Capítulo 6: O Conselho
por Miguel HallidayGoda
Não sou muito fã desses relatórios chatos, mas fazer o que, é a vida. Vou relatar a última semana e ir logo pra casa, queria grindar um pouco antes de dormir…
— Sou eu! — alertei aos velhos do outro lado da porta antes de entrar.
— E então? Observou alguma coisa diferente no seu protegido recentemente? — Assim que entrei na sala fui bombardeado com uma pergunta. Foi Ravier quem falou, esse velho tem a barba maior do que meu braço e de longe é o mais emburrado desse maldito Conselho.
No geral, o Conselho só serve para se meter nos nossos assuntos, é bem difícil fazer qualquer coisa nas sombras já que eles monitoram tudo… Pelo menos eles não estão pegando no meu pé por causa do Óscar.
— Sinceramente… você é um dos nossos soldados mais capacitados, por que está perdendo seu tempo monitorando um humano normal? Deixe-o viver sua vida de adolescente, Goda — essa bronca veio do mais velho dos anciãos, Zöu.
O Conselho era composto por 3 velhotes. Zöu, o mais velho de todos e o mais importante, toma as decisões relacionadas a quem morre ou quem vai atrás de desviantes específicos. Ele é um homem alto, magro e com a barba feita, exceto por um pequeno cavanhaque; ele também tem um cabelo já quebradiço pela idade, completamente branco e amarrado por um pequeno rabo de cavalo. Pela feição reta de seu rosto, dá pra dizer que ele foi um galã na sua juventude.
Em seguida temos o velho sentado à esquerda de Zöu, Ravier. É um cara até baixinho, não sei dizer se ele é realmente baixo ou se simplesmente ficou assim com a idade… Ravier é com certeza o mais ‘ancião’, no sentido literal da palavra. Seu cabelo curto e penteado para trás na tentativa de parecer mais jovial, apenas ressalta as rugas de sua testa, é um homem de tez branca e carrancuda. Sua primeira impressão era advinda de seus músculos marcando sua camisa, devia ter por volta dos 90, mas ainda mantinha uma rotina extrema de treinos físicos. Provável que isso só fosse possível graças ao poder da ‘Luz’.
E por fim resta o mais misterioso de todos, Zushi. Eu investiguei suas vidas quando jovens, mas o homem sentado à direita de Zöu era um mistério até pra mim. Zushi era do tipo silencioso e discreto, quase não falava nas reuniões e tiveram ocasiões onde nem percebi que ele estava lá. Por isso ele me assustava até mais que Zöu, que era conhecido por limpar o exército demoníaco mesmo velho. No físico, Zushi era bem simples, tinha uma careca reluzente, barba fechada e volumosa que passava do pescoço, e seu olhar afiado no formato quase de um boomerang fazia qualquer um suar frio.
— Já disse que não sou um soldado seus, não se esqueçam disso! — afirmei, mandando um olhar gélido para Zöu.
— Mais respeito criança, não vai querer sair daqui sem um dedo ou dois. Ou vai?
Por mais que não gostasse dele, não tenho condições de ir contra Ravier agora, então só me rendi ao seu alerta.
— Aka não fez nada desde que conheceu Óscar, não imagino que ela fará algo, mas sua ‘mãe’ por outro lado… De qualquer forma, descobriram o motivo de ela estar atrás de um adolescente qualquer? — falei enquanto me sentava na cadeira de relator, pouco distante da mesa redonda dos anciões.
— Fuuu… nada. Sei que você disse que era suspeito, mas esse rapaz não tem nenhum histórico na família. Pais médicos, irmão estudante de medicina, avó morando no interior…
— E avô? Ele deve ter algum, certo?
— Nada chegou até nós, aparentemente o avô abandonou a família quando Óscar era criança.
A trocação com Zöu não me levou a lugar algum. Por que um desviante dessa magnitude estava atrás de Óscar?
De primeira, não achei que ele fosse ser tão interessante, quis fazer amizade meramente por causa da aura dele, uma assinatura cansada e evasiva. Mas a cena mudou quando vi ela, aquela sereia de cabelos vermelhos.
Não é difícil pra mim perceber quando alguém é humano ou não. E Aka com certeza tinha uma aura escura bastante chamativa. Então por quê? Por que ela, que parecia ser de um alto escalão, estava focada em um humano cabisbaixo? Eu não entendia muito bem a situação entre esses dois.
— Continue sua missão, Goda. Se ele for agir, será rápido, mantenha seu amigo o mais próximo possível. É só! — Surpreendendo seus colegas anciões, Zushi me dispensou. Pra ele ter aberto a boca, deve estar de saco cheio.
Esses velhos são arrepiantes… e pensar que esses 3 já foram a maior potência desse universo.
Que bom que se aposentaram.
*****
3 dias depois
— Ahhh que situação chata que me encontro em… — suspiro ao olhar para meu amigo que acabou de desmaiar pela hemorragia.
Com certeza estava feio. Só pela minha visão superficial, Óscar quebrou as duas pernas, fraturou uma costela e deslocou um braço, os ossos expostos e as entranhas visíveis não eram bom sinal. Nunca vi nada do tipo.
— Você fez uma bagunça com meu amigo em — disse para o demônio na minha frente.
— Um enviado pela igreja, acho que ganhei certa importância kekeke.
— Venha!
Ao dizer essas palavras, deixei vazar minha aura divina, fazendo ele tremer. Quando recuperou a postura, esticou seu braço na direção do meu coração, esperando acabar rápido com isso.
Desviei sem problemas e com um corte limpo, seu braço estava no chão.
— KIAAAAAAAAHH — Um rugido estridente vazou da criatura após sentir a dor de ser cortada pelas minhas espadas duplas.
— Reconhece essas espadas?
— Espadas di-divinas…
— Exatamente, então sabe o que eu posso fazer com você, não me teste! — A essa altura, a mulher demoníaca na minha frente já entendeu sua situação e estava mais calma. Quase era possível ver a clemência no seu olhar cansado.
— Você vai fazer o seguinte — disse enquanto me sentava em uma cadeira, olhando o demônio nos olhos — Vai abrir um portal e vai sair da minha frente, na verdade, vai sumir do mapa por pelo menos 1 mês, até que meu amigo ali esteja recuperado.
— Como é? — Era plausível a confusão no rosto dela, que agora havia voltado para uma versão mais humana, digamos assim.
— Tem ideia do que está fazendo? Está jogando fora uma chance de ouro rapaz…
— Você ainda vai ser útil pra mim, para nós dois na verdade — retruquei apontando para Óscar.
— Kekeke esse ali não tem chance mais, me certifiquei de acabar com ele.
— Se eu fosse você, rezaria pelo contrário… Se ele não se recuperar, eu voltarei aqui, e aí você terá um problema maior ainda. Não sou conhecido pela piedade.
— Ah, e leve esse projeto de puta com você, mas deixe o velho aqui — finalizei, enquanto me dirigia até Óscar para levá-lo até um médico especial.
— Espero ansiosamente pelo nosso próximo encontro, keke… — disse a “mulher” enquanto passava por um portal negro. Pude observar o olhar de Aka para Óscar antes dela passar também. Quando ela me encarou, pode me ver mostrando meu dedo médio para ela.
Hora de limpar essa bagunça!
*****
Óscar
Ao abrir meus olhos, pude ver uma luz forte vindo da minha direita, parecia uma janela.
— Aagh — não pude deixar de gemer de dor ao tentar virar meu pescoço. Então não foi um sonho.
Toda a situação era absurda, como a mãe de Aka fez tudo aquilo? Por que ela fez tudo aquilo? Por que Aka não impediu? Minha mente me entorpeceu de dúvidas logo após acordar. As náuseas me fizeram apenas deixar os pensamentos de lado e focar nas dores intensas na cabeça.
Eu não queria olhar pra baixo e ver o resultado, e se eu não tivesse mais minhas pernas, ou coisa pior… eu não conseguia sentir nada além de dor, mas talvez fosse melhor que não sentir nada.
“Porra. PORRA” não pude deixar de ficar frustrado quando lágrimas começaram a escorrer pelo meu rosto. Morrer teria sido melhor que passar por tudo aquilo, ainda consigo sentir o sangue vazando pelos meus orifícios…
— Ah, acordou finalmente!
Fui surpreendido por Goda, que vinha com um sorriso no rosto me checar. Por que ele apareceu lá naquele momento? E como ele tinha duas espadas brilhando em branco— ou melhor, ele realmente tinha? Minha mente não parava de me bombardear com perguntas sem fim.
— Como se sente, amigo?
— Como se tivesse sido esmagado por um caminhão, e depois ser atropelado por uma moto em cada parte do meu corpo…
— Bom, com a quantidade de fraturas que você recebeu, é engraçado como você tá vivo hahaha.
Esse cara tava mesmo rindo da minha situação? Ele não percebeu quem fez isso? Ou foi só delírio meu?
— Foi tão ruim assim?
— Bom, costelas quebradas, braço deslocado, fratura na coluna, pernas quebradas com ossos expostos, hemorragia interna no pulmão, coração e alguns ferimentos mais leves, mas fora isso tá tudo certo hehe. — Esse cara tinha que estar brincando, é literalmente impossível uma pessoa sobreviver a essas lesões.
— Eu estou falando sério cara. — retruquei fazendo um olhar carrancudo.
— Eu também, na verdade, por mais que esse seja um hospital digamos que, especial, ainda assim é um milagre você estar vivo.
— Ainda não consigo acreditar nessa história cara…
Se passou alguns segundos no silêncio, até que eu disse, enquanto olhava para o teto branco, já desgastado pelo tempo.
— O que aconteceu lá, Goda? Me diz que eu não fiquei louco e vi a mãe da garota que eu amo, tentar me matar…
— Desculpe, amigo.
Fiquei o mais sério possível com a situação e tentei manter um rosto estoico, mas minhas emoções me traíram quando as lágrimas começaram a escorrer de novo.
— Sei que você tem muitas perguntas, mas no momento você tem que saber apenas de algumas coisas importantes, está pronto?
Goda nunca mostrou uma expressão como essa, eu sabia que ele estava falando sério.
— Não poupe palavras…
Depois de uma leve pausa, Goda começou.
— Óscar, você acredita em Deus? — percebendo minha expressão confusa e perplexa com a pergunta, ele continuou. – O que houve 5 dias atrás, foi obra de um demônio, e Aka também é um demônio. A mãe da ruiva é conhecida como Beelzebub, um demônio de alto escalão que abandonou os reinos baixos para viver e caçar entre os humanos. Você foi uma das vítimas dele, aquele homem velho que estava na casa também é uma vítima, mas em condições diferentes da sua. Sei que é difícil de acreditar, mas aceite isso o mais rápido possível, vamos precisar que você se recupere rápido.
Com toda essa gama de informações, não pude deixar de me afundar mais ainda na cama. Aka era um demônio? Beelzebub? Reinos inferiores? Que merda é essa cara…
Eu sabia que Goda não mentiria assim do nada, nem faria sentido inventar tudo isso, mas ainda assim é difícil de engolir.
— Por que vieram atrás de mim?
— Na verdade eu esperava que você me respondesse isso, meus espiões não encontraram nada que fizesse de você um alvo. Teve alguma coisa que você percebeu? A forma como te trataram, qualquer coisa?
Não teve nada realmente que me fizesse suspeitar de Aka, pra mim ela era perfeita, e tudo acontecia naturalmente. Mas uma coisa me deu uma pontada na mente, a única coisa recorrente do tempo que passei com ela.
— Meu nome… tanto Aka quanto… Beelzebub ficavam repetindo meu sobrenome algumas vezes.
— Seu sobrenome? Hmm que estranho, qual é seu nome? — Goda perguntou enquanto coçava o queixo e me olhava com um olhar curioso.
— Cruz, Óscar Cruz é meu nome completo!
— PUTA MERDA!! — Meu amigo que estava sério agora a pouco, voltou a sua atitude de sempre.
— Cruz? Esse é seu nome? Caralho agora faz sentido algumas coisas… — disse ele enquanto soltava uma risada frouxa e se sentava de volta no banco ao meu lado.
Quando percebeu minha confusão, indagou: — Tu realmente não tem ideia né haha. Cruz é uma família lendária entre nós, qualquer um conhece esse nome. Faz sentido que Beelzebub tenha ficado com medo e decidiu agir rápido.
Goda começou a falar umas coisas nada a ver nesse último minuto. Então decidi tirar ele dos pensamentos fazendo uma pergunta.
— Quem são ‘nós’?
— Hmm?
— Você sabe muito sobre demônios e tal e parece um profissional, mas você não me disse até agora o que você é de fato.
— Hehe — ele sorriu enquanto coçava seu nariz — eu sou o que o alto escalão da igreja e dos demônios chama de exorcista!!