Capítulo 102 - Sem Valor
A Cidade de Shang Mu era gigantesca.
Quase todas as ruas e avenidas guardavam a imensidão da megalópole.
O exagero era seu segundo nome.
Entre os imensos arranha céus do centro, becos e vielas estreitas eram uma constante, onde os prédios altos não deixavam que a vegetação sequer recebesse a luz do sol.
Frente a isso, houve uma utilização massiva de alta tecnologia: cada canto que tivesse plantas, flores e árvores recebia luz solar com exatamente a mesma intensidade dos raios ultra violeta ao natural.
Não era um calor artificial, acreditem.
O nome da tecnologia: placas holográficas de indução climática.
Mayor Zao investiu várias gemas, em prol de modernização… e angariar votos.
Portanto, era possível ver árvores pomposas e belas por toda cidade mesmo em locais cobertos de cimento por todos os lados.
Com esse contexto, um cenário improvável no meio da cosmopolita Shang Mu se viu presente: um espaço solene, atrás das construções da Noite da Fortuna, chamado Lar da Cerejeira Pequena.
O local, vazio e escuro, puro contraste com a zona comercial, continha como fonte de luz postes ornamentais com lampiões orientais.
Dispostos ao largo de uma fonte de água, o caminho levava até uma pequena cerejeira, porém com pétalas rosadas aos montes em seus galhos.
Ao fundo, havia uma pagoda, que recentemente havia sido utilizada. Essa contratação tinha um motivo: um incenso aromático estava quase no fim.
O cheiro macio e aveludado de sândalo perfumava o ambiente.
Lilac caminhou até lá, onde, na fonte, lavou suas mãos.
Porém, não só isso bastou e a dragão, indo até a pagoda, usou do lugar para refletir sua situação.
Ela sentou sobre os joelhos, tomando uma postura de meditação.
Mesmo distante da bagunça do centro, ruídos abafados do movimento das ruas ao redor ainda eram ouvidos.
Ao fechar os olhos, começou a falar consigo mesma sobre o atual momento de sua vida. Era um dos outros momentos que liberava a pressão de suas tranças, evidenciando seus longos cabelos.
— Venho tentado fazer as coisas do jeito certo. Pessoas ligadas a mim me mostraram o caminho, mas a trilha é difícil…
Ela olhou para a cerejeira, repleta de pétalas. Uma delas pousou sobre seu ombro, a qual pegou.
Na palma da mão, Lilac a olhou, como se fosse uma testemunha.
— Sinto que, diferente desta pétala, meu propósito se perde antes de chegar até mim…
A garota, inquieta, tentava tranquilizar a mente, mas sua luta interna se misturava aos conflitos externos.
Sem recorrer a metáforas, ela foi direta.
— Não consegui ter o controle da situação, não tenho moral com meu time, quase os levei ao fracasso, para não dizer coisa pior.
Seu pesar era melancólico, de quem estava prestes a perder o norte.
Por fim, seu lamento mais profundo e sentido foi exposto.
— E, para piorar, ainda precisei de quem eu deveria proteger para manter a minha missão — ela deixou sua cabeça cair para frente. — Droga… Ying, está difícil cumprir a promessa. Eu estou tentando, de verdade.
Lilac expôs seus conflitos.
Ela fez isso literalmente.
De repente, alguém ouviu.
— Ah, agora eu entendi. Agora eu saquei. Agora todas as peças se encaixaram!
A dragão olhou para trás, surpreendida por sua amiga, a gata selvagem tagarela.
Com um salto para frente, a garota reagiu.
— Carol, o que você está fazendo aqui, sua bola de pelos?!
— Nada. Só ouvindo minha melhor amiga falar todos os problemas pra uma pétala de cerejeira e não pra mim, cabeça de lula!
— Por que veio até aqui? — disse, tentando se esquivar. — Eu queria ficar sozinha e…
A gata a olhou nos olhos, sem fugir um milímetro.
Lilac já havia entendido.
— Você ouviu tudo, não é?
— Até a parte que você ia me emprestar uma gema pra comprar sacolé de morango.
— Ei, eu não disse isso!
— É, não disse… — Carol segurou sua mão. — Diva linda, que parada é essa de “promessa”? O que tu prometeu pro bonito lá de Shuigang? E qual foi essa de ficar falando meleca sobre não ter moral?
— Ah, Carol… olha, isso é um pouco íntimo entre ele e eu. E não queria que soubesse que estou sendo uma péssima líder, vindo de mim…
— Você sabe que vou ficar te enchendo o saco até tu falar tudo comigo, né? — disse, a olhando com vontade. — Tá, vamo conversar, e lavar a roupa suja se for preciso, nyah!
Como não havia outro jeito, a dragão explicou a situação.
Enquanto isso…
Lanchonete Grande Tesouro Grande | Noite
Minutos depois de Lilac e Carol saírem do lugar, a conversa entre Noah, Santino Rock, Milla e Viktor continuou.
Diante o que foi mostrado, tudo foi ampliado para pior.
O clima era péssimo.
A escalada dos problemas ocorreu, sem dúvidas.
— O trágico, estrangeiro… — falava Noah. — Antes tínhamos o pior cenário, o do fracasso. Mas com sua escolha, tudo mudou.
Ele, arranhando a superfície da mesa com sua unha, tentava distrair a cabeça, escolhendo muito bem as palavras.
— A sua escolha ajudou o time, mas o preço foi alto demais.
O assunto era visível: a inscrição de Viktor.
O humano, após Noah se expressar, respondeu:
— Eu fiquei preocupado com vocês todo esse tempo e, como não apareceram, tive que agir.
A escolha de Viktor ajudou, mas isso tinha dois gumes: uma sobrevida e a certeza de que o time estava com um número negativo.
Ou seja, do ponto de vista de Noah e Santino, o humano não era uma carta válida de um baralho marcado.
— Você se vê como o protagonista da própria história — falava o albino. — Eu devo te agradecer ao mesmo tempo que o chamo de irresponsável.
— O que? Por que disse isso, posso saber?
— Sem você, os meus objetivos teriam acabado nas mãos dos Red Scarves. Mas com você, também estão sob ameaça.
Viktor bufou, deixando claro seu incômodo.
Aquilo o atacou na moral, sem dúvidas.
— Ah, entendi! — o humano, irritado, olhou para o mestiço. — Esperança e desesperança, tudo ao mesmo tempo! — gritou no fim.
Noah não gostou do que ouviu.
Era um tom de deboche.
— Estrangeiro, recomendo que abaixe sua voz.
— Por que deveria? Você acabou de me ofender!
— Ofender? Eu falei a verdade. Ela dói, eu sei. Mas creio que seja melhor que te chamar de Sem Valor.
Com a escalada no tom, Santino se intrometeu.
O canino, para evitar que a tensão atingisse o teto, usou de sua experiência para pôr as cartas na mesa para o humano.
O jogo não era tão fácil
— Estrangeiro Viktor, acho que você não tem noção de ser chamado de Sem Valor.
— Não tenho mesmo! — o jovem ainda estava irritado, misturado com incômodo. — Por que fazem isso por aqui?
— Você não tem Nirvana. Isso já diz muito.
— Eu lutei a minha vida toda sem isso… e nem tenho ideia do que se trata! Não faz diferença pra mim, será que não entendem?!
Só piorava.
As regras ainda soavam abstratas para Viktor.
Como não estavam claras, Santino se esforçou um pouco mais para mostrar a realidade.
O cuidado tinha um motivo: ia doer.
— Não se sinta mal. A maioria dos avaliceanos vive sem a força motriz.
— Então por que insistem com essa ideia de Nirvana?
— Simples: lutar sem isso é suicídio. É indigno.
Santino mostrou a primeira faceta da cultura do mundo dos lutadores em Avalice.
Um conceito até então simples, mas com um contexto tão cruel que fez com que o humano cerrasse seus punhos.
Seu sentimento não era ódio, mas seu coração revoltado deixou transparecer esse sentimento negativo.
O canino não estava sozinho para elucidar a mente do jovem: Noah, seco e direto, mostrou a verdade sob seu ponto de vista.
— Sua inocência é tão visível quanto as luas de Avalice de noite, estrangeiro.
Viktor quase ameaçou explodir, mostrando tensão em seu maior nível.
As analogias que o albino falou devolveram o deboche de mais cedo, quase como um duelo verbal, que só piorava.
— Sheng pode parecer arrogante, mas suas palavras continham verdades. Você vai se machucar e o que quebrar não terá conserto, esteja certo disso.
Ferir o orgulho de um lutador era um erro maior que o chamar de fraco.
Ser chamado de incapaz era uma ofensa muito mais dura.
Ser fraco é só uma condição; incapaz era o nada.
Noah foi ríspido, sem titubear, atingindo Viktor em um ponto doloroso.
Isso fez com que o último tijolo de sua fundação trincasse, mas que mantivera a liga, mesmo rachado.
Porém, esse dano o moveu em direção ao albino.
Mais discussões e mais quedas viriam.
Mas, antes de começar, ele foi surpreendido: Milla o abraçou pelas costas, o que o desarmou.
— Viktorius, para! — falou, o abraçando com força.
Viktor parou, a tremedeira percorreu seu corpo.
Era uma pressão que não estava conseguindo lidar.
Aquilo não havia acabado.
Era só o começo.
Voltando ao Lar da Cerejeira Pequena…
Diante a árvore centenária repleta de pétalas caindo e tocando o solo, a conversa entre as amigas já tinha começado.
— Tu fez essa promessa mesmo?! Qual foi, Lilac?!
Carol já foi logo direta, expondo sua surpresa.
Mas, na verdade, já era uma revolta.
— Carol, reconheça! Ele não é daqui, não há como ele lutar de igual pra igual! — disse, colocando ambas as mãos sobre sua boca. — Escuta: só quero que ele fique em segurança, só isso!
— Segurança?! Pô, será que tu não colocou a cachola pra pensar que essa parada pode destruir o vitin?
— Não só eu mas o Ying também. Só que… — ela se colocou de costas para a felina.
— O que foi agora? Fala, pô!
Lilac foi até o caule da árvore, encostando a palma de sua mão direita na lateral, pôs a outra no coração.
Uma sinergia ocorreu.
— Eu pensei muito em como tentar deixá-lo bem, se sentir integrado a gente, mas… Era sempre um risco que tinha que assumir.
— Tá, ok. Tu tinha dilemas. Todo mundo tem. Qual teu ponto?
— Não destruir o brio dele também é meu objetivo, mas não deixar que o destruam por fora é muito mais difícil.
— E tu quer ficar tirando o cara de ser prota? Acha isso certo?
— Carol, ele não é de Avalice. Sabe muito bem que tudo isso envolve mais do que ele imagina.
— Tá, o choque cultural e a “caramela às quatro”. Mas tu não pode frear o cara. Ou tu não gostou da missão tá de pé? Isso foi por causa dele, tá ligada?
— Eu sei, Carol… eu sei — fechou o punho, olhando para a árvore. — Eu tenho orgulho dele.
— Viu? Então qual é o bagaço?
Lilac tomava muito cuidado ao se expressar. Mesmo sem a presença de Viktor ela tinha muito respeito por ele.
Tão logo, ela disse:
— O mundo dele provavelmente deve ser um caos como o nosso, já percebi isso nas atitudes e palavras que teve até agora.
Olhando para Carol, foi mais aberta:
— Mesmo pertencendo a outra realidade, nota-se que muitas coisas se assemelham a nossa. E isso é preocupante, já que ele não tem Nirvana… e nem tem noção disso.
— Isso não parece ser problema pro piá, tá ligada?
— Mas é para nós — a dragão apontou para si mesma. — Até onde ele pode ir é dever meu proteger.
— O cara é uma rocha! — Carol, com metáforas, mostrou seu ponto. — Tu viu ele encarando o bonito lá no bangalô do Dail!
Elementos da natureza tinham um limite: desgaste.
O tempo passa, para tudo e para todos.
Lilac sabia disso.
— Uma hora a rocha se parte e quebra. Ela pode tomar outra forma, mas ficará quebrada para sempre.
Uma brisa fraca foi sentida, levando algumas folhas.
Foi um contragolpe oportuno, para Carol:
— Ih, viajou pra longe, hein! — disse, se aproximando da dragão. — Tá, vamo lá: tu falou isso pro piá?
— O que? De eu querer protegê-lo?
— Isso, diva linda! E aí, tu perguntou ou não?
Uma breve pausa antecedeu a resposta: Lilac gesticulou com a cabeça de forma negativa.
Carol reagiu, parecendo não acreditar.
— Tá de saca, né?
— Como poderia fazer isso? Está louca? Ele nunca iria aceitar e… — ela mesmo freou sua fala.
Essa ação teve um motivo: Lilac refletiu tão interno que entendeu sozinha um dos pontos que não considerou.
Ainda não estava elucidado.
Carol fez mais força.
— Por acaso a dondoca pôs na balança o peso de proteger e ‘proteger porquê’?
— Uh? Do que está falando, Carol?
— Pô, não é só tu que curte esses paranauês filosóficos, nyah!
— Mas o que você quer dizer com isso?
— Que você tem que saber se o piá quer ser protegido, ô! Ou tu acha legal ter um gambé 24h por dia cuidando da tua cauda? Dá não!
Mesmo o jeito tomboy de Carol mostrava o que já estava visível na mente da garota dragão: até onde a proteção por tudo era necessária.
Proteger ou ‘proteger porquê’: ato de proteger vs o porquê da proteção.
Conceito tão simples que Lilac nunca pensou.
Ou você protege tudo (como um guardião) ou tem um porquê de proteger (quando o fato requer ação).
A gata verde desengavetou um conceito que ela já tinha guardado, e que agora as folhas foram postas na mesa, como um mapa, um.guia.
Os olhos púrpuros de Lilac tomaram um novo brilho, com a imagem de Ying surgindo a sua mente.
Ela não traiu a promessa, só estava seguindo errado.
— O Viktor nunca precisou que alguém o protegesse a não ser quando ele realmente precisou — enfim, ela encontrou o cerne. — Todo esse tempo…
— Aí, sim! Pô, caiu a ficha! Nyah!
Lilac pulou em Carol, a abraçando com ternura.
Mantendo o elo, a dragão, aliviada, falou:
— Você, às vezes, consegue ser inteligente.
— Que papo é esse de “às vezes”? — ela olhou recriminando. — Eu já tava reparando essa parada desde capítulos passados!
— Do que você está falando?! — Lilac, com razão, estava confusa.
— Ah, nada, nada! Nada não… Nyah!
Lilac encontrou o caminho.
Na verdade, foi ao contrário: a trilha lhe entregou as respostas que precisava.
A situação não envolvia proteger Viktor, mas sim as circunstâncias onde poderia entrar em perigo.
Ela se lembrou da lealdade que o rapaz tomou em respeitar sua escolha em não participar do torneio.
Ele só mudou de postura quando a situação necessitava de sua autonomia — e foi isso que manteve a missão viva.
Mas a conversa ainda não havia acabado.
— Ok ok. Agora vamo pra ideia de você ser líder.
Carol estava irreconhecível, mas não no sentido ruim.
Ela queria mesmo que sua amiga tomasse a iniciativa correta, mas que precisava ser sacudida para caminhar com as próprias pernas.
A conversa foi mais do que necessária.
Colunas foram fortificadas.
Faltava a fachada.
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.