Capítulo 103 - Sacramento
Uma volta ao assunto, sem delongas.
— O tempo todo tu tem que ficar nessa ladainha chata de “ai, ui… time tá desentrosado. Vamo fazer o melhor em campo na próxima, supletivo…”? Chega, né?
A chamada que Carol fez em Lilac, mesmo com puro deboche e tagarelice, tinha muito a contar.
Eram verdades, queira a dragão ou não.
Mais leve e aberta a críticas, Lilac não estava abaixando a cabeça.
Mas não por arrogância ou prepotência.
Carol era sua melhor amiga, e alguém que ela confiava mais do que qualquer outra pessoa.
— Você falando assim até parece que eu sou desse jeito! — gritou, furiosa com o teatro da amiga.
— E não é? Pô, tu não para de ficar nessa sofrência toda. Por que não segue o fluxo, tipo os brothers do surfe?
— Seguir o fluxo? Do que você está falando?
— Diva linda, entenda: o espírito do time é quem lidera. Ou seja, você! Se tu tiver na fossa, o time se ferra. Sacou? É isso.
A fala coloquial de Carol poderia ser de difícil compreensão para alguns, mas ela estava lotada de significado e simbolismo.
Lilac entendeu cada um deles.
— Você está certa… — falou, pegando outra folha de cerejeira que caiu. — Sempre que eu estou relaxada consigo levar as coisas com melhor compreensão.
— Essa parada, Lilac! Nyah!
— Eu precisei sair depois que o Viktor gritou. Era como se fosse eu. Tive vontade de fazer aquilo… Nossa, até ele sente o que eu sinto.
— Tá vendo? Isso é protagonismo! Pô, e tu queria tirar isso do piá… Dá não, diva linda. Já tá no sangue.
— Como se eu não fosse… — ela olhou para a direção do caminho de volta. — Será que ele pensa do mesmo jeito que eu também?
— Ele vai fazer o mesmo aqui, mas tu que é a matriz de tudo, falei? Desencana, Lilac. Tu é a prota e a líder.
A seu modo, a gata verde deixou bem explicado a situação.
Confiante, ela acenou para sua amiga: seu sinal de camaradagem.
O mote de Lilac. Ser líder. Ser protagonista.
A dragão púrpura possuía as duas honrarias.
Aliás, esse era o principal conceito de liderança: condição e não estado.
Ser líder é prestar companheirismo, fazer parte e compor duplicidade, caminho acima de ser empático.
Ser como o próximo, e servir como âncora e espelho.
Era o significado de chegar ao protagonismo.
Nem todo protagonista é líder, e nem todo líder é protagonista.
A dragão encontrou o limiar.
Era o momento de agir como tal.
Neste contexto, voltamos ao cenário anterior, na:
Lanchonete Grande Tesouro Grande | Noite
Onde tudo estava como antes, poucos minutos depois.
Diante dos olhares de Noah e Santino, era Milla quem lutava por Viktor — e pela união do time.
Enfim, o momento anterior voltou no mesmo ponto.
— Viktorius, para! — Falou Milla, com doçura em sua voz. — Só para. Você não é assim. Está todo mundo preocupado com você, do jeito deles. Tenta entender a gente, por favor!
— Milla… — reagiu o humano, olhando para trás.
Santino, tentando apaziguar, explicou bem os fatos.
O canino mudou sua posição: se sentou mais próximo onde o humano estava.
Ele, então, continuou:
— Naturais competitivos se colocam em perigo, agem com arrogância e, o pior, irresponsabilidade. Aqui em Avalice essa insistência é algo irritante, sabia?
O canino fixou seu olhar ao de Viktor, para deixar claro seu ponto de vista.
— Você se colocar em perigo pensando que vai dar bom é um erro. Sem Valor pensam assim.
Quase como um golpe poderoso, Viktor sentiu em sua alma de lutador a realidade do mundo da luta de Avalice.
Noah, voltando a cruzar seus braços e fechar os olhos, sacramentou a definição:
— Lutadores Sem Valor ignoram a lógica. Está além de ser esforçado.
Com o olhar distante, Viktor enfim entendia o ódio que sentira na Arena Shang Mu
Seu ímpeto, até então inabalável, recebeu um duro golpe, que o alimentou com pensamentos ruins.
— “Eu sou… um peso morto aqui?”
Verdades foram ditas.
E Viktor entendeu cada uma das palavras.
Seu choque só não foi consolidado porque havia alguém que falava por ele.
Na verdade, uma pessoa que se estressou por todos.
— O Viktorius já luta contra isso desde que entrou nas nossas vidas…
Noah só ouvia, estando calado. Santino fez o mesmo, mas olhava para a pequena.
Milla tinha mais a falar.
— Somos uma equipe, não somos? O Viktorius salvou a gente, todos nós! Por que vocês estão sendo tão duros com ele?
Ela atacou os dois.
Claro, não uma afronta; era um tipo de convocação, uma fuga reversa da acomodação.
Havia mais em jogo.
Santino foi o primeiro.
— São os fatos, garotinha. Ele precisa encarar o que vem pela frente. Só deixei claro o que tinha que saber
E Noah, o mais metódico, falou:
— O estrangeiro não conhece Avalice. O desafio que tenta abraçar está fora de alcance. Reconhecer os próprios limites já é digno.
A atitude de um protagonista era uma só: buscar movimento.
Não importa a intensidade; única motivação, várias vertentes.
— Foi ele quem conseguiu manter a gente inscrito no torneio. Ele fez isso por nós!
Milla desencadeou o “sair da zona de conforto”.
E isso ocasionou a reação de Viktor.
O “revés revertido”.
— Uma coisa que devo dizer a vocês… — falou o humano, fitando-os ao mesmo tempo.
O humano parecia ter acordado de um sonho longínquo.
O ar em volta, com cheiros que ele conseguia distinguir, era como um reforço ao porto seguro que conhecia melhor do que ninguém.
O ambiente ao qual estava era seu habitat natural.
A lanchonete, assim como o clima que dominava, o moveu.
Era o seu momento.
— Eu já estou mais do que acostumado a receber rótulos. Torneio, exames, um simples treinamento… Eu sempre fui desafiado! Qual lutador não foi?
Milla sorriu, sentindo que ele recuperava a chama.
Santino e Noah permaneceram em silêncio, absorvendo cada palavra.
Veio mais:
— Estou em Avalice, eu sei disso. Vocês têm coisas que só vocês sabem e eu, como estrangeiro, tenho que me adequar.
Seu olhar, ríspido, procurou os dois.
Emoção eclodiu.
— Mas na hora da luta tudo muda… Definitivamente, tudo muda! Vocês sabem disso!
Milla sorriu, sabendo que o recado estava sendo entregue.
A voz ecoou pela lanchonete, carregada de determinação.
— Não importa o que vocês pensem: estamos todos no mesmo time! Eu vou lutar com tudo que tenho, eu prometo a vocês!
Não eram simples promessas.
A honra de um lutador era seu patrimônio.
— Não importa se eu estou em desvantagem, vocês já falaram isso… eu vou lutar até o fim!
Não envolvia só Viktor.
O jovem sabia disso.
Ele fez questão de deixar isso bem claro.
— Vocês lutaram contra esses tais ninjas, os Vaidels. Eu estava lá na arena, relaxado e seguro… e conheci várias pessoas.
Quase uma lágrima surgiu.
A sua força interior cresceu, evitando o drama.
Era um chamado.
— Durante todo esse tempo vi ódio contra mim… mas talvez a luta de vocês tenha sido mais difícil. E fiquei feliz em ver todos juntos.
Ele reconheceu a luta que Santino, Noah e Milla travaram.
Viktor não parou:
— Vocês lutaram por suas vidas! Eu não tive essa experiência na minha vida de lutador, então eu não sei o que é, qual a sensação.
O pulsar do coração ocorreu.
Viktor era mais do que sinceridade.
— Acredito, de verdade, que ninguém quer ter a vida ameaçada… Ninguém! Mas, se for preciso, eu arriscaria a minha por vocês. Quantas vezes mais devo falar a palavra “lutar”?
As palavras invadiram a mente de Santino e Noah que, até então inabaláveis, sentiram o peso das verdades.
Mesmo em silêncio, seus pensamentos soavam quase como um grito.
Santino baixou os olhos, lembrando-se do pior.
Noah apertou os punhos, imóvel. A mensagem tinha um sabor diferente.
Ele, atormentado por um passado cheio de provações, recebeu um extra: uma outra voz, quase inaudível, mas que ouviu.
— “Onde você está…?”
Sacudindo sua cabeça, se colocou em dúvidas do que estava acontecendo e de quem era aquela voz.
Porém, ele não perdeu o foco.
Viktor era o que conduzia o desengate emocional.
O brilho voltou.
— Vocês lutaram… e venceram! E eu vou precisar lutar por mim… e por vocês! — bateu no próprio peito, com fúria.
Silêncio.
Mas o ar já não era pesado.
Era de união.
— Eu prometo a vocês! Eu vou lutar por todo mundo! Não vou desistir!
Tudo mudou.
O clima, até então tenso, deu lugar a algo próximo do complacente, transcendendo o ambiente opressivo de antes.
Milla moveu Viktor. Ele não parou.
Santino e Noah sentiram o chamado.
Mas faltava mais um componente.
A liderança.
— Acho que não vou precisar falar muito.
A frase veio de Lilac.
A dragão, momentos antes das últimas palavras do monólogo emocional de Viktor, tinha total ciência do que se transformou a reunião.
— Quando eu saí daqui pensei que minha moral tinha destruído o time. Mas, vendo vocês agora, devo pedir desculpas.
Viktor, olhando para a jovem, perguntou:
— Por que, Lilac?
— De pensar que o coração de vocês tinha se esfarelado. Depois de tudo que aconteceu… — suspirou, com um sorriso em seguida. — Sabe, tenho que te dizer uma coisa, Viktor.
— Hã? — A confusão estava estampada em seu rosto. — O que?
Ainda sorridente, tocou no coração do rapaz.
E ela respondeu:
— Antes te protegia, mas agora vou deixar você seguir o que sempre foi.
Ele, a princípio, não entendeu. Vendo Lilac não cessar o sorriso o pegou de surpresa.
Mas, com o tempo, vendo ela sorrir tão reluzente, se pegou no pensamento.
— “Ela… a senhorita Lilac… está me dando autonomia?!”
Da dúvida à confiança. Viktor entendeu a mensagem.
O rapaz devolveu o sorriso, como se fosse uma renovação.
Lilac não terminou:
— Antes eu era uma boba, tentando evitar que você não agisse. Te impedir que tenha personalidade é algo egoísta meu. Por isso te peço desculpas.
— Não se preocupe com isso, senhorita Lilac.
— Hehe… — ela sacudiu seu cabelo, o desarrumando. — Você tem que parar de ser tão educado e fofo assim, sabia?
As brincadeiras voltaram.
Até a didática estava mais leve.
E, falando nisso:
— Aí, quem quer sacolé? — Carol entrou, com uma sacola cheia da guloseima. — Tem de todos os sabores, nyah!
A gata, feliz, se aproximou da garota dragão, apertando sua mão.
— E o time? Tomou a responsa de vez?
— Você chegou a tempo para ver isso.
— Então vambora, diva linda! Os geladin aqui vão derreter, hehe.
Com isso, ficou definida a mudança de direção do astral da equipe.
Renovada e cheia de gás e energia, a dragão púrpura clamou por seu lugar.
— Antes eu achava que conseguia carregar tudo sozinha. Estava errada. — respirou fundo, encarando cada um. — Quem vota para dar a Viktor nosso apoio?
O silêncio pesou. Então, Lilac estendeu a mão sobre a de Viktor.
Isso pegou todos de surpresa.
Lilac não só convocou o time para fazer uma votação como mexeu com a moral de todos em uma só jogada.
Ela se pôs em provação como sua equipe, se igualando a todos.
Carol e Milla fizerem depois, sem dúvidas.
Santino, após relutar, também o fez, mas:
— Garoto, você falou bonito. Me prova que não foi só falação.
Noah era o último.
O irônico: a algumas horas era o time votando por sua inclusão no time.
No momento nem era algo tão dramático.
Porém, sua relutância disse muito do que significava confiar no Viktor, não na pessoa e sim no lutador.
Foi quanto o humano, ao olhar para ele, disse:
— Não sei como será o futuro, mas prevejo você cumprindo sua promessa a elas.
Um golpe poderoso e certeiro.
Viktor atingiu o coração de Noah.
— “Ele se lembrou da Ingrid e da Íris…”
Sem perder mais tempo, ele pôs sua mão sobre a do grupo, mas não sem falar:
— Você foi um dos primeiros a votar em mim mais cedo, e agradeço por isso. Vou te pedir desc… — tentou dizer, sendo impedido.
Viktor fez isso: levantou sua mão até a altura do rosto de Noah.
Ele falou:
— Tudo que você disse é verdade. E eu vou guardar, para nunca esquecer que você se preocupa comigo.
Os olhos verdes esmeralda de Noah tremeram, dando a entender que as palavras de Viktor soaram mais do que uma mensagem.
O albino não sorriu, mas sua positividade veio no apertar mais forte de sua mão à de Viktor.
Eles não eram amigos, simples colegas de equipe.
Mas ali solidificou o pavimento para uma relação duradoura.
Assim como eles, o time de Lilac acentuou seus laços.
Mais fortes e autênticos.
A união do time foi sacramentada.
Mas, em uma outra região de Shang Mu, ocorreu uma outra reunião.
Local desconhecido | Noite adentro
Áreas remotas e afastadas dos grandes centros eram o destino dos que escolheram as sombras como principal refúgio.
Em um ambiente noturno cercado de rochas e umidade, tochas acesas marcavam uma trilha no interior de uma gruta secreta.
Ruídos de água corrente, além de pingos, contrastavam com o eco ao redor, de vozes a barulhos dos equipamentos.
Com toques modernos, como leitores de terreno e radares ligados a um pequeno mainframe, o lugar era utilizado como base dos Red Scarves.
Com ninjas rasos em prontidão, eles guardavam a área, onde os Gêmeos Carmesim afiavam suas kunais e lustravam correntes.
Mais ao fundo, era possível ver Hong Se olhando para um monitor.
Com parte da máscara danificada, uma fissura na testa, ela conversava com o interlocutor.
A transmissão estava ruim, com a imagem distorcida, mas o áudio era cristalino.
A voz era familiar.
— Hong Se, você me disse que a missão foi um sucesso. Então porque o nome do time daquela dragão estava escrito no Tormenta?
— Fatores externos, Spade… — ela sussurrou. — A missão de sequestro foi cumprida, assim como o bloqueio ao time de Lilac. Quase eliminei dois alvos e…
Spade a interrompeu.
Ele estava calmo, mas contrariado.
— Quase eliminou. “Quase” acreditei que você cumpriu sua missão. Mesmo que o “quase” fosse concretizado, isso nada mudaria o fato de o time de Lilac estar inscrito!
— A contenção foi efetivada. Como disse, fatores externos influenciaram o sucesso pleno da missão.
— O “sucesso pleno da missão” é uma palavra bonita, mas cheira a fracasso! Fatores externos, como você disse, não serão tolerados. Quero que me diga o motivo.
— Os agentes de campo encontraram o tal fator: Viktorius Ashem. Estrangeiro acompanhante de Sash Lilac. Ele estava na arena todo esse tempo.
— Está me dizendo que a missão foi fracassada por causa de um fracassado? Que ironia do destino, Hong Se. Desligando… — a transmissão se encerrou.
O tom de voz de Spade, ao fim da videoconferência, era de frustração acompanhado por irritação.
A ninja líder dos Vaidels, após a reunião, passou a caminhar pelos corredores.
Sozinha, ela se viu à vontade para falar consigo mesma.
— Carol Tea… Sash Lilac… Eu juro: sem piedade na próxima vez. Seja contra quem for, minha espada cortará. Minha satisfação virá ao ouvir o grito de agonia de vocês.
Os Vaidels, ramificação rank S dos Red Scarves, não desistiram.
E Hong Se, implacável, tinha uma nova missão.
O torneio TORMENTA nem começou, mas intrigas estavam por vir.
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