Uma branquidão cegante. Esse foi o cenário em que Óscar se encontrou ao abrir os olhos.

    Olhou em volta. Branco.

    Percebeu que seus olhos ainda estavam fechados, então os abriu novamente. Fechou-os instantaneamente após a claridão da “sala” aumentar em um grau insuportável.

    Ao mesmo tempo em que estava de olhos fechados, conseguia ver tudo ao seu redor, em menor escala do que se estivesse com os olhos abertos, mas ainda enxergava.

    Tentar puxar as pálpebras novamente fez com que sua cabeça doesse até arder. Seu sangue coagulante era sentido, e sua veia pulsante ameaçava explodir contra sua testa.

    Tomando nota de não abrir os olhos novamente, tentou sentir cada fio de seu corpo.

    Flexionou os braços, dobrou os joelhos e canalizou energia por cada centímetro de seu corpo. Nada. Tudo vazio, em silêncio. Sentia a dor de tentar enxergar, mas era uma dor estranha a si mesmo, uma dor que não era dele.

    Com sua pouca visão, conseguiu notar uma presença branca na sala branca. Tentou rir da ironia da situação, mas sua mente não era mais sua, igual ao seu corpo.

    A figura translucidamente branca olhou para Óscar. Não tinha olhos, mas Óscar tinha certeza, se é que tinha, de que a figura o encarava.

    Sentindo o músculo de sua boca inexistente flexionar, tentou dizer algo, mas subitamente…

    — ÓSCAR!

    Com um baque em sua mente, Óscar acordou, encarando Cecília, que estava em cima dele o encarando tensa e suando.

    — Você acordou… — Ela suspirou, aliviando sua expressão catatônica.

    — O que foi? Eu estava apenas dormindo pesado demais.

    — Claro que não! Você estava se remexendo incontrolavelmente, suando e depois seu nariz começou a sangrar.

    Levando um dedo até o nariz, Óscar sentiu o líquido quente que vazava.

    — Me desculpe por preocupa-la, Cecília. Tive um sonho estranho, muito estranho.

    Óscar tentou se levantar, mas o quadril pesado de Cecília sobre seu colo o manteve preso na cama. Percebendo sua posição, Cecília rapidamente saltou para fora da cama, corada e explicando suas razões.

    — Você se mexia muito, então tive que deixá-lo preso o suficiente…

    — Obrigado por isso. — Óscar deu um sorriso que não chegava aos olhos. — De verdade.

    — O que você sonhou?

    — Não tenho certeza sobre isso. Eu estava em um lugar branco, mas nem sei se eu era eu mesmo, ou se estava de verdade lá. Merda, nem sei se aquilo era realmente um lugar.

    — Vamos conversar sobre isso no caminho — disse Cecília, estendendo uma mão para levantar Óscar. — Deixamos Kai esperando o bastante.

    — Você está certa, vamos lá.

    *****

    A caminhada foi um tanto turva. Nenhum dos dois sabiam onde ficava o QG do Órgão Infernal, então levaram cerca de uma hora procurando por aí antes de resolverem pedir informações na rua.

    — Com licença, poderia nos indicar o caminho para o Órgão Infernal? — Óscar fez sua melhor expressão de camaradagem e começou a abordar as pessoas na rua.

    — Estrangeiros? Ainda mais exorcistas… — O homem de aparência rugosa e com cabelos curtos e rebeldes cuspiu no chão. — Não sabem que lugar é esse? Não lhes devo nada, saiam daqui.

    Vendo uma pessoa após a outra recusar ajuda, Óscar não pôde deixar de se irritar. Cecília então pousou a mão sobre seu ombro para tranquilizá-lo.

    — Não sabemos nem onde estamos direito, não temos o direito de julgar essas pessoas pela reação exagerada. Nem sabemos o motivo de suas reações.

    — Você está certa.

    Óscar relaxou os ombros e seguiu perguntando para mais pessoas no caminho.

    Em um tempo mais do que o tolerável, ambos se viram em frente ao QG. Uma fachada preta como a noite se entendia por 3 metros, cobrindo toda a parede de forma reta e dando espaço para a parte de baixo que era coberta de mármore puro. Uma fachada imponente, julgou Cecília.

    Entrando no lugar, se deram em uma sala fechada e estranhamente circular, pares de cadeira cobrindo as laterais, dando espaço para um fino corredor no centro. Na frente da sala ficava um balcão.

    Se aproximando, uma recepcionista apareceu com um largo sorriso. 

    A mulher que aparentava estar na casa dos 30 anos tinha a pele cinza clara, um nariz fino e pontiagudo se projetava de seu rosto, logo abaixo de dois olhos afiados que examinavam cada traço dos visitantes. A mulher se projetava de um terno muito bem marcado e de coloração branca, realçando a cor de seus cabelos negros e sua própria pele acinzentada. A roupa extremamente justa dava realce para dois seios avantajados e levemente expostos. Sua parte inferior não era visível por trás do balcão.

    — Olá visitantes. Sejam bem-vindos ao QG do Órgão Infernal! Pelas vestimentas posso dizer que são estrangeiros e pela aura, exorcistas. Como posso ajudá-los?

    — Procuramos Kai, um demônio que estava ajudando a igreja há pouco tempo.

    A mulher pensou um pouco e então respondeu: — Ah, vocês são os convidados que ele esperava. Ele me disse que vocês viriam em breve, sigam por este corredor — Ela acenou para a porta da extrema direita. —, e então subam até o terceiro andar. Sala 35!

    Com um rápido aceno, ambos se dirigiram para a sala de Kai.

    Chegando lá sem problemas, Cecília achou mais correto bater na porta, ao contrário de simplesmente entrar como Óscar iria fazer.

    Depois de alguns segundos, passos foram ouvidos do outro lado. E com um som de tranca girando, uma figura de cabelos verdes apareceu na porta.

    — Ah! Óscar e Cecília, chegaram mais cedo do que eu esperava. Entrem, por favor.

    Se direcionando para um grande sofá, Óscar se sentou no centro, Cecília optando por sentar em uma poltrona à esquerda dele.

    Kai sentou-se na frente de Óscar, em outro sofá de tamanho menor.

    — Faz um tempo, Kai. Acho que já é hora de esclarecermos alguns assuntos…

    — É verdade. O meu superior já está ameaçando colocar a corda no meu pescoço de tanto eu continuar enrolando meu relatório, mesmo que ele já esteja pronto.

    — Sinto muito por isso, mas vamos direto ao assunto aqui. Por que a igreja quer sua cabeça?

    Kai engoliu em seco e um fio de seriedade sombreou sua tez suave.

    — Cerca de 10 anos atrás, a última Guerra Imortal estava no auge. O motivo é simples: desavenças entre Lúcifer e Deus, mais precisamente entre Lúcifer e a Igreja. Quando Lúcifer caiu e a guerra acabou, houve uma grande crescente nos números de desviantes, mais do que em qualquer outro período da história. Desviantes sempre existiram, mas nunca foram tantos a ponto de ameaçarem o mundo Médio. Dessa vez foi diferente.

    Kai lentamente se levantou e começou a servir uma xícara de chá para cada um da sala, incluindo si mesmo. Se sentando novamente e tomando um gole, continuou.

    — Resumindo a história, o Órgão Infernal foi criado para ajudar a igreja a suprir a força dos desviantes após a guerra. Mas… durante minhas pesquisas, eu descobri algumas coisas. Algumas semanas atrás eu estava em um laboratório da igreja, e vi alguns documentos que indicavam que o Conselho estava formado desviantes artificialmente, a fim de estudar sua biologia e erradicá-los com maior precisão.

    O rosto de Óscar e Cecília embranqueceram, suor frio escorreu por Cecília e Óscar ficou com os nós dos dedos brancos de tanto apertar as pernas.

    — Alguns pesquisadores da igreja me viram e tentaram explicar que era só um projeto de décadas atrás e que foi excluído imediatamente, mas parece que não confiaram em mim quando eu concordei com eles…

    — Criar desviantes novos… só para estudá-los melhor. Isso é… — Palavras surgiram e morreram nos lábios de Cecília enquanto ela formulava seus pensamentos desordenados.

    Óscar não disse nada, mas a crescente de sua aura fez com que medo cruzasse o olhar de Kai.

    — Vocês sabem o que isso significa, certo? A igreja está pegando demônios comuns e os transformando em máquinas sem vida. Só pra benefício próprio. Precisamos levar isso até Lúcifer!

    — Você está certo. — Finalmente Óscar levantou o olhar. — Mas… o que isso causaria?

    — O que quer dizer? 

    — Bom, digo… levar essa informação não poderia gerar um enorme conflito? Quem sabe até mesmo uma nova guerra?

    O olhar de Kai pesou, caindo no chão. 

    Sem receber uma resposta, Óscar então continuou: — Eu concordo que a igreja merece pagar por isso, mas essa realmente é a melhor opção? Entregar de bandeja para Lúcifer mais um motivo para guerrear.

    — Eu… não sei — admitiu Kai, aceitando a derrota. — Eu entendo o que você quer dizer, mas eu não posso guardar isso para mim enquanto meu povo é tratado como ferramenta por aqueles vermes.

    — Nós também não podemos — disse Cecília, entrando na conversa pela primeira vez. — E se conseguirmos negociar diretamente com Lúcifer? Talvez possamos fazer com que ele não declare outra guerra.

    — Bem, não é impossível. É dito que o atual Lúcifer é o mais mente aberta da história, por assim dizer. Mas não sei…

    — Existe uma forma de chegarmos até ele? — Óscar encarou Kai com uma profundidade cortante.

    Kai exitou, considerando muitos cenários diferentes. 

    — Existe — disse por fim —, mas não é absoluto.

    — Vamos tentar então! — Cecília se levantou da poltrona.

    — Certo, venham comigo, vou apresentar alguém para vocês.

    Saindo da sala, os três seguiram para o elevador, subindo até o topo do prédio e parando em frente a única sala do andar.

    — Já aviso que ele pode ser alguém meio bruto, então estejam preparados…

    Abrindo a porta, Kai entrou primeiro.

    — Senhor, Kai se apresentando!

    Óscar e Cecília entraram logo atrás, trocando olhares nervosos.

    — Ah, Kai, finalmente trouxe meu relatório?

    A sala era coroada por um teto dourado, sem dúvidas a parte mais chamativa do lugar. Descendo pelas paredes estavam erguidos diversos estandes de guerra adornados com figuras de armas. Cada estande carregava um símbolo de arma diferente, e atrás da grande cadeira no final da sala, estava o estande de um tridente vermelho. Apoiado em uma mesa grande, mas que perto de si parecia pequena, tinha um homem de pele cinza escura.

    O homem aparentava ter 2 metros de altura e tinha ombros da largura de um iceberg. Sua aparência de 40 anos era realçada por uma tez dura como rocha. Uma expressão pesada pousava logo acima de uma espessa barba cortada rente ao queixo. Os cabelos curtos e bem aparados, juntamente com sua postura imponente, eram sepultados por um terno negro colado ao seu corpo, dando margem de vista para uma musculatura imensa. A pose militar estava pressionada em cada centímetro do homem.

    — Senhor, vim dar meu relatório pessoalmente. Além disso, trouxe comigo dois convidados exorcistas.

    O homem se levantou da cadeira, crescendo não só em tamanho, como em presença. Se aproximou de Kai e cravou os olhos em Óscar e Cecília.

    Kai não disse nada, e o homem se aproximou de Óscar.

    — Exorcistas? Por essas bandas? O que buscam aqui? — A voz do homem era como um baque contra os ouvidos de ambos. As pernas de Cecília ameaçaram tremer, mas ela se manteve plena.

    — Kai pode explicar melhor a situação. — Óscar disse em barítono menor, mas se manteve firme sustentando o olhar alto do homem.

    — Estou perguntando para você, exorcista. — O som da voz ficou maior e mais cortante, quase como uma ameaça.

    — Viemos aqui para tratar do assassinato de Kai, um dito desviante. Mas ouvimos uma história bem estranha e agora viemos aqui conversar com você, seja quem for.

    A testa de Kai suava profusamente, dando a ele a aparência pálida de um enfermo.

    — S-senhor, se me permite, darei meu relatório. 

    Quando recebeu sinal positivo, Kai continuou.

    Ele explicou toda a história, desde a descoberta nos laboratório, até ser quase morto por Óscar e Cecília na cabana, até finalmente alguns minutos atrás quando discutiram o assunto. Não poupou nenhum detalhe, e pôde-se notar o respeito de Kai em cada palavra dirigida ao homem, que manteve uma carranca impassível.

    — Diga-me, Kai — disse o homem, depois de ouvir a história inteira — Você confia nesses dois?

    Kai olhou de Óscar para Cecília, e então para o homem novamente.

    — Sim! Eles salvaram minha vida, e isso já me basta.

    O homem se inclinou para Óscar e o encarou até a alma.

    — Me diga, pequeno exorcista, onde está sua lealdade? Você é leal a igreja?

    — Não — disse Óscar imediatamente. — Não devo nada a eles, apenas sou um exorcista porque não tive escolha.

    — Então onde está sua lealdade?

    Óscar exitou, então Cecília tomou seu lugar, atraindo o olhar sedento do homem.

    — Em nós mesmos! Somos leais uns aos outros, isso basta.

    — Esse é um caminho perigoso, pequenina.

    O homem se aproximou muito de Cecília, a olhando nos olhos a poucos centímetros de distância.

    — E se um de vocês morrer? O que fará em seguida? Vai se deixar afundar no luto, já que não tem mais em quem confiar?

    — Isso é uma ameaça? — Óscar liberou uma leve centelha de energia, provocando um levantar de sobrancelha no homem.

    — Não! É apenas a sabedoria de um homem mais experiente que vocês. Se Kai confia em vocês, já é o suficiente para mim.

    Se afastando de Óscar e Cecília, e também de Kai, o homem se dirigiu à mesa novamente, mas permaneceu de pé.

    Novamente sua voz se projetou por toda a sala, ardendo os ouvidos de qualquer um ali.

    — Meu nome é Veruhn! Sou o Grão-general do Órgão Infernal.

    Dessa vez se sentando na grande cadeira, falou em menor tom.

    — Vamos conversar.

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