Capítulo 116 - Oratório da Escuridão
“Aqueles que se julgam virtuosos, mas agem com desprezo pelos outros, não compreendem a virtude.
A sabedoria não se manifesta na imposição, mas na harmonia.
Quando a doutrina serve para humilhar, ela deixa de ser caminho e passa a ser prisão.”
— Confúcio (551–479 a.C.)
Estudo: Analectos – Ensinamentos sobre ren e li.
O arco de discriminação na área destinada à Família Geiza estava no ponto máximo.
Após a demonstração clara do seu extremismo doutrinário, Pawa tinha em mãos a real razão que acreditava ser a maior das verdades: a intenção de estar certo.
Kaura o observava, agindo como elo entre a emoção e a razão, sob uma postura complacente diante do mar revolto repleto de desafios.
O lobo, com a prepotência estampada, não parecia dar lampejos de voltar atrás.
Pelo contrário: ele seguiria em frente e com ainda mais força.
— A Família Geiza não permitirá que forças maléficas e amaldiçoadas manchem a Arena Shang Mu e muito menos aos mil anos de história de artes marciais de Avalice!
Seu brado, carregado de pura discussão ideológica, fez reagir os demais membros dos Geiza: eles passaram a bater os pés no chão, como uma marcha, sinalizando com o gesto que estavam de acordo.
O cenário estava além de tenso: com o horizonte escuro e maldito.
Aquilo ganhava força, os burburinhos dos lutadores do torneio voltaram nos corredores rubros da arena.
“Uma alquimista?! Que tipo de classe é essa?!”
“Por que aceitaram alguém tão diferente assim? Querem o quê com isso?”
“Certas coisas deveriam ficar explícitas. Esse torneio é sério mesmo?”
Esses e mais infindáveis discursos foram levantados, causando um ar de insegurança até mesmo
Suspeitas, ceticismo, desconfiança, apreensão…na organização do torneio.
O somatório de emoções tomou o recinto.
Por mais que a ironia do destino seja um manifesto redundante, o ciclo do caos sempre agiu com imprevisibilidade.
Trabalhando nesse contexto, uma voz conhecida pelo time de Lilac foi ouvida.
— Eu já conheci alguém que pensava exatamente assim…
Todos viraram.
Santino e Milla sabiam quem era.
Pawa e Kaura não — eles ficaram surpresos.
Era Noah.
Um breve silêncio se tornou, desde o lobo e sua trupe de fiéis seguidores.
O albino, caminhando em direção a Pawa, não lhe tirava o olhar, mas com um significado maior em seus olhos verde-esmeralda.
— Essa conversa, de separar o concreto do abstrato, nunca funcionaria nas artes marciais… NUNCA!
Os olhos de Pawa brilharam ao ver o mestiço lhe tomar a palavra, entrando em seu espaço sem parcimônia.
Estruturado em seus dogmas, ele falou:
— Quem é você… e como ousa invadir a área da Família Geiza, garoto insolente?
Assim que o ouviu, Noah se preparou para falar, mas permaneceu em silêncio.
Ele voltou sua fronte a Santino, que abraçava Milla.
O jovem desconfiou:
— Santino… Por que estão dessa forma?
O canino tentou diminuir dos danos:
— Nada que já não tenhamos resolvido, garoto.
Noah raciocinou, desta vez fitando Kaura, “que retribuiu o olhar.
Ela também pensou:
— “Esse garoto… Não consigo decifrar sua natureza” — ela ainda não analisou o suficiente para saber do híbrido. — “Existe algo peculiar nele… mas também há revolta no seu olhar. Quem será ele?”
Nesse meio tempo, o albino chegou a um fechamento de raciocínio: o pior.
— “Esse lobo fez algo com eles… Algo ruim!” — olhos para o lobo, inquieto.
O silêncio no ambiente voltou.
Cinco segundos de pausa e leitura gestual.
O albino o fitava, quase o devorando.
O lupino fazia o mesmo, mas o interesse era de destruição.
Kaura fixou em Noah, mesmo que ainda estivesse distante — cinco metros, com Milla e Santino entre os dois —, avaliando o rapaz.
— “Rosto pálido, traços lisos e simétricos, cores em desordem…” — ela chegou à sua conclusão, olhando fechado. — “Um mestiço… Raridade em toda Avalice. Mas… quem é ele e… o que quer aqui?”
A reptiliana, acompanhando a estrada do jovem, se atentou ao que iria dizer.
Mas, junto a isso, seus olhos, incessantes, observavam o entorno: ela sentiu algo, e o procurava… mas não havia o que ver.
— “Coisas obscuras pairam no ar…”
As palavras de Noah vieram.
— O que você fez a eles? Diga, seu palerma!
— Você está em território da Família Geiza, albino invasor!
Para dar mais impressões de seu protesto, Noah pisou com força no chão e ainda torceu o pé.
O gesto, simples, era um chamado para a guerra: pura provocação, código entre artistas marciais em Avalice, de que lugar ou fato eram descartáveis.
Pawa quase partiu para cima, mas escolheu pôr mais tempero na vindoura conversa tempestuosa.
— Embora tenha entendido seu chamado, vou responder sua pergunta: a criança que vocês chamam de Milla é uma alquímica, um ser que traz consigo a marca da desgraça.
— O q-que…? — Noah gaguejou, temendo. — M-milla é uma…?
— Os mil anos de história das artes marciais em Avalice estão sob ameaça velada de tal existência.
O jovem olhou para Milla, atônito, tentando raciocinar sobre a informação.
Pawa continuou a destilar seu embasamento:
— E eu sei que você, albino insurgente, tem o mesmo cerne, a mesma gama de lavar esse mundo de tamanha aberração! Não há lugar para crimes como este no mundo das artes marciais!
O lupino, embora furioso com a presença e a provocação de Noah, entendeu que ele sabia dos códigos e diretrizes do mundo das lutas em Shang Mu pelo gesto que fez há pouco.
Porém o efeito foi muito mais devastador.
Isso fez com que a mente do albino viajasse para longe, em seu subconsciente lotado de estigmas do passado.
Lá dentro, distante e profundo, uma voz maldita ecoou, lhe trazendo à tona várias vivências terríveis.
— E toe foi mai mea uma i se aso… ma o le a toe foi mai mea uma i le faavavau.
A mente brilhante de Noah codificou a mensagem.
“Tudo voltará um dia… e tudo retornará à eternidade.”
Sua alma se dobrou. A ânsia em ouvir o restante ditou o que não queria saber.
— Ave’ese le lumana’i… tamaiti mativa o lo’o i ai le pupula o le pogisa.
O significado veio como o vento:
“Destrua o futuro… pobre criança que tem o brilho da escuridão.”
Um pulsar frio ressoou, grave e íntimo, em Noah.
O externo era controlado, o interno possuía forças escusas.
Seus olhos tomaram uma coloração verde-escura, mas que não causou abalo em todos.
Um colapso…?

A fúria de Santino parecia ter mudado de dono.
— Tirar o direito de ser quem você é, caminhar de acordo como querem, se ajoelhar a alguém que se diz melhor que todos, respeitar quem não te respeita como pessoa…
Enfim, ele delineou cada uma dos pontos que o fez relembrar do passado, os que passou em Big Sea Island.
As imagens traumáticas, experiências na Vila Aldeia Melanmarii, vieram com força.
E, com isso, Noah perguntou:
— Onde isso é bom, seu miserável?
Pawa não esboçou mais reações além de palavras:
— Cale-se! — gritou, olhar ativo ao máximo. — Eu lhe disse o que houve… Então me diga quem é você e o que quer!
Com a sua aura escura explodindo, Noah explanou:
— Grr… Estou me segurando para não começar a lutar antes da hora! Onde pensar assim é bom? Como pode dizer isso de alguém como a Milla?!
O Nirvana de Noah se expandiu pelo recinto como uma onda, que inundou o local com trevas intangíveis e invisíveis… mas não para Kaura.
— “O que é isso?!” — a reptiliana arregalou seus olhos, o leque aberto cobriu sua boca.
Sua respiração se tornou profunda, de quem acabara de sentir um colapso.
Ela o sentiu… na alma.
— “Trevas dominaram esse lugar e se exauriram em segundos!”
Pawa, assim como os demais, em nada reagiram ao pulsar.
O lobo, líder da Família Geiza, fez valer sua palavra na frente do albino.
— Manter a ordem… é essencial — fitava Noah, voz grossa. — A fenda que se abre quando se desvia do caminho não se fechará, seja qual for o erro de percurso.
Ele começou a caminhar em direção ao jovem, mas acompanhado por mais de sua ideologia.
— O remédio para evitar passos rebeldes: seguir na trilha correta, como está escrito nos mais de mil anos de história das artes marciais em Avalice.
No fim, decretou o real propósito:
— A Família Geiza é pertencente ao verdadeiro caminho! — levantou seu punho, apontou para o jovem. — E você, insurgente, ou está com a luz ou… nas trevas perecerá com toda a vergonha! Essa criança é impura, e você?
Um ódio avassalador surgiu nos traços esguios do rosto albino de Noah.
Antes sempre neutro, agora sua testa franziu com o sentimento sombrio que falava por si.
— D-desgraçado… — as mãos abriram, os braços se afastaram do corpo e se levantaram para os lados. — Desgraçados como você não deveriam existir nesse mundo!
A aura de Noah aumentou.
Uma nova onda surgiu, sentido por Kaura.
— “Outra vez! De onde está vindo essa sensação detestável?!”
Ela olhou para Pawa… e Noah.
Mesmo que o foco da intriga fossem os dois, a origem era desconhecida — porém sabia do porquê.
— “Essa discussão precisa ter um fim… e agora!”
Ela não só brandiu seu leque, mas também retirou um segundo de sua outra manga, executando um movimento de cima para baixo.
Além disso, Santino reagiu, arregalando seus olhos.
— “O que…?” — pensamento enigmático.
Com desenvoltura, Kaura golpeou o ar, arrastando tanto Noah quanto Pawa em posições opostas onde estavam, culminando no afastamento das partes conflituosas, extinguindo suas auras.
O Nirvana dos dois foi acalmado, mas não seus espíritos.
— Técnica amortizadora: Vento Pátreo!
Os dois sentiram uma leve pancada no peito — quase como um empurrão brusco — mas sem que causasse incômodo ou se mesmo os ferissem.
Noah olhou para a mulher, surpreso.
Pawa, pelo contrário, mostrou irritação.
— Por que insiste em se intrometer, mulher enxerida? — bradou, mas já sem sua aura.
— Esse entrave no meio da Arena Shang Mu é inútil. Você não cederá, tampouco este jovem exótico… Estou encerrando este conflito para controlar os danos.
Kaura jogou para longe parte da tensão, não a eliminou.
Contudo, um pouco de lógica e ordem se impôs, fazendo com que Noah fizesse sumir de seu rosto o gesto odioso que manifestou mais cedo — sua postura mostrou-se neutra mais uma vez.
— Certas coisas devem ser respondidas imediatamente, madame… — falou o albino.
A escamosa rosada o olhou no canto, se reservando — o silêncio foi a melhor resposta.
Santino se levantou, acompanhado por Milla, que já não guardava traços do baque que sofreu.
O canino, ao olhar para Kaura, entendeu uma mensagem oculta aos demais.
— Garoto… — se dirigiu a Noah. — Vamos embora agora!
— Me nego! — falou, sem tirar o foco de Pawa. — Os corredores me contaram o que esse miserável fez… e eu odeio gente assim!
Santino, de forma gentil, tocou um dos ombros do jovem, falando em seu ouvido:
— Existem momentos de luta e também os de recuar estrategicamente. Se você o vê com espírito de guerra, escolha a segunda opção.
— E se o inimigo está à sua frente e você tem condições de eliminá-lo, que o faça imediatamente!
Eram duas sentenças válidas, mas Santino tinha a melhor.
Noah não parecia recuar, se mantendo na base conforme os segundos se passavam.
A encarada tinha um peso maior para ele, como se olhasse para alguém mais íntimo, mas da pior espécie.
— Noah, vamos! — insistiu Santino. — Essa mulher nos deu uma chance de sairmos antes que as coisas piorem!
— Me recuso a deixar esse desgraçado inteiro depois de tudo que aconteceu aqui!
— Ele vai ter o que merece, mas agora temos que sair daqui!
— Não!
Quando tudo parecia descambar para mais um embate, só que físico, algo inesperado aconteceu: Milla abraçou Noah.
A pequena, com os olhos brilhando, foi econômica nas palavras:
— Tá bom. Já chega… Temos que ir!
O albino sentiu seu corpo vibrar, como se estivesse entrando em sintonia com algo cósmico.
Seu Nirvana havia sido acalmado como se fosse mágica.
Um calor terno e aconchegante tomou sua alma, o fazendo ceder ao pedido gentil.
Sem palavras e com renovação no rosto, ele recuou, deixando Pawa para trás.
O time caminhou para longe da área da Família Geiza, indo em direção ao outro extremo.
Entretanto, por lá ficaram Kaura e Pawa, que estava transtornado.
— O que tem na cabeça?! Aqueles insurgentes fugiram! Você não tem autoridade sobre o solo da minha família, mulher ridícula!
— Somente me assegurando… para que o verdadeiro culpado seja devidamente punido.
— Punido?! Mas o que… — ele foi interrompido.
A atitude de Kaura tinha um fundamento: ema previu a aproximação de alguém que poria ordem só por estar ali.
Ela escolheu bem… e sua espera foi presenteada: Huli apareceu logo à frente Pawa.
Sem uma explicação lógica, o lobo ruivo surgiu ali, sem mais nem menos.
— Pawa Geiza Omna, mais uma vez causando tumultos em minha arena?
Explicações teriam que ser dadas.
E essa era a mensagem que Kaura passou a Santino, como ele mesma deixou claro em seus pensamentos:
— “Aquele canino chamado Santino… tem habilidades especiais louváveis. Conseguiu ouvir a Voz Ecoada sem problemas…”
Ela, caminhando para longe da zona de conflito, continuou a maquinar.
— “E aqueles outros dois… Milla e Noah. A pequena tem um poder abençoado… e o albino parece que guarda segredos.”
Recolhendo seus dois leques, se misturou na multidão, mas não sem antes divagar internamente:
— “Eu senti uma força maligna abissal inundar o ambiente com seu suco venenoso… e estou quase certa de que não será a última vez.”
O torneio TORMENTA não guardava só grandes lutas.
Mistérios levantados pelos participantes trouxeram componentes complementares.
Os mais de mil anos de história das artes marciais em Avalice tinham mais folhas a serem escritas.
Mas ainda havia ecos pelos corredores da Arena Shang Mu.
E eles vieram da direção onde Lilac, Carol e Viktor estavam.
O maremoto pode ter passado… mas ainda havia uma tempestade.

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