Capítulo 106 - Poder Abstrato: Chi
“Pior do que ser o vilão é o herói que pune; se o poder é alto, a responsabilidade é ainda maior.”
— Royal Magister, monarca do Reino de Shang Tu
A conversa introspectiva e didática que Noah e Viktor realizavam no quarto do mestiço trouxeram novas informações acerca do Nirvana.
Seu desenvolvimento não era apenas uma demonstração de poder: consistia em movimentos e códigos físico-sociais que delimitavam o crescimento como cidadão de Avalice e, também, como lutador.
— Por que disse que isso marcará minha sina, Noah? — de pé, Viktor perguntou.
— Pelo simples fato de que eu, instintivamente, lhe chamei mais cedo — disse, virando-se para ele.
— O que seria?
— Um Sem Valor é definido como irresponsável no mundo da luta em Avalice. Mas, como já me retratei, estava errado a seu respeito — Fechou os olhos, arrependido pelo que havia feito mais cedo.
— Eu já te disse que guardarei cada palavra. sei que vocês, em Avalice, têm suas regras.
— Por coisas assim que me sinto culpado, por essa alcunha. Sinto muito pelo preconceito que você está sofrendo, Viktor.
Noah estava cercando Viktor de todos os cuidados possíveis.
Não era para menos: sua presença já foi notada por outros lutadores e isso era um agravante que o humano ainda não tinha noção.
Claro, ele já havia notado a inimizade mais cedo na Arena Shang Mu, mas o pior ainda estava por vir.
— “Ele precisa estar pronto mentalmente para o futuro. Tenho certeza que ele interpreta isso como em seu mundo. Minha dúvida é: em seu mundo a discriminação é como a nossa?”
Noah sabia melhor do que ninguém a brecha. Ser discriminado foi uma das facetas que enfrentou, como sua história mostrou1, longe de seu ponto de vista.
Em Avalice, honra, moral, dever e responsabilidade eram combinados, onde um único desvio causaria alterações no desenvolvimento do indivíduo avaliceano.
Mas qual o porquê de tanta prudência?
A resposta era simples: zelo pelo próximo.
Um poder tão extraordinário como as habilidades especiais carregava consigo pesos e inevitáveis efeitos colaterais.
— Você já sabe sobre as três fases iniciais. E creio que já absorveu parte delas… ou já fez esse rito em seu mundo. O que virá agora muda tudo.
— E o que tem a dizer do Chi e Feng Shui?
— Muita coisa… e espero que esteja pronto pelo que virá — Noah abriu os olhos, passando a observar Viktor.
— Você falando assim está me deixando preocupado.
— Esse é meu objetivo. É o que separa as ostras boas das ruins.
A ponte foi levantada.
Noah já deu uma prévia do que estava por vir.
Regra clássica: caso alguém mal intencionado o utilizasse, seria fácil chamá-lo de vilão.
Mas e se esse alguém não fosse um vilão, bem intencionado na prática?
Resposta ainda mais simples: um irresponsável.
— Ouça, Viktor: uma pessoa que possui bondade não poderia, de forma alguma, usar seu Nirvana sem controle.
O preço de ter habilidades especiais é alto.
— Autocontrole. É isso que quer dizer, não é? Nada disso é novidade para mim — falou Viktor.
— Bom saber que você tem noção do básico.
— Básico?! É muito difícil ter isso, sabia?
— Essa dificuldade… é proibida no mundo das artes marciais em Avalice. No seu mundo não?
As palavras de Noah atingiram Viktor.
Não no mau sentido; aquilo era o começo das provocações.
O Estudo do Nirvana era seguido por todos os povos de Avalice.
Suas regras eram dogmáticas como uma âncora, ante todos os povos e suas culturas.
Um mundo unido por filosofia e ensino milenar.
— Iniciação, Manifestação e Domínio Inicial. Os três status primordiais são amplamente vinculados aos outros seguintes — Noah novamente falava, com anotações em mãos.
O mestiço tomou então uma caneta e uma folha em branco.
Seu objetivo era ilustrar melhor a passagem de fases.
Mas, antes disso, buscou fixar as ideias anteriores.
Todas tinham componentes enviesados, uma ligava a outra.
— Silêncio da Alma: autocontrole. É nele que a criança consegue controle emocional. Não é fácil…
— Você disse que essa dificuldade não é aceita aqui em Avalice. Por que mudou?
— Eu não mudei. Crianças são crianças, você sabe. Quando você obteve autocontrole, Viktor?
Um silêncio momentâneo se impôs.
O jovem não respondeu, mas Noah entendeu o recado.
Continuando a explicação, o albino descreveu o próximo:
— Fluxo Interno: base. Nada flui sem esse status.
Havia um desenho de rocha sobre o segundo status.
Enfim, o terceiro veio em seguida:
— Eco do Espírito — aura constante. A Aura Máxima é visível e constante.
Noah era metódico, e seu jeito de explicar era acessível.
Todavia, aquelas ideias ainda soavam abstratas para Viktor.
O mestiço fitou o olhar no do humano, como se quisesse analisar algo ou passar a impressão de que havia entrelinhas.
Era como se tudo voltasse no futuro.
Mantendo a coesão, ele chegou ao ponto principal.

O poder abstrato: Chi.
— Após o Karma, as motivações do lutador atingem o aprimoramento do Chi.
— A força interior?
— Sim… e a exterior também — disse, dando um passo à frente com uma das mãos abertas.
Seu gesto tinha um motivo: da palma, uma centelha surgiu, propagando uma pequena iluminação.

Os olhos de Viktor fixaram naquela esfera, impressionado.
— Isso é fantástico, Noah! — sem fugir o olhar, sua admiração só crescia.
— Os três status iniciais do Nirvana aplicados ao mesmo tempo causa essa fagulha. Estou tendo o controle para mantê-la neste tamanho.
Sem perder o foco do seu controle, Noah fechou seus olhos, como sinal de confirmação.
O motivo? Simples: Viktor estava entendendo só em observar.
— Então o Karma é um tipo de código moral, o que faz o lutador ver o autocontrole como uma obrigação. Tudo para não causar problemas.
Cessou seus poderes, voltando a olhar para o humano.
— Você tem noção das consequências se não tiver controle. Estou impressionado.
— Mas isso estava escrito nas suas anotações.
— Porém agora isso veio da sua voz — o coração de Noah estava calmo, mas não totalmente. — Só espero que, ao saber os fatos, não te impacte.
Essa última frase de Noah deixou Viktor ainda mais preocupado.
O cuidado que o albino possuía para lhe passar os informes era quase como um presságio.
— “Ele está muito cuidadoso… Por que será?”
Mesmo com as questões internas levantadas, as explicações vieram.
— Chi é a energia vital que circula no corpo, expressa no combate — Noah tomou uma postura mais concentrada.
Dessa vez não era apenas teoria — veio a prática, a execução da ideia
Ele não só contou como também mostrou: um pouco afastado, próximo da janela, uma leve aura escura surgiu envolta do albino, que continuou a explicação.
Mas não sem antes Viktor ter lembranças dolorosas de mais cedo.
— “Essa sensação… parece como Huli, quando estava se preparando para me golpear — pensou, com sua vista trêmula. — “Só em lembrar eu sinto a dor na minha barriga…”
Ele pôs a mão sobre o abdômen, a lembrança gerou reação.
Noah prosseguiu na explicação, sem perceber o comportamento.
— A qualidade do Chi depende do equilíbrio entre Elemento e Nirvana. Canalizar o poder vital do corpo e do ambiente é a síntese.
Viktor voltou a si, e também levantou argumentos:
— Eu só pensava que era treinar mente e espírito. Pelo menos era isso que meu mestre dizia… mas ver o Ki… quero, dizer, o Chi assim é impressionante.
— As aplicações da teoria do seu mundo não são tão diferentes… — o mestiço não cessou a aura, ainda demonstrando. — Nessa fase, também há três status.
Ele se virou para Viktor.
Os olhos também emanavam a aura escura.
Noah falou:
— Fluxo Corporal é o controle consciente do próprio Chi. É o que estou fazendo agora.
Uma pequena pressão foi sentida por Viktor, que segurou a respiração por alguns segundos.
A amostra continuou.
— Projeção é onde o Chi pode ser liberado para reforçar armas, criar barreiras ou técnicas — virou para a janela, voltando a mostrar a mesma centelha de energia de antes, só que um pouco maior.
Noah respirava, a centelha oscilhou em sincronia.
Viktor não desgrudava o olhar da soma de energia.
A demonstração de Chi o tomava de curiosidade e admiração.
— “Isso é de verdade mesmo?!” — seus pensamentos deixavam claro sua incredulidade. — “Eu pensei que só em animes ou filmes isso era possível! As pessoas desse mundo são mesmo fora do comum!”
Noah seguiu para o terceiro status:
— Transcendência é o momento que o Chi deixa de ser limitado ao corpo. O lutador influencia o ambiente ao redor.
A centelha se tornou uma esfera: não só brilhava mais; emitia calor, soava com um ruído prateado etéreo e tinha massa.
A água que estava em um copo sobre a escrivaninha do quarto vibrou, reagindo à soma de energia.
O Chi concentrado de Noah também ressoava nos outros sentidos.
Tato, audição… e até mesmo o olfato.
— O Chi também tem cheiro, influenciado pelo estado de espírito do lutador ou sua essência. Ele pode ser moldado, absorvido e condensado. Mas nunca pode ser ignorado. A força é catalisada.
— Catalisada?! O Chi faz reagir o que tiver ao redor também?
— Exato. E fico até impressionado como você sabe disso. Avançou mais rápido do que imaginava, Viktor.
O sorriso do rapaz apareceu, tão espontâneo quanto o ressoar do poder de Noah.
Mas não foi só pelo elogio.
A normalização do albino falar seu nome o deixava muito mais a vontade e confiante no elo que estava sendo construído entre os dois.
Todavia, tal proximidade teria efeitos imediatos.
Noah ainda emanava sua aura, com seus olhos iluminados, onde até esse sentido era expandido.
A utilização de Chi, o seu efeito catalisador, fez com que Noah percebesse algo que a olho nu seria impossível.
Ele olhou para o dorso de Viktor que, mesmo vestido, não conseguiu esconder um rastro de energia vital.
O humano estava despreocupado, cujo único foco era o aprendizado.
Porém Noah usou isso a seu favor.
Haviam coisas que precisava saber.
— Viktor, você tem algum segredo a esconder?
— Hã?! Do que está falando? — disse, desviando o olhar.
— Percebi a presença de Chi na região de sua barriga. Tem algo a explicar quanto a isso?
— No-noah, eu não sei do que… — foi interrompido, surpreso.
A reação defensiva do humano veio momentos antes de Noah encostar sua mão no seu dorso: uma leve fricção entre energias ocorreu, deixando evidente o senso do albino.
Junto a isso, um leve desconforto de Viktor, seguido de uma expressão de dor.
Ficou insustentável para que o humano mantivesse o segredo.
— Lembre-se do Estudo do Nirvana. Seu Karma estaria no Julgamento, o segundo status.
Sentido e esboçando um semblante baixo, se sentou na cama, fugindo do olhar questionador de Noah.
— Eu precisei fazer uma coisa…
— E o que seria?
— Tem a ver em eu ser um Natural…
Uma tensão pairava no ar.
Noah, sufocante, insistiu.
— Diga, Viktor. Quanto mais breve for menos dolorido será.
— Antes que eu fale, como descobriu?
— Chi tem forma, como você acabou de aprender. Estou vendo e sentindo o Chi emanando de sua barriga. Foi um soco, não?
Viktor engoliu seco, com um fio de suor escorrendo pela lateral de seu rosto.
Ainda incomodado, relutou em falar a princípio, e Noah interviu:
— Pior que a mentira é a omissão. Você não é um mentiroso, mas esconder o que você fez cedo ou tarde vai trazer problemas, principalmente se descobrirem por outras pessoas.
O mestiço o atacou no ponto mais sensível de um lutador: sua moral.
E esse era o cerne da questão do ensinamento que estava recebendo.
Seu Karma ante os outros lutadores estava em jogo agora.
O albino exigiu isso.
Sem poder mais esconder, Viktor expôs a verdade:
— O senhor Huli exigiu que eu merecesse entrar na Arena. Não era só um ato de me inscrever. Eu precisava ser digno.
— O que? — Noah arregalou seus olhos. — Onde aquele raposo teve essa autoridade sobre você?
O humano ficou em silêncio, mas não mais incomodado.
Sua reação foi de guardião, como Noah entendeu.
— “Creio que será só até aqui que ele irá me contar o que houve…” — em seus pensamentos, sua dedução foi precisa. — “Ele tem segredos. E também sabe guardar o que nunca poderá ser contato…”
Fechando os olhos, quase como um confidente involuntário, Viktor explicou o ocorrido.
— Para entrar no torneio, como Natural eu passei por um teste de resistência. Um soco… sem que eu desviasse.
— Você se submeteu a isso?! — Noah rangeu os dentes, com os caninos protuberantes aparecendo.
— Nós só tínhamos alguns minutos antes de expirar o tempo para a inscrição e eu não tinha outra escolha. Era arriscar ou arriscar.
A questão sobre irresponsabilidade soou.
Noah não pegou leve.
— Viktor, Huli lhe aplicou um golpe com Nirvana aflorado. O rastro ainda está aí, consigo ver e sentir. Você sabe o que significa?
O albino sabia que o golpe não foi fraco.
Seus olhos tremiam, temendo que a resposta a seguir fosse um divisor, uma intensa troca de ideias.
Mas o tom intimista e direto de Noah veio com uma resposta ríspida mas realista de Viktor.
— Significa que nós estamos no torneio. É só isso que você ou eu devemos saber, tudo bem? O que passou, passou.
Com pouco, o jovem ressignificou seu ato irresponsável.
Sobre sua perspectiva, aquilo era o melhor que podia fazer.
Mas o quarto parecia diminuir de tamanho para Viktor a cada bravo do mestiço
— Você deveria agradecer por não ter acabado em um hospital, Viktor! — Noah o criticou. — Até mesmo lutadores com Nirvana sofreriam danos!
O humano reclinou seu ombro, como de alguém que carrega culpa mas que não se abala, como uma fortaleza feita de concreto e rocha.
— Dano maior que lutar contra o preconceito daquela gente que me xingava? — sua raiva transpareceu, mesmo que só um rastro dela. — Ouvi-los doeu mais que receber o golpe!
A mão esquerda se fechou, seu punho veio a frente. Viktor encarou Noah.
O mestiço recuou um passo, mas foi ao ataque.
— Você me disse na lanchonete que sabia lidar com a provocação. E você resistiu as de Sheng. Por que está dizendo isso?
Viktor não desviou o olhar, jogou o punho para o lado.
O esboço de justiça de Noah contrastou com o que Viktor ouviu do raposo ruivo na Arena Shang Mu.
— Um lutador não busca justiça, não é heroísmo. Você faz seu caminho ou segue por um. O justo é abstrato. A luta é concreta.
Aquilo soou como algo próximo a uma crítica, que Viktor não estava disposto a ouvir.
As palavras vieram, duras e carregadas de realidade.
— Simples: um lutador sabe aguentar, mas ainda assim machuca saber que existem pessoas que te odeiam só por você ser você mesmo!
Insistir na discussão seria um ato de tortura. Foi essa a primeira impressão que o albino interpretou.
Ele sentiu que Viktor era forte de espírito, seu Karma era presente, mas a realidade pesava.
E não existia nada que Noah pudesse dizer para mudar este fato.
Viktor fez uma escolha: a sua.
O mestiço piscou três vezes, em manifesto. Ele foi pego de surpresa.
— “Perspicaz. Convicto. E sincero. Só bons adjetivos. Ele possui um Karma puro… e carrega um fardo pesado nas costas.”
Não era algo usual, mas respeitou a opinião do humano.
Isso fez trazer à tona a própria história de Noah na Vila Aldeia Melanmarii, um episódio traumático em sua vida, mas que enfrentou de corpo e alma.
Nesse momento, ele recordou do preconceito inicial quando mostrou seu ponto de vista.
— “Não sou ninguém para querer questioná-lo” — pensava Noah, trocando olhares. — “Estava a segundos de ser um perfeito hipócrita. Mas, mesmo assim, ele se arriscou.”
Sem desviar das lembranças, chegou a uma conclusão:
— “Viktor deve ter um senso absurdo de comprometimento com Lilac e as garotas…”
Noah se recompôs, puxando ar e raciocinando.
Complacente com a situação, esboçou um olhar mais compreensivo, fugindo do tom questionador e partindo para a sapiência.
No fim da discussão, voltou suas atenções ao que estavam tratando: o ensinamento do Nirvana.
Voltando ao centro, sob os olhares do jovem humano, ele se virou e disse:
— Quero que interprete minhas perguntas como preocupação, e não acusação.
— Eu entendi sim, não se preocupe — um sorriso surgiu no rosto do jovem.
O laço não se desfez.
Pelo contrário: vê-lo sorrir fez com que Noah encontrasse um farol no meio de um oceano.
Ele se viu no mar, mas em terra durma dessa vez.
Reaquecido a chama, o calor do ensinamento alcançou a última temperatura:
— Agora irei lhe explicar sobre a última fase: o Feng Shui.
— O ponto final do desenvolvimento do Nirvana…?
A pergunta veio vaga, como alguém vislumbrado. Viktor estava ansioso.
Noah recebeu a definição como um convite.
Mas que, a princípio, ele deixou claro que não era o fim.
— O Feng Shui não é o fim, Viktor. É só o começo do que pode te salvar… ou te destruir.
A tensão estava de volta, a toda força.
- Nota: como visto na saga Mar de Revolta.[↩]

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