Índice de Capítulo

    A entrada inesperada do jovem felino alaranjado trouxe tensão ao grupo de Lilac.

    Viktor, impactado pelo fato dele saber o seu nome, foi o primeiro a se manifestar.

    Tanto que caminhou até onde estava sentado, para buscar explicações.

    — Como você sabe o meu nome?

    Sempre despojado e solto nos gestos, o gato se espreguiçou, bocejando logo após.

    Puxando alongamento de seus braços, levantados para o alto, ele respondeu a pergunta:

    — Eu estava lá no saguão da Arena Shang Mu quando você assinou sua inscrição.

    — O que?! — Viktor suou frio, permitindo algo no ar. — “Será que… E se ele falar o que houve?!”

    Viktor gelou.

    O humano se lembrou do exato instante que pediu a Huli para que não falasse das circunstâncias que o levou a assinar a inscrição.

    — O assunto entre Huli e você foi bonito de ver. E mais ainda foi te ver lidar com aqueles idiotas de boca suja. Você tem fibra, gostei muito!

    Contudo, o felino mudou o assunto, para o alívio do jovem.

    As apresentações vieram.

    — Eu me chamo Sheng Daiyamondo Omna. Hehe, isso já deve ter explicado muita coisa, não?

    De fato, o ato do felino trouxe espanto.

    O contexto realçou essa sensação.

    Ficou claro que tinha vínculos mais do que intrínsecos com o monastério que Viktor citou mais cedo.

    Em contraponto, Noah fixou seus olhos no rapaz e caminhou até ele.

    Sua fronte não carregava irritação, mas estava lotada de curiosidade.

    — O que você deseja aqui? Qual seu interesse em nós?

    — Nós? Hehe… — Sheng manteve seus braços cruzados. — Eu só quero falar com o Viktor. Vocês são um extra.

    Viktor não deixou que as coisas perdessem o controle: ele pôs uma das mãos sobre o ombro de Noah, chamando para si a responsabilidade.

    — Noah, deixa comigo.

    — Estrangeiro… — ele não desviou o olhar de Sheng. — Existem coisas que você não entenderia e uma delas é o indivíduo que está bem na minha frente.

    — Você quer as mesmas respostas que eu — falou, com calma. — Deixe que eu fale com ele, já que eu sou o “alvo”.

    Por alguns segundos, Noah relutou, sem fugir do olhar dos de Sheng.

    Essa troca já deixou a rivalidade entre ambos instalada, mesmo com pouco tempo de contato visual.

    O albino recuou, cauteloso ao deixar a vez para Viktor.

    Ele escolheu o caminho mais seguro.

    — Tome os devidos cuidados, estrangeiro. Não se exponha — Noah falava, voltando para seu lugar.

    — Estamos em uma lanchonete. O que ele poderia fazer?

    — Essa sua fala é quase um deboche… — murmurou, saindo da frente.

    Rusgas foram vistas nas palavras de Noah.

    Não era antipatia por Viktor, mas algo os afastava da amizade que ainda não veio.

    Lilac e Carol, e também Milla e Santino, observavam a conversa, apreensivos com os frutos.

    Logo, o humano começou.

    — O que você quer comigo?

    Não seria tão fácil.

    Sheng também estava curioso.

    — Antes de mais nada, por que você não sente nenhum tipo de tensão ou medo da gente?

    — Hã? O que quer dizer com isso?

    — Convenhamos, cara: você não é daqui. Só que você parece ignorar nossas diferenças. É como se já tivesse o costume de “viajar por mundos estranhos”.

    Foi uma questão honesta, que levantou também em Noah e Santino.

    O trio de garotas já sabiam o porquê e ficaram aliviadas.

    Seu amigo humano respondeu:

    — Se eu estou em um mundo estranho e eu sou o estranho, já estaria preso ou coisa pior, não é verdade?

    — Bingo! — sorriu Sheng, mais à vontade. — Você deve ter passado pelo vale da estranheza bem cedo pelo visto.

    — A senhorita Lilac me mostrou que nesse mundo todos são compreensíveis com estrangeiros. Isso ajudou, mas até eu sei que não foi perfeito…

    O felino procurou com os olhos pela dragão em seguida, gesticulando com seu polegar.

    Era um genuíno agradecimento.

    — Mandou bem, Sash Lilac! Deixou o carinha aqui à vontade no nosso planeta. Satisfações!

    Isso soou “estranho” para todos, em especial Viktor.

    Por isso mesmo, ele levantou a questão:

    — Por que você quis saber disso?

    — Ora, eu estou mostrando preocupação com você, carinha. Não posso? — ele empurrou o ar com a palma da mão, com um sorriso singelo.

    Seu comportamento mostrou que estava falando a verdade.

    Noah percebeu nuances de seu comportamento.

    — “Ele não está tentando mostrar empatia. É legítimo. Real. Mas a dúvida é o porquê. Sujeito esquisito…”

    Isso só gerou mais dúvidas.

    Em uma conversa fora do normal, os olhos de cada um, de como se expressavam, dizia muito mais que palavras.

    Por intermédio, Sheng mudou seu olhar: mais incisivo e sério dessa vez.

    Direto, entregou ao jovem a mensagem que queria passar:

    — Desista desse torneio, Viktor.

    — Como é?

    Tão imediata foi a reação do humano, Lilac fez o mesmo:

    — Estamos fazendo muitas perguntas e você pouco respondeu! — gritou, sem se segurar.

    Isso mexeu com o fluxo do espaço que estavam: uma lanchonete no meio da cidade, e que estava movimentada.

    Serventes fingiram não ouvir, continuando o trabalho incessante de atenderem pedidos, e pessoas comuns até interromperam o que estavam conversando, se limitando a observar a garota dragão.

    Foram só alguns segundos para a normalidade voltar, como um disco voltando à agulha.

    Sheng percebeu a animosidade, mas colocou tudo nos trilhos ao se antecipar ao caos.

    Ele, voltando a sorrir, disse a Viktor:

    — Carinha, desencana! — ele tocou o nariz do humano com a ponta de sua garra direita. — Você está mesmo pensando que pode lutar de igual pra igual contra lutadores de Avalice?

    O semblante de Viktor se fechou, transparecendo irritação genuína.

    Diferente das outras vezes que ficou assim, que eram mais pela ação, a condição mostrada por Sheng gerou por mais tempo esse sentimento.

    O felino alaranjado, percebendo a tensão causada, se levantou.

    Mesmo com a suavidade de seus traços, sua presença exalava força.

    Viktor o observava além da aparência física.

    — “Ele é um lutador. E creio que seja forte tanto quanto Carol, Noah… e até mesmo como a senhorita Lilac! Droga… Ele veio me provocar?”

    Sheng pareceu ouvir seus pensamentos.

    — Não vim te provocar, carinha.

    — Uh?! — Viktor deu um passo para trás.

    — Só estou preocupado contigo. Tipo, você já mostrou muito do que é capaz só em se inscrever no Tormenta. Você já simboliza algo com isso, mas…

    Ele, começando a caminhar em direção a saída, pôs um dos braços nas costas, como se estivesse se alongando.

    Ele estava solto e relaxado.

    Contudo, antes de sair, deixou claro seu ponto de vista:

    — Todos os lutadores te odeiam por você ser um Natural. Vão ficar o tempo todo te chamando de Sem Valor ou coisa pior. Você está correndo riscos desnecessários.

    Sheng, na saída da lanchonete, se virou para Viktor. Além do jovem, todos também ouviram suas palavras finais.

    — Pior que surrar alguém indefeso é ver um inocente ser alvo de injustiças — olhou nos olhos de Viktor, com um tom protetor legítimo.

    Ele deixou claro seu ponto de vista:

    — Você mostrou coragem, mas só isso não é suficiente no nosso planeta para ser um lutador, carinha. Desista disso. Vai se machucar…

    Ele saiu do local, deixando para trás um rastro de dúvidas, questões e, como estava instaurado, uma imensa tensão no time.

    Mas:

    — Na boa: alguém precisa dar um jeito no “deus ex machina” das coisas. Tá ficando insuportável, caraca…

    — Carol, para de falar assim! — Lilac estava impaciente. — Já basta esse seu parente entrar aqui e criar dúvidas na nossa cabeça!

    — Opa! Só por ser da mesma espécie? Devagar aí, hein! Ele não é meu primo!

    Carol tentou se acalmar, respirando fundo.

    — Pô, todo momento entra alguém, causa fuzuê e sai, deixando um gostinho amargo! Eu também tô nervosa com isso, tá?

    — Eu entendi o que você quis dizer… — a dragão olhava para dentro do copo. — Eu odeio essa sensação, de não ter controle de nada.

    Noah não perdeu tempo para mostrar o porquê dessa sensação.

    — Eu li muito sobre a história de Shang Mu. Recentemente, reli um livro de artes marciais e sempre citavam esse monastério…

    — Tem algo a somar com isso, não é? — disse Lilac, recebendo um copo de refrigerante de um dos atendentes da lanchonete.

    Aproveitando a deixa e o contexto, que já estava levantado, Noah respondeu:

    — O Monastério Omna é o expoente máximo de arte marcial de toda Shang Mu.

    — Expoente máximo? — Lilac se sentou, se refrescando. — Influência direta, você diz?

    — Não só isso. Não basta ter habilidade. Linhagem é um símbolo de pureza deles.

    A conversa seguiu, mas o batuque de Carol na mesa com a ponta de suas garras deixou evidente o teor do clima.

    Pesado e incerto. Essa era a melhor definição.

    No outro extremo, o canino Santino também tinha um pouco de conhecimento.

    Por ser um artista marcial que viajava pelo planeta, sabia de histórias.

    — Já ouvi falar. Eles não aceitam ninguém de fora… — disse, recebendo seu sanduíche de uma das atendentes.

    — O que quer dizer? — perguntou Viktor.

    — Os monges, diante a doutrina deles, até diminuem outras.

    — Diminuir doutrinas? Como isso é possível?

    Noah tomou a palavra outra vez.

    — Os monges vencedores pedem espólios: obediência, serventia e, como na maioria das vezes, imposição marcial.

    Carol ajudou a elucidar melhor a ideia.

    Era quase como um ritual:

    — Peraí! Tá dizendo que esses mano destroem doutrinas na marra?!

    Carol bufou, sendo amparada por Milla.

    Bom que a canina tinha jeito com essas coisas.

    — Calma, Carol. Está tudo bem!

    — Tá bem, tá bem…

    Santino confirmou, mesmo com a felina furiosa.

    — Exatamente isso, gatinha. Eu também não gosto disso.

    — Pô, isso aí é mó vacilação, falei? Que monastério é esse que fica de pendenga? Já tô fula só de saber disso…

    O fato não foi bem aceito.

    Havia outras questões no ar, curiosidades afloradas e um vasto material a ser levantado.

    Mas, no momento certo.

    Diante o tom alcançado da conversa, Lilac tomou a palavra.

    — E então a família de Sheng? Quem são os Daiyamondo?

    — Eu não li sobre cada família. Só sei que são quatro…

    Lilac, tensa, segurou uma das madeixas de seus cabelos, longas como se fossem chicotes.

    Ela sentiu bem as proporções que isso poderiam tomar.

    — Quatro?! Mas, se isso for verdade…

    — A verdade é uma só: estamos lidando com mil anos de história… Sabe o que isso quer dizer, dragão.

    Lilac tinha total ciência desse fato.

    Sua curiosidade só aumentava e ficar calada não era mais uma opção.

    — Sempre vim a Shang Mu e nunca tinha ciência de que existia esse monastério.

    Enchendo os pulmões, a dragão concluiu :

    — Bem, sabia que tinha vários templos como o Bairro Milenar em Shang Tu, mas saber disso… — ela pausou sua fala.

    — O que foi, Lilac? — Viktor perguntou.

    — A força deles me preocupa. — sua linha de raciocínio ficou clara. — Eles são habilidosos…

    O olhar cheio de apreensão de Noah trouxe mais significado ao relato.

    — Multifacetados e multidisciplinares. Compõem, muitos deles, o quadro de várias frentes do Reino de Shang Mu.

    O mestiço guardou seu livreto, ficando em silêncio.

    A reflexão do grupo veio com o tilintar de pratos e talheres, junto com os passos que iam e vinham das pessoas e conversas paralelas pela lanchonete.

    Tudo estava vivo e seguindo seu próprio fluxo da vida em Shang Mu, mas que iam contra a tensão plena do time de Lilac.

    Era quase como um ato solene, como luto.

    A voz cortante e séria de Noah voltou, lotando o final das informações.

    — O Monastério Omna faz parte da história do reino inteiro por milênios. Isso é uma bomba, até para mim.

    Não eram só lutadores comuns, em busca de conquistas competitivas.

    Era um instituto integrado a Shang Mu.

    A equipe reagiu, cada um com seu comportamento.

    Viktor ficou imóvel.

    Carol manteve o batuque na mesa.

    Milla apertou seus punhos contra a perna.

    Santino, mesmo comendo lanche, o fazia com a testa franzida.

    E Noah pensativo, prevendo desafios pela frente.

    — “Isso não deixa de ser perfeito para mim. Oponentes poderosos…”

    Enfim, a carga emocional era distinta, mas se encontrava no propósito.

    A missão se tornou mais difícil.

    O torneio tomou mais proporções agora, como Lilac internou:

    — “Isso não pode ser verdade! Antes tínhamos os Red Scarves como inimigos, mas agora temos um monastério milenar participante?! Não, isso não pode ser verdade… Não pode!”

    Viktor, diante desses fatos, também pôs observações. Ele foi até além, lendo os pensamentos da dragão.

    — Eu não acredito que sejam opressores.

    Sob os olhares surpresos do time em crise, o humano prosseguiu.

    — Conheci a senhorita Tats. Ficamos minutos conversando. Ela foi um amor de pessoa, mesmo com todos a minha volta falando besteiras!

    Viktor até tinha serenidade em suas palavras, e a razão também.

    Todavia, a visão de todos era mais macro.

    Noah, ao ouvir isso, indagou:

    — Já passou pela sua cabeça que isso poderia ser uma estratégia para obter informações?

    — E daí? Nada do que eu disse pode ser usado em um combate um contra um! Não! Ela foi gentil e amável o tempo todo!

    — Estrangeiro, você não pode ser tão inoc… — ele foi cortado nas palavras.

    — Eu não sou inocente! — gritou, olhando para o albino.

    O brado inconsequente do jovem foi o ápice. Como uma onda no mar, aquilo inundou a conversa com discórdia e revolta.

    Ele se lembrou no que sua recente amizade com a felina atrevida tinha lhe trazido:

    — Você precisa usar sua força agora, pelo seu time! E pela sua líder!

    Viktor tinha recebido um voto, que ele mesmo tomou para si na situação a qual passou.

    A hostilidade voltou com força, com os dois se encarando.

    Foi nesse instante que Lilac apertou o copo de refrigerante com força, o esparramando pelo chão.

    O líquido doce perdia o gás, inundando o assoalho de ardósia. Era um paralelo à alma da dragão, que ficou calada até raciocinar.

    Foram segundos. Mas, para Lilac, uma eternidade.

    — “Tudo está ruindo novamente…? Isso é ser uma líder?! Eu… estou fazendo tudo errado… e meu time está sentindo tudo isso?!”

    Uma ruptura ocorreu. O copo simbolizava isso.

    Talvez fosse melhor o utensílio que a própria mente.

    Ela também olhou para Viktor. Seu olhar guardava um simbolismo diferente dessa vez.

    — “Até ele está sentindo o peso das escolhas que fez. Até agora eu não raciocinei pelo o que ele fez e o que eu devo fazer… Eu definitivamente não estou mesmo com moral… Onde foi que eu errei?!”

    Com os cabelos cobrindo seu rosto e a mão molhada, a dragão caminhava em direção ao exterior do local, dizendo:

    — Dá licença, time. Acho que aconteceu um acidente e deixei o refrigerante cair. Vou ao banheiro…

    Ela se retirou, às pressas, indo até o lado de fora.

    Carol, a mais próxima de sua amiga, observou seu caminhar.

    Era um basta:

    — “Tá… Esse foi meu limite!” — nos pensamentos, sua desconfiança se concretizou. — “Já tô cansada dessa parada. Tá na hora de pôr as cartas na mesa, e eu odeio pôquer.”

    Ela se levantou, calma, e caminhou até a porta.

    — Eh… licencinha, time.

    — Onde você vai, Carol? — Milla disse.

    — Tomar ar, ver o movimento, esticar as pernas… — completando, pensou. — “E falar com a Lilac.”

    O pensar de Carol, sua última linha, não veio com ironias e piadas.

    Continha seriedade.

    Algo aflorou esse sentimento outra vez.

    O clima não era favorável.

    Mil anos de história se somaram à ameaça dos Red Scarves.

    As preocupações só aumentavam.

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