Capítulo 26: Guerra
Óscar pisou levemente mais forte na areia, xingou baixo por seu erro e retomou a caminhada.
Passos leves e ligeiros eram dados pelos dois, torcendo para não apertar sua presa, que ironicamente tinha uma audição excelente.
O alvo que foi designado pela Guilda era uma criatura extremamente rara, que não deveria existir no Mundo Inferior, mas que o fato de estar ali era uma grande sorte para os negócios.
Andando por alguns quilômetros, Óscar e Cecília chegaram a uma área estranhamente quieta. Sem insetos do deserto ou lagartos de fogo. Apenas silêncio, nem mesmo o vento ousava atiçar a areia da zona circular.
O frio cortante proporcionado pela noite foi rapidamente preenchido com o calor das energias de Óscar e Cecília, que saltitava de dentro para fora em um ritmo suave e imperceptível para criaturas de baixo nível.
— Consegue ver? — chiou Cecília.
— Nada…
Quando terminou de dizer, Óscar amaldiçoou internamente enquanto a figura demoníaca aparecia diante dele.
— Merda — xingaram em uníssono.
A figura símil a um cavalo apareceu do nada, pisando de maneira ordenada e calma, analisando os arredores.
Seu corpo de quase 10 metros de altura emitia um calor assustador que faria qualquer caçador recuar. Cada vez que suas musculosas patas acertavam o chão, uma onda de vento era produzida.
Um corpo negro e denso, que servia de âncora para o fogo, da cor do sangue que escorria pelo seu pescoço, queimava a base de onde deveria estar uma face.
— Mula sem-cabeça — atestou Óscar.
— Isso é pior do que eu esperava…
Cecília recuou um passo.
Com um passo firme no chão, a criatura avançou contra Cecília, cuspindo fogo por onde passava.
Óscar agarrou Cecília pelo braço e a arremessou para longe da Mula, sofrendo um empurrão que o pressionou contra o chão.
Óscar apertou a pata que estava em seu peito, fazendo a fera recuar. Se levantou rapidamente e recuou para Cecília.
— Não vai dar pra matar de qualquer jeito — declarou. — Vamos precisar de um plano aqui.
— E como se mata uma coisa dessas? Ela já não tem cabeça.
— Boa pergunta.
Óscar tomou fôlego e avançou mais rápido do que a Mula poderia reagir. Socou-a no estômago, arrancando um urro que não sabia de onde vinha.
Recuou até Cecília novamente.
— Pelo menos ela sente dor, né? — zombou.
— Veja aquilo ali — Cecília apontou para a base do pescoço da Mula —, se o fogo se projeta da base do pescoço, talvez tenhamos que focar lá. Tem sangue vazando.
Óscar acenou com a cabeça.
— Vamos tentar isso então! Se conseguirmos derrubá-la por tempo suficiente, posso tentar drenar a energia do pescoço.
Cecília concordou e avançou.
Óscar estava logo atrás, se esforçando para desviar das bolas de fogo que estavam sendo arremessadas cegamente.
Cecília pulou alto o bastante para alcançar o joelho da pata esquerda dianteira e, conjurando uma lâmina branca, cortou.
Óscar deslizou por baixo da fera, ignorando o extremo calor que emanava de todo o corpo imenso, transformou o punho direito em uma torrente de chamas e golpeou a perna esquerda traseira da fera, a arrancando fora.
Ambos pousaram simultaneamente e, enquanto esperavam a Mula despencar sem equilíbrio, foram atingidos repentinamente.
Óscar recebeu um coice na caixa torácica, cuspindo um volume absurdo de sangue. Voou duzentos metros para trás.
Cecília não teve tanta sorte. Foi esmagada pela pata enorme, sendo completamente afundada na areia, foi obrigada a engolir uma mistura desagradável da areia e do seu próprio sangue.
— C-Cecí–
Óscar cuspiu mais sangue e enquanto se esforçava para falar. Sua própria respiração falhando, seu peito amassado pela força da fera, seus sentidos deturpados pelos diversos sinais de alerta mandados para o cérebro. Apagou.
Acordou quinze segundos depois, vomitando o jantar misturado com sangue. Olhou em volta, tentando recuperar os sentidos. A criatura estava estática lá, quase olhando para ele.
Óscar levantou e ajustou sua concentração de energia. Estabilizou seu corpo e respirou profundamente.
— Merda… — Coçou a garganta e cuspiu sangue sujo. — Subestimei essa coisa.
Deu uma olhada melhor e reparou em duas patas que não deveriam estar na Mula.
— Regeneração instantânea? Desgraçada.
Deu uma boa conferida se todas as suas faculdades estavam funcionais, alongou o corpo e cuspiu mais um pouco de sangue.
“Preciso de Cecília”, pensou, percebendo que a criatura ainda estava com a pata esquerda dianteira em cima de Cecília.
Duas opções passaram pela mente de Óscar. A primeira era ir de encontro com a besta e tentar a afastar com força bruta. A segunda era distrair o monstro para que Cecília pudesse se recompor.
Não precisou pensar muito nas duas opções para decidir.
Uma investida sônica disparou os sentidos máximos de alarme da Mula sem-cabeça, a fazendo recuar instintivamente. Já era tarde.
“Punho Escarlate”, pensou Óscar, levando um punho fechado para trás, enquanto o braço esquerdo assumia posição defensiva.
Um cometa ultra veloz se condensando em energia pura, essa era a imagem de Óscar naquele momento, seu punho direito fechado se condensando em uma explosão multicolorida para, em um feixe, assumir a forma mais pura do fogo infernal que queimava dentro de si.
Cobrindo a distância de 200 metros em fração de segundos, explodiu a abdômen da criatura, trazendo luz para um deserto negro.
Com um buraco feito por uma escavadeira humana no corpo, a Mula foi arremessada algumas dezenas de metros longe de sua posição original, tombando no chão com uma força descomunal.
— Cecília! — chamou Óscar, tirando Cecília dos escombros criados pela pata gigante.
Com Cecília nos braços, Óscar recuou mais um pouco e a colocou gentilmente no chão.
— Estou… bem — sussurrou Cecília, tossindo areia seca e sangue.
— Consegue lutar? Acho que essa coisa vai ficar uns 15 segundos fora da briga, mas a regeneração dela é insana.
— Temos que matá-la rápido então, alguma ideia?
— Esperava que você fosse ter alguma, na verdade… — Óscar deu um sorriso dolorido. Cuspiu mais uma remessa de sangue acumulado. — Melhor agirmos rápido, devo ter quebrado uma costela e alguns ossos mais.
— Então estou melhor que você nessa
— zombou Cecília. Depois continuou, assumindo tom mais sério: — Tenho uma ideia!
— Estou ouvindo.
— Se você conseguir mesmo drenar essa coisa, então não precisamos necessariamente trazê-la ao chão…
— Aah, posso ver onde você quer chegar.
— Posso conseguir algum tempo distraindo ela, mas os 10 metros de altura estão por sua conta.
— Eu me viro!
Cecília tomou fôlego e, ignorando as dores que ainda retardavam alguns movimentos, avançou rapidamente contra a criatura.
Manifestando duas adagas negras, deu uma pirueta enquanto arremessava as adagas. Cada uma perfurou um lado do áspero pescoço da mula, deixando-a irada e completamente focada em Cecília.
Cecília deslizou pelo chão arenoso para esquivar-se de uma imensa pata. Pulou e manifestou um porrete gigante e o colidiu com a fera, derrubando-a.
Simultaneamente, Óscar aproveitou a brecha de tempo que a mula levou para levantar do chão para dar um pulo que fez seus tendões tinirem.
Com um rápido movimento, abraçou o pescoço da grossura de pilares romanos e xingou, tentando não olhar para baixo.
A força da chama era tanta que só de chegar perto, a pele de Óscar começou a rachar.
Ignorando as investidas da criatura para tirar Óscar de cima, ele agarrou as extremidades máximas que alcançou e colocou força suficiente para quebrar um iceberg.
“Concentração…”, pensou, estabilizando a respiração tanto quanto possível. Ciclou energia pelo corpo em uma velocidade que nunca havia feito antes, o que fez sua cabeça doer, e começou a puxar de fora.
Em um raio de 20 metros, toda energia estava sendo redirecionada para dentro de Óscar, que purificava e ciclava em um grau inédito para qualquer um.
Usou todo o conhecimento e experiência que adquiriu nas últimas semanas para absorver cada fração de energia do corpo da Mula sem-cabeça, que se debatia cada vez de forma mais letárgica.
Em 3 intensos minutos, a criatura estava completamente seca.
Seu corpo estava quebradiço. A base de seu pescoço sangrava profusamente, coagulando quando tocava a região onde queimava.
Quando Cecília correu até Óscar para retirar seu corpo de baixo da carcaça da mula, ele já estava desmaiado e vazando energia pura.
No dia seguinte, Óscar e Cecília retornaram para Infernus.
*****
— Isso é bom pra você? — disse Óscar, arremessando a carcaça nos pés de Astro, chefe da Guilda.
— Uaaah — suspirou, olhando incrédulo para a criatura. — Nunca pensei que seria uma Mula sem-cabeça… Primeiro que eu nunca acreditei nelas, segundo que nem deveriam existir aqui, apenas em locais específicos do Brasil.
— Bem, encontramos essa lá no Grande Deserto, vamos deixar a investigação sobre o que ela estava fazendo lá por sua conta.
— Claro, claro.
Astro tirou um pano do bolso e secou o suor que escorria pela testa.
— Se qualquer caçador tivesse se deparado com isso… Droga, acho que até uma grande expedição sofreria pra matar essa coisa.
— Então ainda bem que fomos nós que a encontramos. — Óscar lançou um olhar irônico para Cecília.
— Como estão os machucados de vocês? Precisam de médicos?
— Seria bom sim, nós agradecemos, ainda mais se for de graça, hehe.
— Seria um pecado contra Lorde Lúcifer se eu cobrasse um drakar sequer.
Quando começaram a se dirigir para a ala médica, um barulho alto vindo do lado de fora, onde deixaram a carcaça da Mula, os parou.
— Que merda é essa? Hera?
Astro gritou por sua assistente. Nada.
— Vou até lá ver, esperem aqui por favor!
Poucos minutos após Astro sair, Cecília olhou para Óscar, desconfiada.
— Acha que a criatura voltou dos mortos?
— Sem chance, momento oportuno demais. Mas é melhor irmos ver, não estou tão machucado a ponto de ficar parado aqui.
Quando entraram no hall da Guilda, Óscar se assustou um pouco com a cena.
— Astro! — gritou.
Uma carnificina ocorria no lugar. Dezenas de caçadores mortos por todos os lados. Hera, a recepcionista, tinha um pé de mesa atravessando suas costelas, e parte da cabeça havia sido esmagada, possivelmente por passos pesados de tentativas de fuga.
Astro estava cercado de figuras vestidas em mantos brancos, carregando lanças nas mãos. Uma das lanças estava atravessando a coxa direita de Astro.
Óscar e Cecília trocaram olhares e avançaram. Cecília manifestou duas longas espadas brancas e desfigurou o rosto de dois assassinos pegos de surpresa.
Cecília se abaixou para se esquivar de uma lança e levantou cortando verticalmente do estômago ao peito de um dos homens de manto, fazendo as tripas sairem para fora.
Com uma movimentação rápida, avançou contra os dois que haviam sido cegados antes por ela e separou as cabeças de seus corpos com um movimento rápido além da vista.
Óscar avançou lentamente contra os outros quatro, incendiando seus punhos de maneira fluida e natural.
Um dos homens recuou meio passo, outros dois pularam em Óscar com as lanças preparadas para atravessar cada ombro dele.
Óscar pegou ambas as armas no ar e partiu-as no meio. Deu um único passo para frente e com cada um dos punhos flexionados, explodiu ambas as cabeças dos assassinos com um único movimento.
Um dos dois que sobraram tentou correr, mas Óscar cobriu a distância rápido o suficiente para impedir e com um rápido movimento arremessou o assassino no outro lado da Guilda, estourando os órgãos dele e pintando a escadaria com sangue.
O último que sobrou se ajoelhou e esperou. Óscar se aproximou e o olhou de cima, o homem tinha um olhar duro e determinado, nem um sinal de medo.
Óscar o atravessou no coração com sua própria lança.
Cecília foi rapidamente até Astro, que conseguiu se deitar de forma desleixada no chão.
— Tudo bem? — perguntou ela.
— Sim… vou ficar bem.
Óscar se aproximou deles, com as mãos manchadas de vermelho pelo sangue que foi evaporado pelas chamas.
— Que diabos aconteceu aqui Astro? Isso é um massacre completo.
Fora Hera, diversos caçadores estavam empalados aos montes no hall. Na escadaria tinham diversos corpos arrastados sem os braços. E onde deveria estar a porta de entrada só tinha um longo rastro de sangue.
— Tirem as túnicas deles e me mostrem as barrigas — pediu Astro.
Óscar e Cecília não entenderam, mas fizeram como ele disse.
Na parte superior do peitoral esquerdo dos assassinos havia um símbolo feito com ferro de gado. O símbolo era um par de chifres e uma asa, separados por uma barra transversal.
— Isso… — gemeu Astro. — Este símbolo indica que a paz acabou.
Óscar e Cecília se olharam.
— Estamos em guerra!
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