Capítulo 117 - Conduta em cheque: Os Quatro Parâmetros
As duas ondas violentas que atingiram a moral dos participantes do torneio trouxeram um ar de insegurança e mistério por toda parte.
A Arena Shang Mu era um lar de sentimentos espirituais.
Dito isso, enquanto tudo ocorria nas dependências da construção milenar, Elyra Cealestine, serva e mestra de Theo Monsenhor Sesto, reagiu às manifestações sombrias que se propagaram pelo ambiente controlado onde estava.
Nem mesmo o salão luxuoso onde o estilista profissional buscou acomodações ficou livre de tal energia sinistra, mas que só foi sentida por ela.
Sua respiração exigiu mais ar, abrindo a boca e a puxando, como um movimento de saciar sua fome por respostas imediatas às dúvidas que surgiram em sua mente.
Seu rosto ilustrava o baque: testa franzida, com sobrancelhas se unindo após a pressão espiritual.

O leonino, debruçado em uma poltrona fina de puro luxo oriental, a viu reagir, o que o fez falar:
— Uh… Elyra, o que foi? — ele se sentou, elegante. — Conheço essa sua reação… e me sinto preocupado.
Mesmo na situação em que estava, a mangusto magenta manteve o ar sereno e controlado que sempre ostentou.
— Não só sentir, mas também visualizar o verdadeiro inimigo é primordial… — Seus olhos brancos viam além do material com facilidade.
— Hã? — sentado, com os cotovelos apoiados nas pernas. — Mais uma vez “vendo além”, mestra?
Ela se virou, com a face apontada para seu suposto pupilo.
Theo, arregalando seus olhos, deu a entender que compreendeu a mangusto só em observá-la e, também, interpretar seu gesto.
— Ombros firmes, decidida, virada dramática com contrapasso… — percepção de moda, traduzido para marcial. — Style, fashion… e visionária.
— Sim… Isso mesmo, monsenhor.
— Está tudo sob controle, digníssima mestra! — relaxado, voltou a fitá-la. — Eu amei esse seu look, sabia? Amarelo franja, vestido esvoaçante feminino é tudo… Tem ótimo gosto, mestra.
Ela sorriu serena, sabendo que o elogio era genuíno.
Mas tratou de voltar ao assunto.
— Sinto tensão e peso no ar neste local. Monsenhor, espero que saiba do que estou falando.
— Eu já sei: aquilo que me contou, que esse torneio tem mais coisas que todos imaginam. Eu mantenho minha opinião: isso é um show que quero fazer parte… Most wanted!
Sensitiva, Elyra e Theo se entendiam de forma tão natural que a relação entre os dois era quase como de irmãos; mestra e aluno não transpareciam tanto.
Nesse momento, seus dotes vieram: seu conhecimento nobre.
— Como eu te disse assim que chegamos, é de extrema importância que deixemos os objetivos pessoais de lado caso o que esteja em jogo seja a segurança das pessoas.
— Mestra, é só um torneio… Mas saiba que minha espada nunca será levantada para inocentes. Isso a agrada?
— Monsenhor, de ti só espero o melhor. O treinei bem, não só suas habilidades especiais. Porém quero que use da teoria que te ensinei com tanto afinco.
Sorrindo, Theo entendeu o que ela exigiu.
Se sentou, cruzando as pernas, mostrando segurança e desprendimento.
Era uma resposta física ao que ela pregava.
— O Estudo do Nirvana, não é? — alisou a gravava, ajeitando seu blazer. — Para não perder o norte, fortalecer a moral, ética, valores… Poderosa demais!
Elyra esboçou um alívio, com felicidade no canto de sua boca realçando a emoção.
Posando a frente do leonino, falou como se uma aula improvisada começasse — certas coisas ela queria deixar bem mais expostas e cristalinas.
— Estudo do Nirvana: os Quatro Parâmetros da Postura Marcial… O Cultivo do caminhar, forma tênue do desenvolvimento da moral do lutador.
Theo se calou, entendendo no tom da voz de sua mestra de que estava falando muito mais sério que antes.
Ele tratou de mostrar um semblante mais sério, respeitando o clima criado, de realçar dos ensinamentos que recebeu.
— “Elyra nunca insiste mais de uma vez quanto estou tentando lhe mostrar que entendo o que diz…” — pensava, com seriedade no rosto. — “Mas, desta vez, parece mais séria do que o normal.”
Dado o estado de alerta, Elyra disse:
— Monsenhor, como sua mestra, exijo que me ouça: deve revisitar os parâmetros, pois eles estão por todos os lados e lugares.
Durante todo o trâmite, ela falou de cada um deles, que se encontraram em paralelo aos eventos passados… e presentes.
O cenário, ao extremo da arena, desta vez era onde os acontecimentos mantiveram seu eixo e fluxo, como a mangusto previu.
Longe da área nobre disponibilizada por Huli, o raposo ruivo que regia no anonimato a arena com punho forte, o retorno ao espaço da Família Geiza continha parte do maremoto.
A segunda quebra da maré já havia ocorrido.
Mas uma tempestade se aproximava.
— Pawa Geiza Omna, mais uma vez causando tumultos em minha arena?
No mesmo ponto em que a conversa transcorreu, o raposo ruivo surgiu como se espera de um guardião.
Huli não fugiu seu olhar, mesmo que fosse com um dos seus olhos — sua posição sóbria não se extinguiu.
O lupino avermelhado, que até então tinha a banca de ser implacável, recuou no tom, respeitando Huli como se deve.
— Honorável Huli Hu Li (ideogramas 狐狸 胡李), sua presença no humilde recinto da Família Geiza é admirável… e também oportuna.
— Não me venha com bajulação barata! — fechou seu olho visível, o outro escondido pelo cabelo. — Eu ouvi, e senti, o parlo enfadonho que ecoou pelos corredores.
— Do que está falando, honorável cuidador?
Bastou o raposo apontar para a direção que queria mostrar: Kaura acudia o penoso de mais cedo, que estava sofrendo agressão tanto física como moral por Pawa.
O lobo fechou sua fronte logo a seguir — seu maxilar tensionado, assim como sua respiração mais funda — impactado, pondo fim nas formalidades.
— Assuntos que só interessam à minha família… e é só isso — falou, sem desviar o olhar.
— Se a Família Geiza tem assuntos internos, respeitarei tal solicitação… — abriu o olho, decidido. — Mas dentro da minha arena quem manda sou eu.
Curto, seco e direto ao ponto.
Huli não costumava usar muitas palavras para argumentar, e o fazia com acerto crítico.
Pawa não recuou, mas estava pressionado.
— Templos subordinados à Família Geiza devem pagar tributos, e alguns deveriam ser mais efetivos no que se propõem a fazer.
— Então faça isso sem agressões! — O raposo falou alto, o suficiente para ser ouvido. — Quero uma confissão sua de ter usado de força excessiva agora!
— Honorável Huli Hu Li, suas exigências são absurdas!
— Vindo de você, eu aceito este rótulo às minhas palavras… e insistirei nelas “absurdamente”!
Huli o colocou contra a parede e cercado pela autoridade legítima e impositiva do guardião anônimo.
Ainda que o rótulo de guardião não fosse dito pelos corredores vermelhos da arena, mesmo famílias tradicionais, como os Geiza, mantinham a sete chaves o real propósito do raposo ruivo.
Nesse limiar entre instituição versus autoridade, as palavras de Elyra Cealestine vieram como um coro, abraçando uma palestra.
Era como se a mangusto estivesse presente, mas eram só suas palavras explicativas:
— Li (禮), o Passo Honrado: é a forma correta de agir, as normas éticas que regulam comportamento. Sem elas, não há ordem, como há justos em Avalice.
Um contraponto era importante; ela ilustrou bem a cena anterior.
— O norte triunfante do Li é nobre, mas existirão pessoas que o utilizarão sob corrupção, fugindo da essência. A esses, se entrega a razão e a palavra. Eles cairão, cedo ou tarde.
O ecoar de seus ensinamentos voltaria, como síntese multifacetada dos eventos na arena.
No outro extremo da conversa entre Pawa e Huli, Kaura ajudava a vítima.
Era esperado o melhor tipo de comportamento empático possível.
— Qual seu nome, nobre senhor? — limpava o rosto do penoso com um lenço umedecido.
— Me chamo Serpryin Papakadah, doce madame — o rubor contagiou seu rosto. — É muito nobre da sua parte tamanho cuidado por alguém que não tem nada a oferecer.
Aquilo doeu na reptiliana, na alma e até na moral.
— Não diga isso! — Afagou seu rosto com carinho. — Não sei o que o levou a pensar assim, mas estamos no mesmo patamar como pessoas.
— O que?! — o rubor cresceu, o deixando encantado. — Mesmo depois de tudo, acha mesmo que mereço tanto respeito?
— Qualquer pessoa merece respeito, nobre senhor emplumado. Nem perguntarei o contrário, já que esse tipo de comportamento é inadequado.
Kaura fez questão de deixá-lo à vontade e em paz, o acolhendo.

Os rumores levantados antes de sua entrada para apaziguar os eventos intensos de agora cedo ainda infligiram danos à moral de Serpryin, um codorna com penas brancas.
A escamosa rosada reparou em suas vestimentas: pôs um roupão azul escuro sobre seu um hanfu verde musgo com faixas amarelas (roupa tradicional chinesa antiga), que lhe cobria o corpo, com longas mangas cobrindo os braços.
Ele também usava uma túnica azul escuro — retirada “acidentalmente” por Pawa — que Kaura teve o zelo de pegá-lo do chão e retirar o pouco de poeira existente, o colocando sob o alto da cabeça do monge abusado.
Tais roupas mostraram a Kaura um detalhe que não passaria despercebido, dado seus dotes eruditos: ela olhou para Serpryin de forma surpresa.
— O senhor… é um Monge Sênior! — o reverenciou, inclinando sua cabeça.
O penoso ficou ainda mais envergonhado, mas não do jeito devido — era vergonha negativa, de alguém desconfortável.
— Doce madame… não faça isso! — falou, desviando o olhar. — Eu não tenho moral para receber tal gesto.
— E posso saber o porquê? — Kaura se levantou, curiosa.
— O pouco de dignidade que me resta é ostentar as cores do meu clã. Nada mais, nada menos… e temo perder o que ainda temos para a Família Geiza.
A escamosa se virou, buscando a direção onde Pawa estava.
Enquanto o lobo argumentava com Huli, com um simples olhar Kaura fincou ali, para si mesma, uma promessa eterna.
— Venerável, o que fizeram a você é um ultraje — olhava para o codorna. — Não pouparei esforços para que isso seja reconsiderado.
— Reconsiderado?! — gritou sua voz, desesperançoso. — Essa palavra não é reconhecida por eles, doce madame.
O poder institucional da Família Geiza deixou Kaura pensativa.
— Venha comigo — falou, deu passos para fora do lugar.
— Hã?! Para onde, doce madame?
— Para um lugar digno de nós dois. Aqui só deixo meu repúdio, mas me agrada tê-lo como uma companhia até onde meu time está.
— O-obrigado… de verdade!
Embora conhecesse os ritos políticos e ideológicos entre os templos, inclusive aos tributos, mesmo o fato era deveras absurdo, dado o estado do monge.
— “Existem mazelas por todos os lados, mas dentro do Monastério Omna há mais delas do que eu imaginava… e isso é inaceitável.”
Rusgas não enfaixadas deixavam o imbróglio ainda mais imprevisível.
Mas não era só isso — pois a intromissão de Kaura tinha um preço.
— “Minha entrada pôde contornar os danos, mas usei uma parte considerável do meu Nirvana para proteger a integridade dos que aqui estavam…”
O desgaste já era uma realidade para um dos participantes do torneio.
— “Não garanto uma bela representação de meu templo no torneio… mas isso é o menos preocupante” — estava ao lado do monge, caminhando para fora da área.
Guardado os prejuízos por ter doado um pouco de si para manter a suposta ordem, a sacerdotisa deixou o espaço, levando a seu lado um novo amigo.
— “Um começo caótico para o time Kirameku Kitakaze… mas o saldo foi positivo.”
Ela deixou o lugar, agora com um novo aliado.
Kaura Shiran teve êxito, mas não de graça.
Nesse cenário apaziguador e reconfortante, a voz cintilante de Elyra Cealestine voltara com ainda mais força.
— Ren (仁), o Pulsar Benevolente: é o sentimento que nos torna capazes de empatia, cuidado e altruísmo. É o oposto da arrogância moral e da imposição doutrinária, que já vimos por toda Avalice.
Ela sintetizou ainda mais, para não deixar dúvidas.
— Quem age com crueldade em nome da “virtude” não compreende ren. É um senso interno de harmonia e bondade que não precisa ser provado ou exibido. A honra de um lutador começa por aqui.
Voltando ao salão luxuoso, Theo estava de pé, ela terminou seu monólogo do segundo parâmetro:
— É uma postura divina e pura, que engrandece o ser.
Quase como uma oradora, mas nada voltada à escuridão, Elyra mostrou seu conhecimento apurado e certeiro, mostrando estar integrada ao mundo das artes marciais de Avalice.
O leonino, ao receber a lembrança, falou:
— Mestra, essa questão de ordem e bondade é o que eu sempre busquei enaltecer. Mas me diga: por que trouxe esses tópicos neste exato momento?
— Temo que você possa se desviar do caminho e adentrar em uma trilha desconexa do que você é, no que significa ou representa.
Ele piscou três vezes, assim como um silêncio repentino ocorreu — foram três segundos bem longos.
Bagunçando seu próprio cabelo rosa com força, o leonino parecia contrariar os pensamentos de sua mestra.
— Já conversamos sobre isso, Elyra Cealestine! — Tom de voz áspero. — A probabilidade de eu mudar de direção é nula.
Mesmo com a certeza estampada no rosto dele, a mangusto tratou de mostrar em seu rosto um maior grau de proximidade: estendeu sua mão para o elegante pupilo, e também lhe entregou palavras.
— Theo Monsenhor Sesto… — ela retribuiu o ritual. — Somos todos propensos ao erro. E esse estado ocorre quando nos descuidamos. Cedo ou tarde, isso vai acontecer…
Indo até o centro, pegou a bainha da espada de madeira.
Ao abrir, a tornou em mãos, alisando o fio.
Mesmo sendo de um material não cortante, estava afiado o suficiente para cortar uma folha de papel.
E foi neste contexto que ela falou:
— Mesmo armas feitas para proteger podem ferir… e proteções podem ser usadas para atacar. Monsenhor, os dois últimos parâmetros… quero que os ouça com mais atenção!
O olhar de Theo se fixou nos dela.
Se antes eram como irmãos…
Agora só havia aluno e professora.

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