Índice de Capítulo

    Hotel Gigante de Shang Mu

    Quarto de Carol | Madrugada

    Sob o silêncio da pousada luxuosa, Carol ainda estava acordada, mesmo na calada da noite.

    As paredes, pintadas com tinta indelével bem cara, tinham também confecção arrojada: filtros de espuma e forro de cobre isolavam ruídos de qualquer decibéis nos cômodos.

    Tudo isso trazia mais quietude.

    Confortável, ela olhava para a janela, observando o céu estrelado e sem nuvens, como se estivesse esperando as horas passarem.

    Deitada na cama, a felina verde descansava a cabeça sobre os próprios braços.

    Entregando, alguém bateu na porta.

    — Ué, qual foi? — levantou, estranhando. — Será que alguém tá precisando da senha do wi-fi?

    Sem perder tempo, foi até ela, abrindo-a.

    Atrás, surgiu Lilac.

    — Carol, sem sono também? — o rosto estava mostrando seriedade.

    — Pô, do nada, hein… — coçou o nariz, sorrindo. — Tô na expectativa pra daqui algumas horinhas, sabe? Vamo lutar, caraca! Fala tu, nyah!

    Mesmo a animação da gata não fez mudar a feição da melhor amiga.

    Ela percebeu logo, ligeira.

    — Tá… — Carol deu espaço, chamando Lilac. — Tu quer trocar um lero, né

    — Isso mesmo… — caminhou para dentro do quarto, fechando a porta.

    Breve, as duas se sentaram na cama, e a dragão foi logo direta ao assunto:

    — Eu não quis falar isso para os garotos, Carol: você sabe muito bem que a Hang Se vai voltar a parecer.

    — Claro, né? Depois daquele dia, um tempão atrás, ela ia guardar pendenga da gente, oxe!

    — Ela quer vingança, tenho certeza. E quase sobrou para o Santino Rock.

    — Pô, pode crer. Tipo, tava pensando que era só coisa entre ela e a gente, mas pegar o dogo lá foi vacilação.

    — Carol, você tem noção da seriedade disso?

    — Visto um vestidin se não, tá? Tu acha que eu tô de zuera? O Santino quase sofreu por minha causa.

    Lilac foi um pouco mais dramática.

    — Por nossa causa, você quer dizer — falou, olhando para a janela. — Os Vaidels são sujos, como o Spade gosta.

    — É, ele se amarra em “gente centrada que faz de tudo pra cumprir com a missão, seja lá o que for preciso fazer ou…”

    Carol parou de falar.

    Não por não ter o que dizer (ela é uma tagarela) mas que a brincadeira irônica terminaria com uma palavra pesada, que Lilac fez questão de completar:

    — Matar — sua voz tinha peso negativo. — Os Vaidels são capazes disso. A Hang Se tem sangue nas mãos…

    Carol se aproximou de Lilac, apoiando sua cabeça no ombro da amiga.

    A confiança que uma tinha na outra era muito forte.

    Tanto que a dragão a abraçou, deixando a proximidade ainda mais íntima.

    — Essas parada do passado de volta me deixam tensa bagarai, Lilac.

    — Eu também… — fazia cafuné na felina. — Mas nos saímos bem. A única coisa que me preocupou foi meter os rapazes nesse assunto nosso.

    — Pô, pode crer, mas… — se levantou, olhando para a janela.

    — O que foi? Tem mais alguma coisa?

    Carol não escondeu o que a preocupava.

    — O piá, diva linda. Foi maneiro pacas aquilo que tu disse do cara, sabe? Gostei pacas, nyah!

    — Ora, era o mínimo que eu deveria fazer.

    — É, mas… Tu tava sendo bem cricri com essas coisas. Tava pensando que tu queria ser babá dele ou coisa assim… Eu tava grilada, de verdade.

    Após as palavras de Carol, Lilac se levantou.

    A gata, curiosa, a observou caminhar até a janela.

    Estranhou, a perguntar:

    — Que foi? Tão tacando pedra na janela?

    — Carol, para — disse, sem se virar. — Você não precisa tentar esconder que está preocupada.

    — Ah… e como tu sabe disso?

    — Muita piada, e os pêlos da sua orelha direita estão ouriçados.

    Um detalhe mínimo, que só a intimidade de ambas traria a tona.

    A felina verde se viu descoberta.

    — Aquele chatolino lá, o Sheng… acho que esse é o nome do laranjão, estragou tudo. Agora o piá tá sabendo das treta.

    — Concordo com você… — falou, cerrando o punho. — Os demais lutadores já notaram o Viktor, já perceberam seu Karma. E, para o Sheng ter falado aquilo, já sentiram seu Chi.

    Carol olhou para a dragão, mostrando preocupação.

    Não era usual que a felina tivesse esse comportamento, mas estava receosa quanto ao bem estar do amigo.

    Ela divagou:

    — A gente teve aquela conversa lá naquela praça mó zen… Tu tá certa em dar moral para o piá, tá? Só que…

    — Carol… — Lilac se virou, a fitanto. — Até você sabe que ele pode correr perigo, reconheça!

    — Tá, mas… Essa parada aí de proteger o cara também não é legal. Mas sim, o piá não sabe dos paranauês do Nirvana. Só isso já é mó brabo de levar.

    — Eu lhe dei autonomia, porém meu plano é que não se exponha mais.

    — Pô, mas isso aí é… — Carol foi interrompida.

    — Pare! Não diga nada! — retrucou a dragão. — Não significa que irei pressionar ou ser superprotetora. Eu só… — abraçou a si mesma.

    Existia uma resistência por parte das duas.

    Por um lado, a autonomia muito bem-vinda recebida de Viktor por Lilac encheu o jovem de confiança. Foi um ato benéfico para toda a equipe.

    Todavia, tanto Carol quanto Lilac sabiam dos riscos e queriam que o jovem estivesse em segurança.

    — Eu prometi ao Ying protegê-lo, Carol. Até onde der, deixarei que Viktor faça o que quiser. No devido momento que ele correr riscos, vou intervir.

    — Jaé… — apoiou os cotovelos nos joelhos. — Só pega leve se o piá começar a se sentir vigiado. Já basta a pandurona da Neera Li fazendo isso.

    — Já te disse pra não chamá-la assim, Carol.

    — Ah, nem defende! Nem defende! O piá tá mais seguro com a gente que com ela, você sabe.

    Lilac sorriu, acompanhada por Carol.

    A risada das duas ocorreu, em volume baixo, mas com um valor alto demais.

    Elas sabiam que podiam contar uma com a outra, e agora tinham mais em comum.

    Cuidar da segurança de Viktor se tornou uma missão extra.

    Enquanto isso, em outro lugar…

    Quarto de Noah | Madrugada

    O Estudo do Nirvana prosseguiu madrugada adentro no quarto de Noah.

    Com a aproximação dos dois rapazes, tudo se tornava mais próspero para o cultivo de uma amizade.

    Claro, ambos só eram colegas de equipe, onde as interações de Viktor mostravam suas vulnerabilidades mas, ao mesmo tempo, sua sinceridade e inocência tocavam a superfície rígida e acidentada da personalidade de Noah.

    Sob a solenidade e introspecção no ambiente, os ensinamentos continuaram.

    O albino, mostrando um pouco mais de respeito ao humano, se sentou ao seu lado, mas desta vez de uma forma mais amigável.

    O assunto era a fase final: o Feng Shui.

    — Esse, de fato, é o ápice, onde o lutador se torna um com o cosmos — falava, lhe mostrando anotações de Nirvana. — Mas não se engane, não termina aqui.

    — O que? Mas não é a última fase?

    — Como tudo no mundo das artes marciais, como você deve saber mesmo sendo de outro mundo, o limite é algo relativo.

    Viktor refletiu internamente. Seus pensamentos confirmaram a afirmação.

    — “Ele está certo. Meu mestre sempre disse que ‘o limite de um lutador é até onde ele consegue alcançar as estrelas’. Mas como isso se aplica em Avalice é o que preciso saber…”

    Diante desse dilema, ele deixou tal dúvida para outro momento.

    Noah tinha algo a mostrar: uma nova anotação, mais rabiscada e lotada de outros vieses.

    Viktor percebeu que o albino fez um estudo aprofundado, mas sem definir totalmente o significado pleno do Feng Shui, deixando claro o teor cósmico da fase.

    Contudo, ele se centrou no conceito, nas definições gerais.

    — Os três status do Feng Shui são a espinha dorsal da plenitude do desenvolvimento de habilidades especiais, sejam elas no físico ou na força Chi.

    Mostrando o folheto a Viktor, ele sintetizou cada uma delas.

    Mas com muito mais empenho dessa vez.

    Ressonância: é o equilíbrio entre corpo, mente, espírito e natureza. É aqui que a maturação começa.

    — A harmonia fica mais forte, é isso?

    — Isso mesmo. Como primeiro status, já aqui o lutador já tem um poder Chi extraordinário — ele olhou para Viktor, realçando esse status. — Ou deveria ter.

    O humano estranhou as palavras, não sabendo o porquê da ênfase.

    Noah continuou.

    — O próximo é a Integração: o lutador é capaz de alterar o fluxo natural de energia em volta.

    — Espera, como assim? — perguntou o rapaz, mas não livre de pensamentos. — “Por que será que isso parece familiar pra mim? Estranho…”

    — Correntes de vento, rios, emoções, são influenciados e até usados. A personalização das habilidades especiais, intrínseca.

    Outra vez, Noah manteve o olhar no de Viktor, como se aquilo fosse uma provocação.

    — “Noah está me olhando de um jeito suspeito, como se estivesse buscando algo de mim… Será algum tipo de desafio ou coisa assim?”

    O teor da conversa e da troca de olhares deixou de ser só intimista; era um chamado para o raciocínio, que ainda não havia acordado.

    Não era um movimento para a lógica; era um mosaico sendo construído e que precisaria de uma perícia maior.

    Noah, enfim, falou o último status:

    — Chegamos até Unidade: é o estado de perfeição. O indivíduo e o universo já não têm fronteira, alcançando poder lendário.

    A surpresa de Viktor veio a toda potência.

    Seus olhos arregalaram, o que o fez se levantar.

    Viktor estava transbordando de descobertas.

    — Es-espera aí, Noah… — o impacto foi gigante. — Eu me lembro que em Karma o lutador já tinha esse título de lendária. Como assim você está trazendo isso de novo?

    — Hm… Não lembro desse detalhe… — Noah fechou seus olhos, em sinal de negação, os abrindo em seguida.

    Era um blefe, para testar Viktor.

    — Como não? — A confusão do humano veio. — Você disse que eram como lendas quem adquirisse o status Destino em Karma! — Viktor até pegou outro folheto com as anotações de Noah.

    Esse seria o ponto onde o raciocínio encontraria o fechamento das ideias.

    O Estudo do Nirvana era algo, na imensa magnitude de sua teoria, difuso, sendo concreto só para alguns que conseguiram atingir todos os graus de aprendizado.

    Mesmo assim, não só alcançar o céu era o término.

    Agora o passo era muito maior.

    — Viktor, o ‘quase’ não é total. Qualquer lutador adquire a alcunha de mítico caso aja como tal. Porém existe um abismo entre social e cosmo.

    — O que quer dizer? — seu semblante deixou claro sua inquietude.

    — Como esperado, você ainda não entendeu… — suspirou, fugindo do olhar.

    Noah não recorreu mais a livros ou folhas de suas anotações dessa vez.

    Tudo que deveria mostrar como teoria escrita já havia sido mostrado.

    Na opinião dele, esse era o momento de amarrar todos os conceitos do Nirvana.

    — Suas ações sociais podem te levar ao nível lendário. Todo lutador possui esse objetivo, seja de vida ou só como ambição. Mas, no caso dos que avançam ao Feng Shui, isso se torna algo mais intenso e pessoal.

    — Onde quer chegar, Noah? — Viktor estava impaciente e também incomodado. — “Eu tenho quase certeza que já vi áudio assim antes, mas não consigo lembrar…”

    O mestiço não pestanejou:

    — A Unidade é transcender o cosmo. Você possuirá parte do universo nas mãos… Mãos de Lutador Lendário.

    — Mãos de Lutador Lendário…? — A repetição da frase veio com dúvidas.

    O albino, que estava no centro do quarto, voltou a emanar sua aura escura.

    Foi instantâneo, e com mais intensidade que antes.

    Até mesmo as cortinas começaram a tremular, assim como o pouco pó do assoalho e móveis ao redor.

    Viktor observava, atônito, prestando total atenção ao manifesto de Noah.

    Os olhos do albino brilharam, mantendo o tom esverdeado, como se fossem esmeraldas iluminadas.

    O momento atual trouxe ares cósmicos, como Noah queria sustentar.

    Uma bola de energia surgiu em uma de suas mãos, aumentando ainda mais e, sendo condensada com a outra mão, a fez se unir a seu corpo, energizando-o.

    O ganho de força Chi, seu valor, peso, forma, cheiro e tensão eram mais do que sentidos: Viktor recuou dois passos para trás.

    Ele sentiu a pressão, mas não do poder de Chi de Noah: era de sua surpresa ao contemplar o fenômeno.

    — Isso é maravilhoso, Noah! — seu vislumbre veio acompanhado por um pouco de temor. — “Então as pessoas de Avalice podem fazer isso?!”

    O vislumbre de Viktor se repetiu, onde parecia não se cansar de ver a manifestação dos poderes de Noah.

    — “Cara, nunca pensei que esse tipo de coisa fosse existir, mesmo em outros mundos. Nem com a Milla eu tive essa sensação…”

    O mestiço, ao ouvir Viktor, tomou uma postura diferente: se colocou em base de luta, exatamente como a de sua doutrina.

    — Segunda técnica defensiva do Caminho de Kai: Base Faamalosia (trad: Fortificada) — ele levou umas das mãos acima da cabeça, a outra na altura da barriga. Pernas levemente flexionadas apontando para frente.

    Aquilo fazia parte da explicação.

    A prática ajudou na definição.

    — Mesmo com a máxima de meus poderes, não obtive ainda as Mãos de Lutador Lendário.

    — Para mim parece bem lendário.

    — Hm… Não se confunda. Estou longe. Só conseguirei após aplicar perfeitamente o Triângulo de Kai.

    — Eu me lembro disso… — Viktor teve boa memória. — Você disse isso na entrevista na sua casa.

    — Exato… — disse Noah, desfazendo da aura.

    — Mas isso foi mais impressionante que a centelha que me mostrou mais cedo… ou sei lá o que era.

    — Uma centelha de Nirvana é só uma fração. O que acabou de ver é o Chi em sua essência plena, mas…

    A adversidade na fala de Noah veio acompanhada por um mistério, logo assim que voltou a janela.

    Um mistério pairou sobre o silêncio repentino dele, como Viktor percebeu.

    O humano, curioso, forçou pela descoberta.

    — Por que parou de falar, Noah?

    Ele se virou para o jovem, dizendo:

    — Alguma vez se sentiu dentro do cosmos, Viktor?

    — Hã? Cosmos? Você quer dizer chegando até às estrelas, do universo e essas coisas?

    — Exato… — sussurrou, sem fugir o olhar.

    — Várias vezes… — seu tom de voz era mais sério. — Muito do meu karatê é trilhado por esse entendimento. O corpo se une ao propósito da mente e espírito.

    — Me agrada muito que saiba disso… — ainda sussurrante, Noah pegou um dos seus folhetos. — Facilita muito minhas explicações. E elas já estão no fim.

    — No fim? — dúvida aparente. — Você me disse que o Feng Shui não é o fim. O que isso quer dizer?

    Noah voltou a mostrar para Viktor o mesmo fluxograma do início, levantando bem a sua frente.

    Suas palavras vieram.

    — Me responda, Viktor: em qual dessas fases você acha que se encontra.

    O humano, atento, olhou para a folha, assimilando para si tudo que ouviu até agora.

    A fonte de conhecimento que obteve lhe ajudou a elucidar mais do que Avalice apresentava da sua rica cultura de artes marciais.

    Após um tempo analisando, estendeu a mão e apontou o dedo: indicou para o Elemento.

    Noah não mostrou surpresa, assumindo um semblante ainda sério, mas neutro.

    — Por que acha que está nele?

    — Acho que não saí do início, sendo bem sincero.

    — Explique-se — indagou Noah.

    — Não sou de Avalice, então não absorvi nada ainda. Não sei meu elemento, eu não tenho a mínima ideia de como adquirir Nirvana.

    Noah o ouviu atento, deixando suas palavras adentrarem em sua mente antes de falar sua opinião.

    Viktor concluiu:

    — Talvez o Karma seja fácil de desenvolver, e o Chi que eu conheço não tem a ver com o daqui. Feng Shui… bem, tenho certeza que estou longe dele.

    Noah respirou, puxando o ar em sinal de negação.

    Ele balançou sua cabeça, com os cabelos cobrindo seu rosto pálido.

    — Viktor, você não entendeu bem as definições do desenvolvimento.

    — Como assim?! O tempo inteiro estou lendo suas anotações! Como não entendi?

    Foi nesse instante que Noah tomou o folheto do Estudo do Nirvana, apontando diretamente para o fluxograma.

    Seu dedo mostrou a Viktor a fase a qual estava.

    Sob o olhar pasmo do humano, a constatação quase o fez cair para trás.

    — O que?! Mas… Como?!

    Sua fase era o Feng Shui.

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