Capítulo 23: A Guilda
Andando pelas ruas de Infernus, Óscar e Cecília pararam em frente a um prédio enorme. A estrutura era marrom e o único diferencial que tinha em relação às outras estruturas era uma caveira gigante na fachada.
— E então? Vamos? — perguntou Óscar, lançando um olhar meio nervoso para Cecília.
— Pode liderar…
Qualquer um que visse de longe iria suspeitar que esses dois não estavam muito animados para entrar no estabelecimento.
Pode-se dizer que era um dia normal para a Guilda. Trabalhos simples de caçada e proteção estavam sendo emitidos no balcão. Homens e mulheres se embebedavam até cairem prostrados sobre a mesa, as garçonetes estavam sendo cortejadas por novatos e experientes, e alguns lamentavam a perda de seus parceiros.
Até que duas pessoas adentraram a sala adornada por madeira seca.
Suas vestes negras que davam brilho para longos cabelos cinzas eram chamativas até mesmo para os vagabundos que bebiam às custas dos outros. A figura autoritária do homem exercia uma pressão raivosa que só podia ser controlada pela aura calma de sua parceira. Eram sem dúvidas, Óscar e Cecília.
Ambos caminharam até o balcão, passando por diversas pessoas que se silenciaram quase instantaneamente com a entrada da dupla. Diversos olhares de repúdio.
No entanto, quando estavam se aproximando do balcão…
— Eu não conheço vocês — disse um homem corpulento, alto e de barba completamente desgrenhada.
— O estranho seria se conhecesse. — Óscar se afastou para desviar o cheiro nojento do álcool.
— O que precisam da nossa humilde morada?
Óscar soltou um leve bufo ao perceber que não seriam deixados em paz.
— Viemos pegar trabalho para caçadores. Queremos ir ao deserto.
A sala silenciosa foi preenchida com murmúrios e fofocas, depois por bufos raivosos.
— Ho Ho, exorcistas procurando trabalho de caçadores? Não acham que estão fora de suas jurisdições?
O homem novamente se aproximou de Óscar.
— Não, não achamos isso. Pode sair do caminho?
— He! Acho que não vai dar…
Com um leve aceno, alguns homens começaram a se aglomerar ao redor de Óscar e Cecília. E então o homem continuou.
— Não temos espaço para sua laia aqui. — Soltou uma cusparada no chão. — Não queremos um cão da igreja fuçando nossos negócios, e certamente não precisamos mais de prostitutas na cidade.
Dessa vez o olhar do homem foi lançado para Cecília, analisando-a de cima a baixo com um sorriso.
— Estamos no meio de uma guerra aqui, sabe? Então pode pegar suas coisas, enfiar no cu e ir embora daqui.
Com essas palavras, alguns homens se aproximaram ainda mais de Óscar.
— Entendo… — disse Óscar, finalmente, ignorando a tentativa de Cecília segurá-lo pelo ombro.
Uma fração de segundo se passou até que Óscar liberasse uma fagulha de sua aura em cima dos caçadores presentes.
Se fosse contra Kogo ou Beelzebub, a quantidade de pressão que Óscar liberou não serviria de nada, mas para os homens presentes no local, era como um rio de opressão assassina sendo despejado sobre suas cabeças.
Liberando mais um pouco, Óscar fez alguns dos mais fracos convulsionarem até desmaiar. E então ele deu um passo.
— Não sei quem você é, e você não me conhece também. No entanto, entrou no meu caminho e insultou minha parceira… — A cada passo de Óscar, o homem se encolhia mais e mais perante a pressão que só ficava mais aterrorizante. — Você entende que é exatamente por eu ser um exorcista, que você ainda está respirando?
O homem não tinha forças nem para falar, mas conseguiu acenar com a cabeça.
— Ótimo.
Com essa palavra, Óscar aliviou sua pressão, fazendo o homem cair no chão de alívio, suado e molhado de própria urina.
Óscar se dirigiu até o balcão, pisando no homem no processo. Cecília apenas o contornou.
— Bem-vindos à Guilda dos Caçadores, meu nome é Hera. Sou a recepcionista.
Uma moça cumprimentou ambos com um sorriso no rosto.
— Óscar e Cecília. Desculpe pelo inconveniente ali na entrada…
— Não se preocupem com isso, os responsáveis serão penalizados de acordo com o códice, nós que agradecemos por não tomarem medidas drásticas.
Com uma leve reverência, Hera novamente abriu um sorriso.
— Por favor, entrem naquela sala — disse ela, sinalizando uma porta no segundo andar. — Nosso gerente aguarda vocês lá.
Óscar e Cecília trocaram olhares desconfiados, e Cecília falou por fim: — Obrigada.
Ao entrar na sala, ambos deram de cara com um homem sentado numa poltrona. Ele tinha feições enrugadas pela idade e um cabelo curto penteado para trás.
— Olá, meu nome é Astro, sou o gerente da Guilda.
— É uma surpresa sermos chamados para falar com o gerente, meu nome é Cecília e este é Óscar.
— Me desculpem por isso, mas normalmente gosto de tratar diretamente com exorcistas, sabe?
Astro sinalizou para que ambos se sentassem na frente dele.
— O que precisam da Guilda?
— Queremos passar as próximas semanas no deserto, então imaginamos que pegar uma missão seria o método mais prático…
— Você está certa, de fato… Se é só isso, eu posso arranjar com facilidade!
— Fácil assim? — perguntou Óscar.
— Fácil assim. Vocês não são pessoas ruins, pude ver pela forma como lidaram com a situação lá embaixo. Além disso, gosto de sempre manter uma boa relação com exorcistas… a força de vocês é acima da média até mesmo para os caçadores mais fortes.
— Um favor por um favor então, né?
— Pense nisso mais como uma parceria!
Óscar levou a mão ao queixo e pensou um pouco na declaração de Astro.
— Tudo bem, aceitamos isso, mas eu tenho uma pergunta que pode soar estranha para você.
Óscar deu uma leve pausa antes de continuar.
— Não é a primeira vez que ouvimos falar de um tipo de conflito acontecendo por aqui, de primeira tentamos ignorar já que não é da nossa conta, mas de alguma forma isso sempre volta nas conversas…
Astro desviou o olhar, encarando o vazio e juntando seus pensamentos.
— De fato, uma guerra civil está acontecendo em Infernus no momento… É um conflito entre os apoiadores do atual Lúcifer e dos que são contra. É um conflito que acontece há 10 anos quase, mas que está chegando ao clímax agora.
— Então a insatisfação com Lúcifer chega até esse ponto?
— Sim, infelizmente. E parece que o próprio não vai fazer muito para resolver isso.
— Entendo. Obrigado pelas informações, embora nós dois não possamos fazer nada quanto a isso.
— Sem problemas!
*****
Depois de pegarem uma missão com a Guilda, Óscar e Cecília saíram da cidade e foram rumo ao deserto.
— O que faremos primeiro? — perguntou Óscar.
— Acho que o ideal seria resolver primeiro a missão, mas a carne iria apodrecer… Vamos treinar então?
— Acho que não tem outro jeito.
Óscar estava animado para explorar o deserto. Há muito ele queria testar suas teorias acerca da energia, teorias essas que ficaram sem conclusão enquanto treinava com Kogo.
Óscar e Cecília então procuraram um ambiente favorável para o treino e montaram barracas que compraram com a Guilda.
Depois de se acomodarem melhor, se é que isso era possível em um deserto, os dois se afastaram um pouco e sentiram o lugar onde se encontravam.
Cecília respirou profundamente e deslizou os finos braços envoltos em couro negro pela atmosfera quente ao redor.
Sentia a energia do lugar e ao mesmo tempo em que assimilava, procurava formas de energia ao redor, buscando seres vivos.
O deserto estava carregado de energia, em todos os sentidos. Fragmentos de energia dos dois tipos eram sentidos em peso, mas a quantidade de energia do Abismo era muito maior e mais densa. Cecília conseguiu sentir isso grudando em cada centímetro de seu corpo.
Óscar optou por uma abordagem mais direta, se ajoelhando na areia quente e sentindo o lugar com a aspereza de seus próprios dedos.
Retornando ao período em que Óscar esteve com Kogo, ele desenvolveu duas teorias sobre a energia.
A primeira era que a energia não era uma força inerente, que nascia no ser humano. Ele acreditava que com o passar do tempo na Terra, os humanos e as outras raças foram se adequando à energia.
E a segunda hipótese era que se uma pessoa fosse capaz de dominar plenamente as duas formas de energia como uma, então as possibilidades seriam inimagináveis.
Essas ideias nasceram das observações que Óscar fez sobre a terra e as rochas da cratera em que treinou. Mas como ele nunca tinha ido aos outros mundos, ele não pôde concluir suas teorias. No entanto…
— Haha… — Óscar soltou uma pequena gargalhada. — Sabia… Eu sabia que era isso!!
— Hm? O que foi?
— Na casa do Kogo eu não consegui completar algumas teorias que desenvolvi, mas agora finalmente… — Deu uma pausa, levantando-se do chão. — É isso Cecília, a forma como a energia se movimenta é a mesma, nem uma mudança. Até a concentração de Divino e Abismo é a mesma.
— Não sei se entendi, mas está certo? Eu claramente posso sentir uma vastidão muito maior de energia do Abismo aqui.
Óscar balançou a cabeça em negação.
— Apenas a concentração na atmosfera é diferente. As rochas refinam a energia sem discriminação de tipo, é um processo muito mais natural do que os humanos fazem. Por mais que na atmosfera tenha um desbalanço, a natureza ainda passa pelo mesmo refino, balanceando igualmente os tipos, como em Yin Yang.
Cecília tombou a cabeça em confusão.
— Venha e teste por si mesma.
Se aproximando, Cecília colocou as mãos na areia quente.
Como muitas vezes Óscar ensinou, ela imaginou o Yin Yang como uma representação da energia, e tentou entender como a natureza trabalha em relação à energia. Talvez esse tenha sido o erro dela.
— Nada… — resmungou. — Eu sei que a natureza passa por um refino próprio, mas não consigo copiar nem mesmo entender isso.
— Relaxa, temos algumas semanas pra isso, vou te ensinar.
O problema aqui era a interpretação de Cecília.
O entendimento humano acerca da natureza é falho em si. Muitas pessoas consideram si próprios alheios ao grande esquema do universo, e para conseguir manipular a energia da melhor forma possível, esse paradigma tem de ser quebrado. Óscar fez isso.
O problema de Cecília aqui é que ela tentou entender a natureza, a energia e a si própria como coisas diferentes em um esquema único, e essa linha de pensamento está fadada ao fracasso.
O universo é como um plano cartesiano. Tudo dentro interage entre si de forma uniforme, cada movimento no plano muda a coordenada inteira. O que Cecília tentou fazer foi resolver uma equação isolando os três fatores, e não os unindo em uma única solução.
Óscar percebeu isso mais facilmente. Chame de talento ou destino, ele percebeu a forma clara, específica e natural como a própria natureza refinava a energia ao redor. Cada pessoa que domina a energia, o faz com o pensamento de que é uma força a ser domada, não assimilada, por isso Óscar tentou imitar o processo de refino que as rochas faziam.
— Para começar, sente-se aqui e coloque a mão no meu peito — disse Óscar, sentando-se de pernas cruzadas.
Cecília fez como ele disse.
— Sinta durante um tempo meu próprio processo de refino, depois eu vou explicar como se faz.
Óscar então começou a “juntar” energia dentro de si, na região do esterno.
Ele começou como sempre, condensou o máximo possível até que o seu próprio corpo não pudesse aguentar, e então parou. Em seguida fez uma forma circular idêntica ao Yin Yang e começou a distribuir uniformemente pelo corpo os dois tipos de energia.
Quando o processo chegava ao máximo, ele recomeçava de novo e de novo. Até que se exauriu mentalmente.
— Haaa — bufou, se largando no chão. — E então? O que achou?
— Bem, é completamente diferente de como eu faço, muito mais natural e de certa forma… simples. Mas parece que no final você não sabe o que fazer e recomeça tudo do zero.
— Perfeita observação. Como eu não tinha muitas referências e não queria me basear unicamente na natureza abrupta da cratera, eu nunca consegui concluir meu processo de refino. No entanto, agora que estamos aqui, estou confiante que posso conseguir isso.
Óscar estava claramente satisfeito enquanto encarava o mar de areia ao redor. Cecília estava um tanto duvidosa.
— Mas o que exatamente isso ajuda você? Eu entendo que refinar a energia é importante, mas apenas aprender a condensar ela não é o suficiente?
— Quantos segundos você aguenta no ‘Despertar’?
— O que é isso do nada? Bem… uns 13 ou 15 talvez.
— Eu aguento algo em torno de 3 minutos agora.
— Precisa jogar na cara?
— Hehe desculpe, não foi a intenção. O que eu quis dizer é que mesmo no meu nível eu aguento um tempo insanamente maior que a maioria das pessoas. Mas e se eu conseguisse manter o Despertar 24 horas por dia?
— 24? Isso é impossível, você sabe…
— Não é! O Despertar é uma técnica que utiliza a energia de uma pessoa para extrapolar ao máximo os limites atuais, mas e se alguém tivesse energia infinita circulando pelo corpo?
Os dois ficaram em silêncio alguns segundos.
— Eu entendi onde você quer chegar, eu acho.
— A energia é o alicerce deste mundo, aquele que a entende e a aceita como parte de si domina tudo. Caso eu entenda mais da natureza ao redor, eu mesmo posso me tornar um com a energia e quebrar qualquer limite que exista nesse mundo.
Óscar se levantou novamente, estendendo uma mão para Cecília se levantar também.
— Durante nosso tempo aqui eu pretendo meditar incansavelmente até entender a totalidade da Energia como força. Vou te ajudar a entender isso também.
— Bem, acho que não tenho escolha a não ser me afundar nisso com você hehehe.
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