Capítulo 109 - Prelúdio do Torneio
Cidade de Shang Mu | Início da manhã
O relógio, até então um adversário poderoso, marcava sete horas.
O sol, aos poucos, mostrava seu brilho por trás das montanhas da região.
O cheiro fresco do orvalho contido nas árvores e plantas davam o toque matutino charmoso.
E, junto a isso, o recomeço de um longo dia.
Pessoas transitavam pelas ruas, já com muito fluxo do transporte público de Shang Mu.
Mayor Zao investiu pesado nesse quesito: vários monotrilhos, trens, e até metrô, cortavam a cidade, indo e trazendo mais gente.
Era uma cidade que não parava.
Contudo, as coisas estavam mais movimentadas na área mais antiga da cidade.
O cheiro de caos já era sentido… e ouvido, passado, absorvido — perfume de problema patenteado.
E era lá que a maioria dos eventos principais iriam ocorrer — e regido por gritos, muita irritação e vasos em cacos.
Zona Milenial de Shang Mu
Zona Leste | Manhã

— Oitenta e cinco vasos quebrados! Oitenta e cinco vasos quebrados! Como vamos resolver isso?
Essas eram as palavras desesperadas de um velho gnu monge, proprietário do armazém, que usava uma vestimenta… peculiar (e nem um pouco familiar).
Bem, existiam assuntos pendentes no Armazém de Vasos Gin Tama, cenário noturno da última noite de colapso geral do time de Lilac.
O resto do grupo estava de cabeça baixa, com vergonha pelo o que ocorreu.
Viktor, observando o interior do lugar, ficou impressionado.
— Então foi aqui que vocês lutaram contra os Vaidels? Que coisa…
— É. E não foi nada legal o que aconteceu aqui… — falou Santino, de braços cruzados. — Engraçado que quebramos o piso também e o dono não se importou com isso.
— Realmente, foi um incômodo — desta vez era Noah, sempre centrado. — É um alívio também, se me permitem dizer.
A conversa dentro do grupo continuou, sobre este mesmo assunto.
Carol estava um pouco mais ao fundo, observando os vasos que estavam inteiros, acompanhada de Milla.
Mas ela não estava gostando do jeito que o moço reclamava.
— “Caraca, que cara chato, mano… Já é a milésima vez que ele diz que os vasos quebraram. Já deu…”
Os prejuízos eram muitos, e por isso mesmo a dragão púrpura foi até lá para tentar sanar o imenso problema.
— Senhor, acalme-se! — disse ela, tentando ajudar.
— Me acalmar? Me acalmar? São oitenta e cinco vasos quebrados! Você tem ideia de quantas gemas isso custa? São oitenta e cinco vasos quebrados, mocinha!
— Sim, o senhor já me disse e repetiu… Mas, por favor, se acalme!
Sim, ele repetiu.

E fez isso de novo:
— São oitenta e cinco vasos quebrados! Oitenta e cinco vasos queb…
Ele foi interrompido, mas com um bom motivo (ou não): Carol, à revelia, pegou um vaso e o deixou cair no chão, de propósito.
O silêncio do grupo todo, e do gnu monge, veio.
Junto a isso, uma rodela do caco rolou, teimando em se estender pelo chão.
Continuando a trilha, correu até a Lilac, em seu calçado estilizado, ricocheteando de volta, indo até o centro, onde ficou rodeando — até nisso houve insistência em não parar.
Impaciente, a gata pisou com força, torceu o pé sobre o “destroço rebelde”.
Restou a Carol falar, bem debochada:
— Vai, fala agora: oitenta e seis vasos quebrados! Repete três vezes, tá?
Lilac foi até ela com tanta fúria que parecia que iria golpeá-la.
— Carol, sua maluca! Por que fez isso?!
— Ah, esse sinhozinho aí é chato bagarai, fala tu! “Ai, oitenta e mil vasos quebrados, acabou o mundo, vou morrer, mimimi…” Pô, drama demais!
— Carol, cala a boca! — gritou, furiosa.
O papo entre as duas foi interrompido pelo senhor gnu.
Ele estava ainda mais irritado.
— E então? Como vai ser? Foram oitenta e cinco vas… — ele foi pausado.
— Oitenta e seis vasos, ô! Oitenta e seis!
— Isso! Oitenta e seis vasos quebrados!
Pela repetição, mais uma, até Lilac se incomodou com isso, coçando a cabeça sem parar.
Pior ainda foi Carol: ela, também irritada, já iria quebrar outro vaso, dessa vez impedida por Milla.
— Carol, não faça isso!
— Pô, esse sinhozinho aí é mó chatão! Sai da frente!
— Mas são os vasos dele! Não perca a paciência!
— A paciência é minha e eu faço com ela o que eu quiser, e o que eu quero é fazer o chatolino aí parar de ficar falando “oitenta e todos vasos quebrados”!
O trâmite, caótico e cômico, não parecia ter fim.
A repetição da fala foi outra vez ouvida.
— Foram oitenta e… — por sorte, ele foi interrompido.
Noah, tomando a frente, falou ao gnu monge.
Foi um discurso apaziguador.
— Senhor, peço que espere um pouco. Sei que, em breve, teremos boas notícias.
— Boas notícias?! Boas notícias?! BOAS NOTÍCIAS?
— Não foi um estrago tão considerável e sei que… — sua fala foi pausada.
— Onde ter tanto vaso quebrado é uma boa notícia, meu jovem?
Noah escondeu seu rosto por trás da própria mão, sinalizando vergonha.
— “O que vasos quebrados podem trazer de tão mal assim? Nossa…”
— Meu jovem, foram oiten…
Antes que pudesse repetir (mais uma vez) sua incessante fala, Lilac o cortou, após terminar um telefonema.
— Senhor, o Reino de Shang Tu pagará todo o prejuízo causado.
— Minha jovem, foram oit… — o moço estava tão imerso que o cérebro travou por dois segundos. — Hã?! O… que você disse?!
— Olha, eu falei agora com o General Gong, que defende o reino de Shang Tu. Irão pagar tudo, não se preocupe.
— Ah… eles vão pagar tudo?
— Sim.
— Tudo, tudo mesmo?
— Exato.
— Todos os oitenta e seis vasos quebrados?
— Isso mesmo!
— Cada um deles?
Repetição.
Mais repetições.
E isso consumiu Carol de um jeito nunca antes visto: ela já estava com sua aura verde aflorada, pronta para fazer uso de suas garras afiadas.
Antes de fazer qualquer besteira, Viktor interveio.
— Carol, para com isso! — ele a segurou antes do pior.
— Me solta, piá! — tentava se soltar. — Vô quebrar essa bagaça toda de porcelana barata desse cabeçudo de meia tigela!
— Isso não é certo, Carol! É o negócio dele!
— E é certo o chatolino aí ficar repetindo, repetindo, repetindo a mesma coisa o tempo todo? Cara, essa piada já era pra ter um fini na segunda vez!
— Isso que você disse não faz sentido!
— E foi metade de um capítulo só nessa picuinha aí!
Viktor lutava para contê-la, enquanto Carol balançava os braços feito uma gata selvagem tentando escapar de um banho.
Enquanto o caos causado pela gata selvagem tagarela continuava, Lilac tratava o acerto de contas.
— Vou precisar do número da sua conta, senhor.
— Tudo bem, mocinha. Tudo bem… — falou, anotando em um papel.
— Ah, e qual seu nome mesmo?
— É Gin Tokisa Taka, o próprio! — ele esboçou um sorriso bem largo.
Um breve silêncio de dois segundos veio, e foi embora do mesmo jeito.
No meio da bagunça, os olhos de Carol brilharam como se fossem duas estrelas, causando estranheza.
— Ei, o que houve, Carol? — perguntou Viktor.
— Pô, piá… Só digo uma coisa: quem viu viu, quem não viu já foi. Mó referência meta ever!
— O que?! — sua confusão era enorme.
E no meio dessa situação, enquanto tomava os dados para pagamento, Lilac chegou a uma conclusão:
— “E foi mais fácil lutar contra os Vaidels que resolver esse problema…?” — seus pensamentos disseram por si só.
Poucos minutos depois, o grupo se reuniu na frente do armazém.
Resolvido o problema da retratação, Lilac levava seu time em direção a Arena Shang Mu, que podia ser vista no horizonte.
Entretanto, Carol ficou um tempo parada na frente de uma placa, com os olhos brilhando ainda mais.
Milla, vendo o grupo já distante, chamou por sua amiga.
— Carol, vamos! Já está todo junto indo para a arena!
A felina verde mostrou um lindo sorriso, como se alguém estivesse satisfeito — era ela, claro.
Na placa estava escrito:
“Se você tem tempo para fantasiar sobre um fim bonito, então viva de forma bonita até o fim.”
— Frase formosa! Frase bela! Frase bem feita e de ótimo gosto! Esse sinhozinho pode ser chatolino, mas o véio tem classe, nyah!
Sem ter um motivo aparente, a gata saiu do lugar mantendo o mesmo sorriso, acelerando os passos.
— Galera que tá lendo: diminua o brilho da tela e liguem um abajur aí, tá? Visão protegida, leitor feliz. Dica da kid Carol, na maciota!
Ela se juntou ao grupo segundos depois, rumando para a:
Arena Shang Mu
Pátio principal | Manhã
Cenário da noite do dia anterior, a fachada moderna e imponente da arena brilhava assim com o sol, com seus raios realçando o vitral magnífico e belo.

Ao pé da escadaria em mármore tipo oriental do local milenar, a movimentação era intensa de espectadores, que adentravam as dependências do colossal espaço de luta.
Muitos burburinhos eram ouvidos, já que as conversas no meio do mundo das lutas de Avalice eram um convite a provocações entre dojos e templos rivais, assim como os próprios lutadores — a plateia era toda formada por gente dessa comunidade.
Entrando no saguão, lugar onde os últimos eventos da noite anterior ocorreram — Viktor sabe muito bem do que se tratava — lá dentro estava lotado.
As portas que davam acesso ao interior da arena ainda não foram abertas, fazendo com que fosse formada uma fila imensa.
Para acalmar os visitantes, o frescor de menta acompanhado pelo doce da essência da maçã relaxavam o ímpeto de quem lá estava por meio de incensos aromáticos acesos em locais estratégicos.
Além disso, a climatização da arena contribuiu com esse zelo ao bem estar: o ar-condicionado, adição após a reforma da fachada, deixava o ambiente confortável o suficiente para que todos se sentissem bem.
Não só isso, a iluminação baixa, via luzes de mercúrio, abrandava o cansaço, deixando tudo mais sereno e formal.
Havia algazarra e barulho, mas tudo na maior paz e harmonia.
As provocações entre templos e dojos continuavam, mas com todos com o mínimo de respeito… e conforto.
Mayor Zao deu o orçamento — várias cifras pomposas.
Mas quem deu forma e amplitude sistemática e salubridade foi, sem sombra de dúvidas, Huli.
O responsável pela arena, o guardião que mantinha seu mantra anônimo, abriu os portões, ventilando assim que o fez para além da área o aviso de ordem:
— Ouçam: a entrada do público só será permitida após todos os lutadores estiverem devidamente trajados e assentados em seus lugares. Até lá, peço paciência. Em breve entrarão, mas não agora.
O pedido, com um tom de autoridade plena na voz do raposo ruivo, foi feito com respeito e sentimento de parceria.
Huli, mesmo na dureza, exalava comprometimento institucional, mas mostrava nas palavras, explicitadas na voz, um grau de proximidade com os entusiastas por lutas.
Assim que fez valer sua vontade, voltou a fechar os portões, deixando os afoitos com sua ânsia de batalhas épicas ainda mais animados, sabendo que havia sim um senso de satisfação para com eles.
O raposo retornava pelo corredor milenar da Arena Shang Mu.
Nas paredes, pintadas por tinta vermelha natural (eram combinações de cura de flores e tingimentos com cascas de frutas), haviam quartos com certificados modernos e, o mais impressionante, estandartes de mais de mil anos de história de artes marciais na cidade.
Huli caminhava com muito orgulho, com um dos olhos sempre cobertos por seu cabelo ruivo, adestrando em uma sala em seguida.
Lá dentro, mais quadros e um conjunto de dois biombos, que dividiam os ambientes lá dentro.
Móveis antigos, como escrivaninha e armários, eram usados para guardar utensílios domésticos e, para impacto maior, armas brancas — espadas, lanças, bastões e luvas, como peças de espólio.
Ultrapassando as divisórias orientais, o ambiente mudou totalmente: um imenso vitral magnífico dava uma visão panorâmica de toda a arena.
Os raios do sol eram a única fonte de luz do espaço reservado, bastante limpo inclusive — sequer a luz levantava poeira ou outro resíduo microscópico.
Ainda que os raios estivessem fortes, o calor não ultrapassava o vidro. A área interna sempre estava com uma temperatura controlada, variando entre 22 à 24 °C.
Quatro poltronas, altas e feitas de madeira nobre e acolchoadas com tecido aveludado, davam o toque de requinte milenar e fino do local — era um tipo de suíte VIP.
Huli, sempre elegante, foi até lá, se sentando lentamente. Até neste gesto o raposo tinha disciplina.
Assim que se sentou, falou:
— Não esperava que estivesse aqui.
A poltrona tinha encosto tão alto que escondia quem estava sentado: era um urso pardo, usando óculos escuros.
Junto a esse visual inicial, calçava sapatos gastos, calça preta amarrotada, camisa regata cinza e um blazer azul só sobre os ombros; tinha cabelos curtos, estilo militar, e seu semblante fechado era de alguém calejado… por lutas.
Era ninguém menos que:
— Bryan O’Brian, você chegou bem cedo — falou Huli, olhando para a arena.
Um silêncio de sete segundos antecedeu as palavras do urso.
— É um belo horizonte, não acha?
Ele se referia a arena.
Com arquibancadas rústicas, exatamente como a mil anos atrás, a construção manteve sua história intacta: no centro, sem muitos requintes mas coberto por muito suor, sangue e doutrinas, a área de combate era feita por granito sólido e bastante trabalhado.
Ao longo de toda a arena, estandartes enormes mostravam palavras de doutrinas que ajudaram a construir a imensa herança deixada.
Contudo, quatro deles tinham maior destaque; e em todos, um só nome: Família Omna.
Huli, contido, falou:
— Beleza é algo subjetivo, caro urso. Eu diria que minha arena está além da aparência: é bela, mas não por estética. A história se faz, a mitiga se estatiza, em uma sinergia igual.
Bryan O’Brian possuía um semblante sempre pesado, mal encarado. Os óculos escuros escondiam seus olhos com íris amarelas, tanto quanto âmbar.
Era exótico, ao mesmo tempo que intimidador, por isso os mantinha anônimos.
Sem mudar um milímetro de seus traços, mostrou suas palavras.
— Gosto do jeito teatral e metódico que fala, meu amigo. Isso aumenta muito o peso do evento estratosférico que estamos prestes a assistir.
— Satisfatório saber que o agrado.
— Sim, e muito… — disse, se levantando.
Bryan caminhou para próximo do vidro, postando um olhar distante.
Huli cruzou as pernas, mostrando relaxamento, enquanto falava:
— Está ansioso, não?
— Sem dúvidas, meu amigo — não se virou, parado.
— A segurança imposta pelo Reino de Shang Mu às dependências e ao entorno de toda Zona Milenial… Você a viu?
— Claro que sim, hehe…
Outra vez uma pausa na conversa.
A quietude, só quebrada pelo ruído baixo do ar-condicionado, imperou por dez segundos.
No fim, O’Brian expôs sua opinião.
— Mayor Zao me deu total autonomia para levar esse torneio. Orçamento infinito, poder institucional quase total, administração plena… — levantou um dos punhos. — Tudo relacionado a luta e uma boa briga está na minha mão.
— Os mil anos de artes marciais na Arena Shang Mu deverá ser mantida intacta. Esse foi o trato que tivemos… — Huli pôs as mãos à frente, cotovelo apoiado com os dois trançados frente a boca.
— Eu também quero isso, talvez mais que você, meu amigo… — manteve o punho levantado, somado a um sorriso bruto no rosto. — Artes marciais, lutas, brigas, intrigas, inveja, arrogância, soberba e tudo mais… EU QUERO ISSO EM CADA CENTÍMETRO DESSA ARENA!
O grito entusiasmado do urso pardo foi alto quase como um rugido, mas que não trouxe reações no raposo.
Mostrando estar acostumado por comportamentos tempestuosos, Huli também tinha o que dizer:
— Basta haver respeito às artes marciais. Não importa o caminho. Cada lutador tem o seu… e seus valores — levantou, indo até o lado do urso, olhando a arena. — O Karma de cada um será exposto. Deixo o público escolher seu preferido, do que ele for.
— É isso que faz meu sangue ferver por dentro das veias, meu amigo! — desta vez levantou os dois juntos, como se estivesse concentrando Nirvana. — Ver uma variedade de nobres lutadores, querendo ser o melhor, lutar com tudo de si e levar seu time ao limite!
— Hm… — puxou ar Huli, com o mesmo rosto centrado. — Há um prêmio em jogo. Quem o levar, terá em mãos um item único e precioso. Acha mesmo uma boa ideia Mayor Zao tê-lo colocado como troféu?
O urso voltou na sala, indo até a copa, logo atrás da área das poltronas — tomou água, dois copos.
Ele então se posicionou logo atrás de onde Huli estava sentado.
Pôs seu blazer, se adequando às formalidades. A elegância realçou sua postura.
Bryan O’Brian, com um sorriso ainda mais largo e compenetrado, aflorou seu Nirvana — branco, que o entorpeceu.
— A Maioria dos que estiverem aqui está pouco se lixando para essa jóia! Haha, os que vieram querem lutar até que seus ossos quebrem! O calor da luta, a adrenalina explodindo na mente e o coração gritando por mais… ISSO É TORMENTA!

A mensagem foi dada.
O torneio era mais que um simples evento com premiação.
Era o Tormenta.
E o objetivo era a luta.
O urso pardo, assíduo por lutas, mostrou o clima da competição.
Mas Huli guardava algo um pouco mais além.
— “As artes marciais, sua história de mais de mil anos, vai ter mais uma página escrita daqui algumas horas…” — pensava, observando a energia de Bryan.
Enquanto emanava o Nirvana, Bryan O’Brian gargalhava, extasiado pelo iminente evento de luta.
Ele não era o único:
— “Esse urso não é nada ortodoxo, mas temos algo em comum: superação e dor caminham de mãos dadas… e cada um que lutar terá de lidar com isso.”
Restam algumas horas.
O torneio TORMENTA estava prestes a começar.

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