Ed continuou.

    — Imaginei, não me parecem daqui. Nesse caso vou fazer uma roupa discreta e livre de simbologias. Deve ficar pronta em 3 dias, já que são duas.

    — Bem rápido na verdade. — Óscar não conseguiu esconder sua surpresa.

    — Sou o Mestre-Moda aqui meu querido, roupas excelentes em curto tempo é o mínimo! — Ed ergueu o queixo e sorriu de forma prepotente.

    — Claro, claro. Mas mudando de assunto… o que são essas facções?

    — Hm? Ah não é nada pra você se preocupar. Apenas… — Hesitou um pouco, pensando se deveria ou não dizer algo — Haa, apenas fique longe de certas áreas de Infernus, essa cidade não é um lugar tão seguro recentemente.

    Acenando para o conselho e discutindo algumas questões sobre a roupa, Óscar foi em direção à Cecília.

    — Já foi tudo acertado, em três dias voltaremos para buscar. — Óscar se interrompeu, percebendo que Cecília estava olhando para algumas roupas. — Então? Achou algo que lhe agrade princesa?

    Bufando ao tom sarcástico de seu companheiro, Cecília deu de ombros.

    — Na verdade sim, vi algumas peças que ficariam muito bem em você — disse simplesmente, saindo da loja.

    *****

    Depois de mais algumas andanças sem fim, visitando várias lojas e provando diversas comidas suspeitas, Óscar e Cecília acabaram novamente em frente a uma loja de fachada chamativa e letras mal colocadas.

    — E aqui estamos de novo — reclamou Óscar — É estranho, não fica de noite aqui nesse lugar, mas meu corpo está cansado como um inferno.

    Cecília riu da ironia da frase.

    — Deveríamos encontrar Kai, mas não me sinto confiante em ter uma longa conversa agora enquanto estou tão demolido. O que acha de acharmos algum hotel ou pousada para descansarmos?

    Cecília apenas acenou em concordância, prendendo um bocejo.

    — Ei, Ed — Óscar colocou a cabeça dentro da loja e chamou — tem algum hotel por aqui?

    — Siga reto por 5 minutos e depois vire à direita. Fachada azul.

    Agradecendo a voz abafada vindo de longe, Óscar foi embora.

    Chegando até o hotel, que mais parecia uma estalagem, ambos entraram rapidamente, apenas desejando dormir eternamente.

    — Olá, você tem um quarto com duas camas?

    Pegando a chave do homem baixo e barbudo de, obviamente, peles cinzentas, Óscar se dirigiu para cima, subindo as escadas de madeira velha.

    O quarto não era ruim. Duas camas posicionadas lado a lado, uma lamparina de teto que iluminava decentemente e uma janela, além de um pequeno armário e uma mesa de 1,5 metros quadrados.

    — Já dormimos em lugares piores — disse Cecília, se esparramando na cama e rapidamente se sentindo confortável.

    Óscar e Cecília trocaram pequenas conversas, mas rapidamente tudo se aquietou.

    Em poucos minutos o véu escuro do sono se pôs sobre ambos.

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