Índice de Capítulo

    Uma volta ao assunto, sem delongas.

    — O tempo todo tu tem que ficar nessa ladainha chata de “ai, ui… time tá desentrosado. Vamo fazer o melhor em campo na próxima, supletivo…”? Chega, né?

    A chamada que Carol fez em Lilac, mesmo com puro deboche e tagarelice, tinha muito a contar.

    Eram verdades, queira a dragão ou não.

    Mais leve e aberta a críticas, Lilac não estava abaixando a cabeça.

    Mas não por arrogância ou prepotência.

    Carol era sua melhor amiga, e alguém que ela confiava mais do que qualquer outra pessoa.

    — Você falando assim até parece que eu sou desse jeito! — gritou, furiosa com o teatro da amiga.

    — E não é? Pô, tu não para de ficar nessa sofrência toda. Por que não segue o fluxo, tipo os brothers do surfe?

    — Seguir o fluxo? Do que você está falando?

    — Diva linda, entenda: o espírito do time é quem lidera. Ou seja, você! Se tu tiver na fossa, o time se ferra. Sacou? É isso.

    A fala coloquial de Carol poderia ser de difícil compreensão para alguns, mas ela estava lotada de significado e simbolismo.

    Lilac entendeu cada um deles.

    — Você está certa… — falou, pegando outra folha de cerejeira que caiu. — Sempre que eu estou relaxada consigo levar as coisas com melhor compreensão.

    — Essa parada, Lilac! Nyah!

    — Eu precisei sair depois que o Viktor gritou. Era como se fosse eu. Tive vontade de fazer aquilo… Nossa, até ele sente o que eu sinto.

    — Tá vendo? Isso é protagonismo! Pô, e tu queria tirar isso do piá… Dá não, diva linda. Já tá no sangue.

    — Como se eu não fosse… — ela olhou para a direção do caminho de volta. — Será que ele pensa do mesmo jeito que eu também?

    — Ele vai fazer o mesmo aqui, mas tu que é a matriz de tudo, falei? Desencana, Lilac. Tu é a prota e a líder.

    A seu modo, a gata verde deixou bem explicado a situação.

    Confiante, ela acenou para sua amiga: seu sinal de camaradagem.

    O mote de Lilac. Ser líder. Ser protagonista.

    A dragão púrpura possuía as duas honrarias.

    Aliás, esse era o principal conceito de liderança: condição e não estado.

    Ser líder é prestar companheirismo, fazer parte e compor duplicidade, caminho acima de ser empático.

    Ser como o próximo, e servir como âncora e espelho.

    Era o significado de chegar ao protagonismo.

    Nem todo protagonista é líder, e nem todo líder é protagonista.

    A dragão encontrou o limiar.

    Era o momento de agir como tal.

    Neste contexto, voltamos ao cenário anterior, na:

    Lanchonete Grande Tesouro Grande | Noite

    Onde tudo estava como antes, poucos minutos depois.

    Diante dos olhares de Noah e Santino, era Milla quem lutava por Viktor — e pela união do time.

    Enfim, o momento anterior voltou no mesmo ponto.

    — Viktorius, para! — Falou Milla, com doçura em sua voz. — Só para. Você não é assim. Está todo mundo preocupado com você, do jeito deles. Tenta entender a gente, por favor!

    — Milla… — reagiu o humano, olhando para trás.

    Santino, tentando apaziguar, explicou bem os fatos.

    O canino mudou sua posição: se sentou mais próximo onde o humano estava.

    Ele, então, continuou:

    — Naturais competitivos se colocam em perigo, agem com arrogância e, o pior, irresponsabilidade. Aqui em Avalice essa insistência é algo irritante, sabia?

    O canino fixou seu olhar ao de Viktor, para deixar claro seu ponto de vista.

    — Você se colocar em perigo pensando que vai dar bom é um erro. Sem Valor pensam assim.

    Quase como um golpe poderoso, Viktor sentiu em sua alma de lutador a realidade do mundo da luta de Avalice.

    Noah, voltando a cruzar seus braços e fechar os olhos, sacramentou a definição:

    — Lutadores Sem Valor ignoram a lógica. Está além de ser esforçado.

    Com o olhar distante, Viktor enfim entendia o ódio que sentira na Arena Shang Mu

    Seu ímpeto, até então inabalável, recebeu um duro golpe, que o alimentou com pensamentos ruins.

    — “Eu sou… um peso morto aqui?”

    Verdades foram ditas.

    E Viktor entendeu cada uma das palavras.

    Seu choque só não foi consolidado porque havia alguém que falava por ele.

    Na verdade, uma pessoa que se estressou por todos.

    — O Viktorius já luta contra isso desde que entrou nas nossas vidas…

    Noah só ouvia, estando calado. Santino fez o mesmo, mas olhava para a pequena.

    Milla tinha mais a falar.

    — Somos uma equipe, não somos? O Viktorius salvou a gente, todos nós! Por que vocês estão sendo tão duros com ele?

    Ela atacou os dois.

    Claro, não uma afronta; era um tipo de convocação, uma fuga reversa da acomodação.

    Havia mais em jogo.

    Santino foi o primeiro.

    — São os fatos, garotinha. Ele precisa encarar o que vem pela frente. Só deixei claro o que tinha que saber

    E Noah, o mais metódico, falou:

    — O estrangeiro não conhece Avalice. O desafio que tenta abraçar está fora de alcance. Reconhecer os próprios limites já é digno.

    A atitude de um protagonista era uma só: buscar movimento.

    Não importa a intensidade; única motivação, várias vertentes.

    — Foi ele quem conseguiu manter a gente inscrito no torneio. Ele fez isso por nós!

    Milla desencadeou o “sair da zona de conforto”.

    E isso ocasionou a reação de Viktor.

    O “revés revertido”.

    — Uma coisa que devo dizer a vocês… — falou o humano, fitando-os ao mesmo tempo.

    O humano parecia ter acordado de um sonho longínquo.

    O ar em volta, com cheiros que ele conseguia distinguir, era como um reforço ao porto seguro que conhecia melhor do que ninguém.

    O ambiente ao qual estava era seu habitat natural.

    A lanchonete, assim como o clima que dominava, o moveu.

    Era o seu momento.

    — Eu já estou mais do que acostumado a receber rótulos. Torneio, exames, um simples treinamento… Eu sempre fui desafiado! Qual lutador não foi?

    Milla sorriu, sentindo que ele recuperava a chama.

    Santino e Noah permaneceram em silêncio, absorvendo cada palavra.

    Veio mais:

    — Estou em Avalice, eu sei disso. Vocês têm coisas que só vocês sabem e eu, como estrangeiro, tenho que me adequar.

    Seu olhar, ríspido, procurou os dois.

    Emoção eclodiu.

    — Mas na hora da luta tudo muda… Definitivamente, tudo muda! Vocês sabem disso!

    Milla sorriu, sabendo que o recado estava sendo entregue.

    A voz ecoou pela lanchonete, carregada de determinação.

    — Não importa o que vocês pensem: estamos todos no mesmo time! Eu vou lutar com tudo que tenho, eu prometo a vocês!

    Não eram simples promessas.

    A honra de um lutador era seu patrimônio.

    — Não importa se eu estou em desvantagem, vocês já falaram isso… eu vou lutar até o fim!

    Não envolvia só Viktor.

    O jovem sabia disso.

    Ele fez questão de deixar isso bem claro.

    — Vocês lutaram contra esses tais ninjas, os Vaidels. Eu estava lá na arena, relaxado e seguro… e conheci várias pessoas.

    Quase uma lágrima surgiu.

    A sua força interior cresceu, evitando o drama.

    Era um chamado.

    — Durante todo esse tempo vi ódio contra mim… mas talvez a luta de vocês tenha sido mais difícil. E fiquei feliz em ver todos juntos.

    Ele reconheceu a luta que Santino, Noah e Milla travaram.

    Viktor não parou:

    — Vocês lutaram por suas vidas! Eu não tive essa experiência na minha vida de lutador, então eu não sei o que é, qual a sensação.

    O pulsar do coração ocorreu.

    Viktor era mais do que sinceridade.

    — Acredito, de verdade, que ninguém quer ter a vida ameaçada… Ninguém! Mas, se for preciso, eu arriscaria a minha por vocês. Quantas vezes mais devo falar a palavra “lutar”?

    As palavras invadiram a mente de Santino e Noah que, até então inabaláveis, sentiram o peso das verdades.

    Mesmo em silêncio, seus pensamentos soavam quase como um grito.

    Santino baixou os olhos, lembrando-se do pior.

    Noah apertou os punhos, imóvel. A mensagem tinha um sabor diferente.

    Ele, atormentado por um passado cheio de provações, recebeu um extra: uma outra voz, quase inaudível, mas que ouviu.

    — “Onde você está…?”

    Sacudindo sua cabeça, se colocou em dúvidas do que estava acontecendo e de quem era aquela voz.

    Porém, ele não perdeu o foco.

    Viktor era o que conduzia o desengate emocional.

    O brilho voltou.

    — Vocês lutaram… e venceram! E eu vou precisar lutar por mim… e por vocês! — bateu no próprio peito, com fúria.

    Silêncio.

    Mas o ar já não era pesado.

    Era de união.

    — Eu prometo a vocês! Eu vou lutar por todo mundo! Não vou desistir!

    Tudo mudou.

    O clima, até então tenso, deu lugar a algo próximo do complacente, transcendendo o ambiente opressivo de antes.

    Milla moveu Viktor. Ele não parou.

    Santino e Noah sentiram o chamado.

    Mas faltava mais um componente.

    A liderança.

    — Acho que não vou precisar falar muito.

    A frase veio de Lilac.

    A dragão, momentos antes das últimas palavras do monólogo emocional de Viktor, tinha total ciência do que se transformou a reunião.

    — Quando eu saí daqui pensei que minha moral tinha destruído o time. Mas, vendo vocês agora, devo pedir desculpas.

    Viktor, olhando para a jovem, perguntou:

    — Por que, Lilac?

    — De pensar que o coração de vocês tinha se esfarelado. Depois de tudo que aconteceu… — suspirou, com um sorriso em seguida. — Sabe, tenho que te dizer uma coisa, Viktor.

    — Hã? — A confusão estava estampada em seu rosto. — O que?

    Ainda sorridente, tocou no coração do rapaz.

    E ela respondeu:

    — Antes te protegia, mas agora vou deixar você seguir o que sempre foi.

    Ele, a princípio, não entendeu. Vendo Lilac não cessar o sorriso o pegou de surpresa.

    Mas, com o tempo, vendo ela sorrir tão reluzente, se pegou no pensamento.

    — “Ela… a senhorita Lilac… está me dando autonomia?!”

    Da dúvida à confiança. Viktor entendeu a mensagem.

    O rapaz devolveu o sorriso, como se fosse uma renovação.

    Lilac não terminou:

    — Antes eu era uma boba, tentando evitar que você não agisse. Te impedir que tenha personalidade é algo egoísta meu. Por isso te peço desculpas.

    — Não se preocupe com isso, senhorita Lilac.

    — Hehe… — ela sacudiu seu cabelo, o desarrumando. — Você tem que parar de ser tão educado e fofo assim, sabia?

    As brincadeiras voltaram.

    Até a didática estava mais leve.

    E, falando nisso:

    — Aí, quem quer sacolé? — Carol entrou, com uma sacola cheia da guloseima. — Tem de todos os sabores, nyah!

    A gata, feliz, se aproximou da garota dragão, apertando sua mão.

    — E o time? Tomou a responsa de vez?

    — Você chegou a tempo para ver isso.

    — Então vambora, diva linda! Os geladin aqui vão derreter, hehe.

    Com isso, ficou definida a mudança de direção do astral da equipe.

    Renovada e cheia de gás e energia, a dragão púrpura clamou por seu lugar.

    — Antes eu achava que conseguia carregar tudo sozinha. Estava errada. — respirou fundo, encarando cada um. — Quem vota para dar a Viktor nosso apoio?

    O silêncio pesou. Então, Lilac estendeu a mão sobre a de Viktor.

    Isso pegou todos de surpresa.

    Lilac não só convocou o time para fazer uma votação como mexeu com a moral de todos em uma só jogada.

    Ela se pôs em provação como sua equipe, se igualando a todos.

    Carol e Milla fizerem depois, sem dúvidas.

    Santino, após relutar, também o fez, mas:

    — Garoto, você falou bonito. Me prova que não foi só falação.

    Noah era o último.

    O irônico: a algumas horas era o time votando por sua inclusão no time.

    No momento nem era algo tão dramático.

    Porém, sua relutância disse muito do que significava confiar no Viktor, não na pessoa e sim no lutador.

    Foi quanto o humano, ao olhar para ele, disse:

    — Não sei como será o futuro, mas prevejo você cumprindo sua promessa a elas.

    Um golpe poderoso e certeiro.

    Viktor atingiu o coração de Noah.

    — “Ele se lembrou da Ingrid e da Íris…”

    Sem perder mais tempo, ele pôs sua mão sobre a do grupo, mas não sem falar:

    — Você foi um dos primeiros a votar em mim mais cedo, e agradeço por isso. Vou te pedir desc… — tentou dizer, sendo impedido.

    Viktor fez isso: levantou sua mão até a altura do rosto de Noah.

    Ele falou:

    — Tudo que você disse é verdade. E eu vou guardar, para nunca esquecer que você se preocupa comigo.

    Os olhos verdes esmeralda de Noah tremeram, dando a entender que as palavras de Viktor soaram mais do que uma mensagem.

    O albino não sorriu, mas sua positividade veio no apertar mais forte de sua mão à de Viktor.

    Eles não eram amigos, simples colegas de equipe.

    Mas ali solidificou o pavimento para uma relação duradoura.

    Assim como eles, o time de Lilac acentuou seus laços.

    Mais fortes e autênticos.

    A união do time foi sacramentada.

    Mas, em uma outra região de Shang Mu, ocorreu uma outra reunião.

    Local desconhecido | Noite adentro

    Áreas remotas e afastadas dos grandes centros eram o destino dos que escolheram as sombras como principal refúgio.

    Em um ambiente noturno cercado de rochas e umidade, tochas acesas marcavam uma trilha no interior de uma gruta secreta.

    Ruídos de água corrente, além de pingos, contrastavam com o eco ao redor, de vozes a barulhos dos equipamentos.

    Com toques modernos, como leitores de terreno e radares ligados a um pequeno mainframe, o lugar era utilizado como base dos Red Scarves.

    Com ninjas rasos em prontidão, eles guardavam a área, onde os Gêmeos Carmesim afiavam suas kunais e lustravam correntes.

    Mais ao fundo, era possível ver Hong Se olhando para um monitor.

    Com parte da máscara danificada, uma fissura na testa, ela conversava com o interlocutor.

    A transmissão estava ruim, com a imagem distorcida, mas o áudio era cristalino.

    A voz era familiar.

    — Hong Se, você me disse que a missão foi um sucesso. Então porque o nome do time daquela dragão estava escrito no Tormenta?

    — Fatores externos, Spade… — ela sussurrou. — A missão de sequestro foi cumprida, assim como o bloqueio ao time de Lilac. Quase eliminei dois alvos e…

    Spade a interrompeu.

    Ele estava calmo, mas contrariado.

    — Quase eliminou. “Quase” acreditei que você cumpriu sua missão. Mesmo que o “quase” fosse concretizado, isso nada mudaria o fato de o time de Lilac estar inscrito!

    — A contenção foi efetivada. Como disse, fatores externos influenciaram o sucesso pleno da missão.

    — O “sucesso pleno da missão” é uma palavra bonita, mas cheira a fracasso! Fatores externos, como você disse, não serão tolerados. Quero que me diga o motivo.

    — Os agentes de campo encontraram o tal fator: Viktorius Ashem. Estrangeiro acompanhante de Sash Lilac. Ele estava na arena todo esse tempo.

    — Está me dizendo que a missão foi fracassada por causa de um fracassado? Que ironia do destino, Hong Se. Desligando… — a transmissão se encerrou.

    O tom de voz de Spade, ao fim da videoconferência, era de frustração acompanhado por irritação.

    A ninja líder dos Vaidels, após a reunião, passou a caminhar pelos corredores.

    Sozinha, ela se viu à vontade para falar consigo mesma.

    — Carol Tea… Sash Lilac… Eu juro: sem piedade na próxima vez. Seja contra quem for, minha espada cortará. Minha satisfação virá ao ouvir o grito de agonia de vocês.

    Os Vaidels, ramificação rank S dos Red Scarves, não desistiram.

    E Hong Se, implacável, tinha uma nova missão.

    O torneio TORMENTA nem começou, mas intrigas estavam por vir.

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 0% (0 votos)

    Nota