Capítulo 108 - O Conflito entre Culturas: Laços Renovados
“Se já repousas no cosmos, então o que o teu corpo e tua alma atravessaram para chegar lá? O Nirvana não é o destino, mas o rastro do caminho percorrido.”
— Mao You, fundador da Arena Shang Mu
— Isso é impossível, Noah! E não faz o mínimo sentido!
As falas de Viktor, cheias de dúvidas e negações, transformaram a suposta aula do Estudo do Nirvana em um embate cultural.
O albino, só observando as crônicas do humano, franziu seu rosto, como se estivesse irritado.
Foram só alguns segundos, mas o suficiente para deixar claro seu descontentamento.
Tão logo, expôs seu ponto de vista.
— Vejo que você não tem ideia alguma do Estudo do Nirvana.
— Mas foi o que eu acabei de dizer. Qual o problema?
— Viktor, pense um pouco mais. Será que não percebeu qual seu lugar neste fluxograma? Você se colocou em perigo horas atrás por nada?
— Hã? Do que está falando? O que quer dizer com isso? Você está errado, não é possível!
Noah precisou ir mais além, mostrando exatamente onde Viktor estava no esquema que desenhou.
Ele apontou para a fase: Feng Shui.
Boquiaberto, Viktor se manteve em colapso, após a confirmação
Uma gota de suor surgiu em seu rosto, escorrendo por sua bochecha até que, ao menor ponto, foi em queda livre.
Esse era um sinal, de como o espírito de Viktor se sentiu após a notícia bombástica.
Noah expôs as entrelinhas, para que tudo ficasse mais elucidado:
— O levei a todo instante com provocações para que você mesmo descobrisse a verdade, que estava diante dos seus olhos.
Engolindo seco, o humano perguntou:
— Meu por quê? Como eu estaria nesse estágio? Não faz sentido!
— Simples, Viktor — definiu Noah, o fitando. — Todo Natural em Avalice, por não ter Nirvana, já está em seu limite pleno.
— O que?! Limite pleno…? — seu olhar conflitante mostrou mais da sua vulnerabilidade.
Noah, mais metódico, ainda segurava o folheto.
Ele argumentou em seguida, mostrando ao humano a sua fundamentação:
— Pense e veja você mesmo o caminho que trilhou até aqui…
Incitado por obter a lógica de suas ações, Viktor viu em seus pensamentos todos os anos que passou treinando com seu mestre no dojo de seu mundo.
Dias de treino intenso, semanas de árduo esforço, meses cheios de provações, e anos carregados de desafios e tributações.
A sua vida, o seu caminho, nos bons e maus momentos, justificaram seus calos ósseos, destacados a horas atrás por Huli.
Claro, o jovem foi por um caminho diferente do que Noah imaginava.
O albino idealizou sua estadia em Avalice, para que refletisse.
— Ponha-se em Avalice… e veja pelo o que lidou até aqui — falou, encarando Viktor. — Você interagiu com pessoas desse planeta, se envolveu com eles… fez amizades, tenho certeza. Tente assimilar tudo ao que eu te disse.
O jovem, desta vez, o fez, por partes.
Cada degrau do Estudo do Nirvana veio junto com as experiências em Avalice que passou.
Em Shang Tu, durante o torneio de artes marciais, Viktor lutou e mostrou seu valor.
— “Muita gente me viu…” — indagou internamente. — “E eu lutei com tudo…?”
Em Shuigang, viu Milla lutar, assim como se colocou em combate nas ruas.
— “Eu usei o estilo Kyokushin! Eu me lembro!”
E até enfrentou o guardião do reino de Shuigang.
— “Encarei o Ying cara a cara…” — a assimilação começou a fechar. — “Ele, com certeza, analisou meu Karma! Mas…”
A mente clareava, as ideias tomavam forma e força.
Viktor percebeu que tudo que Noah falou até então fazia sentido.
Era lógico.
— “Eu decidi esperar pelo time em frente a Arena Shang Mu e…” — enfim, mais um fechamento. — “Aqueles lutadores que estavam olhando pra mim me fizeram gritar! Aquilo era eu… demonstrando Karma?!”
Sim, ele ligou esse fato.
Neste instante, Viktor teve noção do mecanismo que realizou: o terceiro estágio já estava fluindo como todo lutador.
Ele gritou, esboçou sua presença frente às encaradas. Com isso, seguiu com sua sina de lutador, inconscientemente.
Conheceu Tats, conversou com ela, e ganhou até mesmo o respeito de Joshy, que nunca o havia visto na vida.
Seu Karma estava no ápice.
Isso impactava sua moral.
— “Todos estavam gritando e me xingando… por eu ter provocado isso neles?!” — sua constatação veio com força. — “Tudo que aconteceu foi causado por mim!”
O olhar distante de Viktor mostrava que havia encontrado as respostas.
Noah percebeu.
— Encontrou as respostas, não foi? — o olhava, se sentando na cama.
— Sim… — Viktor ainda estava sem chão. — Eu o tempo todo já estava no Feng Shui… porque mostrei que posso lutar, que conheço artes marciais.
— Os Naturais competitivos em Avalice já sabem que nunca terão habilidades especiais. Já lutam sob o cosmos… e só amparados nessa força poderão ter sucesso em combate, caso a consigam.
Pegou outra anotação, desta vez uma com o fluxograma esboçado do rito de um Natural.
— Aqui… — mostrou ao humano. — Esse é o que um Natural segue: começa no Feng Shui… seguindo do fluxo Yin e Yang.
— O que?! Eu… eu conheço isso! Tem no meu mundo! — Viktor estava surpreso. — Harmonia acima de tudo e de todos!
Um pequeno sorriso surgiu no canto da boca de Noah, quase invisível.
Aquilo o animou, mesmo que Viktor não tivesse percebido.
— Ótimo, existe uma esperança.
— Por que disse isso?
— Continue olhando para o papel, Viktor. Está tudo aí, bem explicado.
E assim o humano fez: a leitura foi tão acessível quanto antes.
Em pontos didáticos, seguiremos pela seguinte linha:
O Feng Shui aparece como o estágio final da formação de um lutador em Avalice, um ponto de equilíbrio que vai além dos elementos.
Isso é bem coerente (como a tradição chinesa em nosso mundo), onde o Feng Shui não é só arquitetura ou disposição de espaços, mas uma filosofia de harmonização entre o ser, o ambiente e a energia vital (Chi).
O equilíbrio Yin & Yang: o fundamento do Feng Shui é justamente balancear forças opostas, mas complementares.
Explicando melhor suas aplicações, temos:
Taiyang (太阳): o calor interno, o brilho do Chi, ligado ao Yang (expansão, luz, movimento, poder ativo).
Yueliang (月亮): o amadurecimento interior, introspectivo, ligado ao Yin (acolhimento, sombra, reflexão, receptividade).
Essa dualidade mostra que o lutador não pode depender só de poder explosivo (Chi, força física, habilidades), mas também precisa de maturidade, calma e autoconhecimento.
Ou seja, o Feng Shui é o elo que une o externo (Chi/Nirvana/Karma) com o interno (equilíbrio emocional, caráter e espiritualidade).
Se o lutador não dominar esse fluxo natural, o seu Nirvana e o seu Chi podem ficar instáveis.
Daí a importância do Feng Shui: é ele que garante que cada fase esteja em harmonia com a próxima, como se fosse a arquitetura invisível que sustenta a evolução do lutador.
Com esse cenário construído, Noah voltou com a palavra:
— O Feng Shui não é só técnica: é filosofia de vida — falava, de forma firme. — Sem ele, o Nirvana pode se tornar um fardo em vez de uma libertação.
Os olhos de Viktor brilhavam, mas não como uma luz; eram de incredulidade, de quem tinha mais sombras pairando do que um feixe luminoso o guiando.
Noah continuou;
— É uma ponte entre força e sabedoria, que garante que o lutador use suas habilidades especiais sem se perder em arrogância, raiva ou instabilidade. Você está entendendo?
— A-acho que sim, Noah… — a realidade pesou em seu ímpeto.
Sem misericórdia, o albino concluiu:
— O Feng Shui é o guardião da harmonia. Ele não cria poder, mas orienta o fluxo desse poder. Contudo, para Naturais, ele é o único estágio existente… e sua vitória em combate depende do imponderável.
O humano voltou a ficar surpreso, desta vez com mais intensidade.
Ele chegou até a investir na direção de Noah:
— Imponderável?! Você quer dizer que vem ao acaso?
— Hm… Não. Nada no mundo da luta é ao acaso. Todos recorrem à única força divina que podem atingir.
— E qual seria?
— A fé… que os nutre profundamente. Uma junção entre vontade, coragem e determinação, culminando em um milagre… e é só o que resta.
Noah respirou fundo, voltando a ficar de pé.
Com esse movimento ele finalizou sua explicação.
— Sua sina no mundo de onde veio tem fases, tenho certeza. Mas, aqui em Avalice, é melhor olhar para o que esse fluxograma… e veja o que você deixou para trás.
Como se fosse um último golpe, tão duro que fez com que Viktor gelasse, o humano olhou para o folheto.
— Eu não tenho um elemento, nem mesmo Nirvana… e meu Karma já está na mente de todos aqueles lutadores.
Noah só o observava, mas não de forma fria.
Pelo contrário: o via como um espelho, que a minutos atrás teve essa visão.
— “Eu tinha esse mesmo sentimento naquele lugar maldito…” — pensou, com suas Íris tremendo.
Lembranças infelizes cercaram o albino por alguns segundos, fazendo com que sua pelagem se ouriçasse.
Enquanto isso, o humano dialogou:
— Tenho entendimento do que é Chi e, como você já disse, eu estou no último estágio.
— De quem deverá lutar no limite — finalizou Noah. — Agora você sabe de toda a verdade por trás da repulsa que sofreu… e eu sinto muito por isso.
A explicação fria e crua estalava na mente de Viktor, em casa uma das fases do Estudo do Nirvana:
Elemento: “qual seria o meu?”
Nirvana: “como conseguir isso?”
Karma: “todos me odeiam por eu ser um Natural.”
Chi: “o meu Kiai é a forma que manifesto minha força!”
Feng Shui: “é onde estou… e onde não estou!”
Todos os estágios, em lampejos imperfeitos, mostraram os fatos: Viktor era só um esboço do que um lutador avaliceano precisaria para ser, no mínimo, competitivo.
Ele era forte no esforço, mas fraco no sistema.
Trêmulo e ressentido, sua respiração parecia parar e ficar inconsistente, quase um ritual ao colapso.
Para um lutador, esse era o pior estado emocional, talvez três níveis ainda do tolerável.
Era o estado chamado de Medo Insalubre: o lutador tem medo de ter medo e de ter coragem em ter coragem.
É mais complexo do que simples covardia; trata-se de uma distorção da coragem, onde até a própria reação se torna um risco.
Esse estado deve ser respeitado se assim atingido por um lutador — sair dele depende exclusivamente da pessoa.
Estático e imerso no âmago marcial que sempre cultivou, Viktor se viu em um labirinto de paredes idênticas, sem saída e com o tempo suspenso.
Até o ar, rarefeito, era um obstáculo; era como o fundo de um oceano claro e cristalino, mas onde a respiração se exaurisse a cada passo de fuga.
Seu drama ganhou ares épicos.
Fora da epifânia do humano, o fluxo temporal prosseguiu normalmente, com o seu colega de time à sua frente.
Noah, sempre o observando, caminhou em sua direção.
Viktor, parado e rangendo os dentes, parecia concentrado mas, sob o olhar crítico do albino, era como se o colapso o tivesse tomado por completo.
— “Devo apoiá-lo mesmo assim. É o que gostaria que fizessem comigo naquele lugar…”
Mesmo Noah, controlado, tinha seus dilemas internos; suas reações eram invisíveis, mas sua alma tempestuosa não o deixava esconder de si mesmo seus conflitos mal resolvidos.
— “Eu agi assim mesmo quando cheguei em Melanmarii…” — suas lembranças resgataram a imagem. — “E eu devo mesmo trazê-lo de volta…”
Contudo, ao levar sua mão até um dos ombros de Viktor, as coisas mudaram: ele sentiu um pulsar por todo seu corpo, quase como de um coração.
A vibração se misturou ao do seu órgão vital, reagindo em sincronia e lhe trazendo sensações incríveis.
— “O que foi isso?!” — seus olhos arregalaram, engoliu seco e recuou quatro passos para trás. — “Isso veio dele?! Mas como?”
Não foi só a vibração.
— “Ele está com febre… O corpo dele está quente… — o toque, mesmo sobre a camisa, mostrou isso ao albino. — “O que está acontecendo com ele?”
Essa reação, inesperada, na verdade tinha um nome dentro do mundo das artes marciais.
Era chamada de “Lutar ou Fugir”1.
Nesse estado, o lutador entra em frenesi interno, em um nível de ansiedade inimaginável.
Mas não era um status negativo.
Pelo contrário: era a reação que o lutador expandia seus sentidos, entrando na prontidão plena de luta.
Viktor lutava contra a realidade que estava.
Era uma batalha intensa que, sozinho, travava.
Sua frequência cardíaca estava alta, por isso o aumento da temperatura corporal.
As pupilas, dilatadas, eram para aumentar a entrada de luz; seu foco era total.
Respiração profunda, para aumentar a oxigenação.
E o suor, sempre presente em seu rosto, era reflexo de seu esforço.
Noah observou cada um desses detalhes, entrando em conflito consigo mesmo.
— “O que ele está fazendo… é incrível!” — seus olhos verdes esmeralda brilhavam. — “Existe algo diante de mim que tem uma luz. Mesmo apagada, ela emana calor e vivacidade…”
Existia coisas que o albino desconhecia.
E aquela reação atiçou seu interior.
Era um chamado… para a luta.
O corpo inteiro de Noah tremeu, forçando se colocar em base de luta, mesmo com ele relutando no gesto.
A seu desgosto, aquela mesma voz sinistra que era ouvida em seu interior, proferiu:
— “E le tatau ona susulu atu lenei malamalama i lenei lalolagi… ma e tatau ona aveesea.”
A pronúncia sussurrante e silvada, trouxe um tom maldito e que até exalava cheiro, que só chegou as narinas de noah, que decodificou perfeitamente:
— Esta luz não deveria brilhar neste mundo… e deve ser eliminada.
A mesma força que o albino fez ressurgir seus fantasmas do passado o moveu para ter a vontade necessária de cessar o seu estado de transe oculto.
— “Grr… devo voltar ao controle…” — ele condensou seu Chi, apagando seus olhos. — “Esse estrangeiro não é alguém que devo levantar meu punho! E ele tem um nome…”
Foi instantâneo.
Noah fez sumir a presença sombria que conseguia esconder de todos, mas nunca de si mesmo.
Seu controle voltou, motivado por Viktor.
O humano, usando unicamente de sua força física, foi capaz de influenciar o cerne de Noah.
Essa atitude impressionou o mestiço, com a reação inesperada lhe servindo como um aviso.
Uma delas era o que estava à sua frente.
— Noah, eu sei que não tenho Nirvana… — Viktor falava, com os olhos bem abertos. — Mas eu tenho meu karatê e todo o caminho que trilhei até ganhar minha faixa preta…
— Faixa preta?! O que isso significa?
— Eu sou… um mestre de karatê!
— O que?! Mestre?! — Noah, boquiaberto, estava transpirando.
— Quero que entenda que desafios sempre fizeram parte da minha vida… e um deles agora é esse Estudo do Nirvana.
— O que quer dizer? Você sabe muito bem que… — ele foi interrompido.
Viktor só levantou sua mão, cessando as palavras de Noah.
O gesto simples tinha um poder supremo.
As palavras de Viktor vieram.
— Igual a cultura de vocês, eu tenho a de meu mundo… A minha realidade é o que me sustenta como eu sou!
— Viktor… — Noah não recuou, mas se controlou. — “Devo ouvi-lo antes de tudo.”
— Minha base nas artes marciais é o que me importa no momento. Se eu me adequar no Feng Shui aqui em Avalice, então eu não devo olhar para trás… e sim para frente.
O humano tinha ciência do que estava falando.
Ele não negou o Nirvana, mas elevou toda sua base marcial já estabelecida em seu mundo.
Havia ali um confronto de culturas.
Cultura de poder e doutrina.
— Sei que virá lutas pela frente, de que todos vocês estão em um patamar diferente, mas não vou desistir.
— Você tem noção, então… — Noah tinha olhar baixo. — Lutaria entre a vida e a morte, Viktor? É como vêem os Naturais.
— Isso mesmo! — pôs seu punho à frente. — Isso não é nada diferente do que enfrento em meu mundo! Eu prometi a todos que iria lutar até o fim!
Os corações dos dois se uniram na batida, como um dueto harmônico entre instrumentos musicais.
A melodia fruto da junção sincronizada era bela e inspiradora, como um coral forte e esplêndido, terno e aconchegante.
Ambos sorriram um para o outro, em um sinal de respeito e parceria.
Se antes os laços entre eles eram sinuosos, uma reta se tornou a única distância na relação, que ganhava liga.
Viktor estendeu sua mão, gesto universal entre povos.
Noah estendeu a sua, apertando a mão do jovem com força.
O fim da aula… mas o começo promissor de uma linda amizade.
— Até o fim, Viktor?
— Até além do fim, Noah.
Votos renovados.
Compromisso assumido.
E uma lição aprendida.
O torneio TORMENTA era daqui algumas horas, mas batalhas já eram travadas e vencidas.
A promissora epopéia estava prestes a começar.
- Nota: é uma reação fisiológica que ocorre em resposta a um evento prejudicial, ataque ou ameaça à sobrevivência. Foi descrita pela primeira vez por Walter Bradford Cannon em 1915.[↩]
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