Capítulo 118 - O Trovão Antes da Tempestade
A conversa entre Elyra e Theo continuou no salão luxuoso que alocou sua equipe durante a estrada na Arena Shang Mu.
Por mais que o assunto durasse mais que deveria, o leonino ouvia atentamente as palavras sábias de sua mestra — ele era um excelente pupilo.
Enfim, ela continuou:
— As duas últimas fases da conduta plena de um lutador. Ouça, monsenhor… e nunca se esqueça.
Ele mordeu levemente sua própria boca, como um tique, sinalizando um ritual para “não perder o norte”.
A voz da mangusto magenta veio com uma carga emocional maior — deu lugar a uma mudança de cenário, continuando o fluxo dos acontecimentos.
Nada parou, tudo era movimento.
Enquanto isso, nos corredores da Arena Shang Mu, eventos paralelos aconteciam.
Uma frase revoltada anunciou uma conversa:
— O que passou pela sua cabeça fazer aquilo que fez, Noah?!
Caminhando entre os demais lutadores do torneio, Santino falava ao albino sobre seu comportamento explosivo ante Pawa.
Um pouco mais atrás, estava Milla.
Diferente de mais cedo, seu astral já estava melhor, mas não livre de questões.
— “Aquele moço…” — pensava, se referindo a Pawa. — “Eu não sei porquê, mas ele não parecia ser ele mesmo ao falar aquilo. Acho que, um dia, preciso conversar com ele pra ajudar, sei lá…”
Ao mesmo tempo que refletiu sobre os eventos recentes, uma silhueta apareceu em sua mente, que ele reconheceu: era a de Brevon, cercado por trevas e tensão.
Entretanto, mesmo cercada por tanta negatividade interna, o brilho do olhar e do sorriso da pequena eram fortes o suficiente para não a ofuscar.
Seu caminhar foi acompanhado por sua fixação à fronte madura de Santino — Milla tinha gratidão estampada em seu rosto por causa dele.
Contudo, a conversa entre o canino e Noah estava mais acalorada.
Não era por menos, dado o esbravejar de Santino a ao albino — que não ouviu calado, ainda que mantivesse seu rosto neutro.
— Não esconda sua real revolta, Santino. Sei que é a mesma da minha — falou Noah, mais calmo.
— Sim, é! — tom áspero, postura ereta. — Mas você invadiu o espaço da Família Geiza! Tivemos sorte de sairmos antes que toda aquela matilha de lobos nos trucidasse.
— Não seria tão fácil… — Noah mostrou um tom ameaçador em sua voz.
Enquanto continuava o caminho, o canino olhou nos cantos e visualizou Noah de cima para baixo.
Não foi só uma leitura corporal.
— “Esse garoto estava diferente agora há pouco. A encarada ao traste do Pawa não foi uma simples provocação: ele usou a Tática Ghole, de chamar para a guerra, tomou uma postura amarga e…”
Sua breve pausa veio com o fechar de seus olhos.
A visão mental era em Kaura.
— “Aquela mulher… Ela estava totalmente decidida em mudar as coisas. O jeito que lidou com tudo foi incrível e, por alguma razão, eu estava em sincronia com ela, que por duas vezes usou a técnica Voz Ecoada.”
Seus pensamentos o distanciaram, onde o futuro incerto levava a história que estava sendo escrita.
Contudo, quebrando sua linha de raciocínio de lutador experiente, o canino sentiu sua mão ser tocada.
Ele, surpreso, olhou: era Milla.
— Ei, moço… — sua voz doce foi ouvida. — Obrigada por ter me ajudado. Estava com medo e você me apoiou.
— Hã? Mas… o que… — rubor no rosto, gaguejou. — G-garotinha, está tudo bem. Eu…
— Eu me senti muito bem depois, tá bom? A Carol estava mesmo certa a seu respeito.
— E-estava?! Mas por que está falando isso?
— Ela teve fé em você e sabia que podia contar com o senhor. Carol estava certíssima, hehe! Na certa ela diria “legal, nyah!”.
Santino estava ainda mais envergonhado.

Ele manteve as mãos dadas à pequena, voltando a olhar para a gente.
Coçou o nariz, tentando disfarçar o rubor, mas falhando nesse sentido.
— Você me lembra minha irmãzinha… — com um sorriso no canto da boca. — Age como ela quando está tentando me agradar.
— Moço, então sua irmã tem um irmãozão bem bondoso e legal! — seu sorriso brilhava, quase ofuscante.
Até os lutadores que estavam no corredor se encheram de “bons fluidos e sentimentos arco-íris” por tanta demonstração de fofura.
Santino tossiu, tentando não ser contagiado.
— Ah, bem… tipo… Estou parecendo um adolescente sem saber como agir! — ele olhou para Milla, vermelho. — G-garotinha, obrigado pelo e-elogio.
Logo ao lado, lá estava Noah, indiferente ao suco de “algodão doce” que ocorria ao redor.
Sua mente estava em outros mares:
— “Deixar aquele sujo para trás é quase um crime” — rosto fechado, leve franzir da testa. — “ Alguém como ele, estar na posição que está… me faz pensar em como pessoas como esse desgraçado chegam à liderança de todo um clã!”
Embora a brisa costeira não fosse presente, o ambiente estava fresco, mas não as veias do albino.
A maré estava alta.
— “O existir dele… me incomoda” — fechou nos pensamentos. — “Um líder com ideais desse tipo possui meios de expandir sua palavra. Alguém deve pará-lo… e gostaria que fosse o quanto antes!”
Enfim, seu desejo final.
— “Gostaria que esse alguém… fosse eu. E tive a oportunidade. Mas, diante meu time, não pude seguir com esse dever legítimo…”
Caminhando, ele olhou para Milla.
Aos poucos, só em fazer isso, seu rosto voltou à neutralidade… com um leve resquício de alívio surgindo em seu rosto pálido.
Noah tinha ciência de suas crônicas.
Havia também segredos ainda não explorados, dos quais ele não fazia questão alguma de revelar
Porém, possuía um imenso senso de justiça, até onde Pawa atingiu o fundo de sua moral, lhe trazendo à tona antigos conflitos.
Hoje eram internos, mas quase extrapolaram o espaço-tempo.
Todavia, havia nortes: o time de Lilac.
Todos eles, sem exceção, foram importantes para que estivesse ali, lhe dando chances de cumprir uma promessa.
Essa era sua sina, ainda que a muito custo de seu autocontrole, seja lá por qual motivo — as respostas estavam tão perto e tão longe.
Por mais intensos que fossem os eventos do maremoto de moral no oratório da escuridão, a crista da onda trouxe o brilho que dissipou parte da tensão tenebrosa.
O mar controlado, jamais aprisionado, tinha águas escuras e salgadas, onde vozes pediam licença para satisfazer sua vontade — línguas antigas exigiam obediência.
Mas nada disso foi atendido.
Nesse âmago de percepções, metáforas e sinergias, os Quatro Parâmetros da Postura Marcial enumerados por Elyra Cealestine revelavam mais da sina de um lutador.
Sua voz ditou:
— Yin Guo (郭銀), a Semente e a Colheita: toda ação gera uma consequência condizente com sua intenção. Como a síntese do Karma, porém aplicado no aspecto natural… das artes marciais.
Essa fase era a linha que delimitação entre ir e voltar, como Elyra deixou claro:
— Karma nunca é imediato, mas sempre retorna. O mesmo pode se dizer do caminho que cada artista marcial percorre: escolhas e efeitos. Faça o bem, colha o bem; faça o mal… e sabemos o que colherá.
Mesmo longe de toda a algazarra, a mestra mostrou-se visionária mesmo sem o brilho e as cores nos seus olhos.
Mas continha palavras que expressavam muito sua alta capacidade sensitiva e, principalmente, de conhecimento marcial.
Enquanto isso, em uma outra área, uma tempestade pairava no horizonte rubro que abrigava a todos na Arena Shang Mu.
Voltando a zona de conflitos do grupo de Lilac, Carol e Viktor, no exato momento onde Sheng Daiyamondo Omna impôs condições ao felino azulado (e abusado) Ciel, veio no exato instante da indagação interna do humano desprezado:
— “Ele (o Sheng) me defendeu…? O que está acontecendo aqui?”
Nesse meio tempo, Ciel, com as garras à mostra, deixou claro que não seria tão flexível ao pedido do alaranjado.
Pelo contrário: isso só colocou mais bolas de lã entre eles.
— C’est un scandale! (Isto é um ultraje!)
— Ah, então você quer guerra? — também mostrou as garras. — Antes da hora, aqui mesmo? Pode vir, se quiser?
— Non devo me retratar para um Natural pathétique! Mesmo você non tem poder para me obrigar, camarade charmant! (Camarada charmoso!)
— Legal, cara. Isso me mostra que você não tem noção alguma do ridículo! Sabe, vou te explicar um negócio: VOCÊ ESTÁ EM MEU TERRITÓRIO!
Como água e óleo, dois egos que não se misturavam.
O grito de Sheng chamou a atenção dos demais.
Vale frisar: no espaço também estavam Joshy e Tats, que só levaram seus olhos na direção onde seu companheiro de equipe estava.
Lá também estavam Lilac e Carol: elas não só olharam mas também ousaram ir na direção.
— “O que está acontecendo aqui?” — pensou a dragão púrpura, com o olhar coberto de surpresa. — “Sheng chegou quando e… quem é esse outro?!”
A sutileza dos felinos foi capaz de ocultar a presença deles, como Carol também raciocinou:
— “Caraca… pô, nem eu notei que os primos tavam fazendo reunião logo aqui!” — ela olhou para Sheng e de baixo para cima para Ciel. — “E esse azulão aí… Que parada tá rolando aqui?!”
As duas, ao mesmo tempo, foram impedidas de darem o primeiro passo.
— Dragão, o que estava falando sobre as atitudes do Monastério Omna… — interveio Joshy, batendo no escudo com os dedos. — Não terminamos nossa conversa.
Lilac olhou para ele, com o rosto bem fechado.
— Tenho outros assuntos! — lhe deu as costas, indo em direção a Viktor.
A facilidade com que ele fez isso foi tão impactante quanto o golpear no solo pelo escudo do membro da família Sapphire Omna: a vibração atingiu Lilac, a paralisando.
— Técnica Sapphire de contenção: Ressoar Paralisador.
A propagação do som, assim que atingiu o piso de mármore da arena, foi instantâneo, impactando a dragão.
O som era seu principal ponto fraco.
— “O que está acontecendo com o meu corpo?!” — sua surpresa veio com a constatação. — “Ele… o Joshy fez isso…?!”
Entretanto, os efeitos da habilidade especial do lobo foram breves, com Lilac se livrando em segundos.
Sabido a afronta, ela se colocou em guarda: sua aura púrpura cobriu seu corpo, assim como seus olhos se iluminaram, deixando claro que seu ímpeto acendeu.
— Você tem algum problema comigo, “Família Omna”? — o desagrado veio com sarcasmo. — Logo você, atacando pelas costas?
Joshy levantou seu escudo, mas sua fronte não carregava escárnio algum.
Pelo contrário.
— Escute, venerável dragão: contê-la foi pensado unicamente para deixar claro que nós dois estamos em uma discussão. Não tenho cismas ou qualquer coisa relacionada a isso. Contudo…
— Contudo…? — Lilac o pressionou. — Até agora você só me disse ‘mea palavra’… e nada mais!
A troca de olhares ocorreu.
Os olhos escarlate de Joshy contra os púrpuros de Lilac, cujo brilho não ofuscava o do outro.
O lobo branco se impôs, mesmo na tempestade igualitária.
— E você, venerável dragão, tem algo contra minha família. Creio que eu deva defender minha linhagem, acima de tudo… e você vai me ouvir.
A tensão entre os dois cresceu exponencialmente, deixando os dois capitães em ponto de ebulição.
Carol, lobo atrás, esboçou uma postura mais ofensiva: foi em direção a Viktor, sabendo que sua amiga tinha capacidades de lidar com o lobo.
Porém sua ambição foi contida por Tats: a felina médica se colocou entre os dois grupos, impedindo a progressão da gata selvagem.
— Qual foi, bonita? Dá licença aí, pode ser? — forçou a passagem.
— Não… — ajeitou os óculos, rosto liso. — Pare o que está pensando fazer.
— Hã? Aí, tô pedindo com jeitinho. Tu é prima, mas não é da família! — esbravejou, quase a empurrando. — Vaza daqui, Tats! Não tenho pendenga nenhuma contigo!
A membra da Família Aoi Omna não se mexeu um centímetro.
Pelo contrário: sua postura cresceu ante Carol, que fechou seu olhar sabendo que não seria tão fácil.
Foi o que Tats deixou claro.
— Vou ser bem específica: sou compreensiva e muito flexível, mas antes de tudo o Monastério Omna precisa ser respeitado. É parte da minha história… e irei proteger nossa doutrina.
— Que titica é essa?! — se colocou em base de luta. — Tô pouco me lixando pra sua tchurminha do mal aí! Eu quero ajudar o piá lá, sai da frente!
— Não… — pôs os olhos nos de Carol, intimidação imediata. — Você não dará um passo a não ser que tenhamos que resolver as coisas da pior forma.
As garras de Carol foram expostas, cujo brilho realçado pelos raios do sol que varavam a fachada oriental do corredor deixava claro seu fio.
A felina tinha uma arma natural.
— Que tá pegando? Tu tá me ameaçando mesmo, é?
— Só estou protegendo os interesses da minha família — imóvel, fitou-a com força. — Só não faça nada… e tudo ficará bem.
Assuntos pendentes, dissidências apressadas, tom crespo de percepções e impressões doutrinárias…
Por mais de mil anos o Monastério Omna ditou o desenvolvimento de artes marciais em toda Shang Mu e não seria agora que a nova geração influente das famílias que formam o conglomerado de templos recuaria ao seu domínio sócio cultural.
Joshy e Tats representavam não só uma resistência como também a mostra de orgulho e pertencimento para manter o nome do monastério como um marco inerente e eterno na cidade.
Porém, em algumas das ramificações, a ambição já estava além de Shang Mu.
Lilac e Carol estavam diante de um debate ideológico muito além de só palavras.
O resultado desse embate era: o Karma faria crescer a moral… ou a diminuir.
A confiança e a imagem do time de Lilac estavam em jogo… e isso traria impacto para o cumprimento da missão.
Tudo era um emaranhado harmônico que se entrelaçava nas ações e reações de todos na Arena Shang Mu.
Elyra, que já tinha ciência, continuou a falar, selando a última das fases do ensinamento que recitava a seu pupilo.
— Dharma (法), a Voz do Caminho: é o caminho que cada ser deve seguir para se alinhar ao fluxo do universo. Nenhum artista marcial pode ser chamado como tal sem que domine essa área…
Como uma oráculo, ela observou o futuro, como se mostrasse a Theo a direção que deveria seguir sem nem mesmo saber o caminho.
— É o dever de alguém, o princípio correto, a verdade universal. Cada artista marcial segue um dharma próprio, não importa como. Promessas, desejos, vontades, dogmas, doutrinas… São tesouros inestimáveis e de um só dono.
Uma pausa ocorreu.
Mas uma última frase veio:
— Um bem material pode ser consertado… mas não a moral de um lutador. Um estigma aberto só se fecha se o indivíduo curar seu espírito de lutador. Seu caminho é o que o define.
Breve, o silêncio agiu como um interlocutor que ligaria os ensinamentos da mangusto magenta para a prática, assim como para com o que aconteceu a segundos atrás.
Mas…
— Enton nossas garras brindarão mais cedo, ce n’est pas? — falou Ciel, olhos fechados. — C’est parfait… et passionnant! (É perfeito… e excitante!)
— Idiota! — Sheng sorriu, mas com malícia no olhar. — Você quer tanto ser surrado antes da hora… e vai conseguir!
No ponto máximo de pré conflito entre os dois, um evento inesperado ocorreu: tanto Sheng quanto Ciel ficaram mudos ao ver Viktor tomar a frente do felino alaranjado, onde o humano buscou o mais fundo dos olhos âmbar do azulado.
Atônitos, o silêncio de ambos durou por cinco segundos, com Viktor encarando Ciel.
A pausa só foi quebrada no sexto segundo, por Sheng.
— O que você pensa que está fazendo, Viktor?
Sem se virar, ele manteve o olhar fixo; um olhar predatório, como de alguém revoltado e consternado.
O humano, cuja irritação e fúria estavam estampados em seu rosto, respondeu:
— Cansei de só ficar olhando, ouvindo… e aceitando isso tudo sem revidar!
Ciel, com ares de caçoar do jovem, indagou:
— Revidar?! Haha… — risada irônica, com desdém. — Você é, como muitos do meu templo dizem, un bijou que brilha Sem Valor. Haha!
— E eu cansei de você… miserável — voz cortante, com um tom ameaçador.
Ciel sentiu.
O felino recebeu aquilo como um chamado de guerra.
Orgulhoso e com um ego inflado maior do que ele próprio, levou seu rosto até próximo ao do humano, como se quisesse falar para além da carne e osso.
Suas palavras miravam a alma de lutador de Viktor
— Tu manques d’éclat! (Você não tem brilho!) — tom áspero, quase predador. — Como uma presa, você deveria “diminuer” sua postura, voyageur ignorant! (Estrangeiro ignorante!)
— Se você acha que irei abaixar minha cabeça, achou errado… muito errado!
— Na luta… você estará só, entregue ao absoluto impondérable — o ar da boca rebatia no rosto de Viktor. — Você não passa de um brilho opaco no meio de uma costelacion como eu!
A provocação chegou a fazer Sheng reagir, que mostrava seus dentes em sinal de revolta.
Nem ele mesmo, age então um debatedor contra Viktor, estava transbordando de fúria.
Mas ele não era o único.

Viktor era a própria raiva que estava querendo sair da jaula.
— Eu brilho só… MAS NUNCA DESISTO!
Seu brado fervoroso e inquietante cortou o ar, como um trovão impávido que anunciava o início da tempestade.
Viktor também estava no meio da derradeira tormenta.
Li, Ren, Yin Guo e Dharma; todos ao mesmo tempo…
Em todo o time.

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