Índice de Capítulo

    As palavras de Lilac se perderam com a mudança de cenário que chegaria, em eventos que ocorreram ao mesmo tempo na:

    Policlínica do Castelo de Shuigang 

    Clínica médica | Noite

    Após uma bateria rigorosa de exames, porém sem gravidade ou qualquer tipo de dano físico ou mental, Viktor estava alojado dentro de uma câmara de isolamento bacteriano.

    Despido da cintura pra cima, só usava uma calça branca cedida pela clínica, a fim de manter a higiene total do lugar. 

    Era visível seu porte físico invejável: peitoral bem definido e braços com músculos, mesmo que fosse só um jovem de 17 anos. 

    Muito mais de seus aspectos foram levantados pelo médico, um panda com aspecto jovial usando um jaleco branco e calças pretas, que o examinou.

    Juntos em uma sala ao lado da câmara, ele e o guardião conversavam justamente sobre isso. 

    — Nível de colesterol ideal, tireoestimulante na risca, glicose nivelada, exames cardiopulmonar excelentes, nível de ferro impressionante… Seu porte físico e atlético é exemplar. Definitivamente, é um jovem no ápice físico e totalmente normal para os padrões de Avalice. 

    — Então ele não possui comorbidades1.… — Ying fechou seus olhos por alguns segundos. — Ótimo. Era o que eu precisava saber. 

    — Muito bem, senhor — o médico caminhou até a porta. — Irei liberar o indivíduo que se chama Viktor.

    — Ainda não… — disse Ying, lhe tomando a frente. 

    A atitude pegou o médico de surpresa. 

    — Guardião, o que houve? O paciente está bem. 

    — Eu preciso conversar a sós com ele, me permite?

    — Hã?! Eu… Bem, o senhor que é a autoridade no Castelo…

    — E o senhor de sua clínica. Caso não me permita, respeitarei sua decisão. 

    Diante dessa circunstância, era certo de que o médico não ousaria ir contra o pedido do guardião, atendendo ao seu pedido. 

    A porta, que estava selada, foi aberta, o que chamou a atenção de Viktor.

    Ying entrou, entregando ao jovem uma camisa.

    — Vista-se. Aqui dentro é frio e pode pegar um resfriado. 

    — Opa, obrigado, Ying! 

    Colocando a camisa, o jovem disse: 

    — E então, está tudo bem comigo? 

    — Está melhor do que os médicos imaginavam. 

    — Sério? Hehe, que bom. Fazia um tempo que não ia ao médico fazer exames.

    Enquanto Viktor ainda estava sentado na cama do centro da câmara, Ying voltou a fitá-lo, mas dessa vez de uma forma diferente: com seu rosto mostrando seriedade.

    Viktor sentiu uma lembrança do ocorrido.

    — “Hã?! Esse olhar… é de como estava durante a reunião! Eu lembro bem, já que senti o que estou sentindo agora: esse seu olhar é tão forte quanto alguém que me golpeou na alma. Mas porque?!”

    E, sem perder mais tempo, o guardião lhe perguntou:

    — Porque você veio para Avalice?

    — O que?! 

    — Responda a pergunta. 

    — Eu não sei. De verdade. Não existe um motivo de eu estar aqui. Como disse mais cedo, estou neste lugar contra minha vontade.

    — Como chegou a Avalice?

    — Ying, porque está me fazendo essas perguntas? — Viktor estava pressionado.

    — Só responda. Nada vai acontecer a você, é uma promessa.

    O rapaz, sabendo da pessoa que Ying representava, sabia que a confiança era seu bem mais precioso. Por isso mesmo, cooperou.

    — Eu estava caminhando por um bosque depois de eu ter saído do dojo do meu sensei. Do nada, eu estava em uma floresta bem fechada, e vários monstros parecidos com plantas que tentaram me agredir. Foi nesse momento que vi Lilac pela primeira vez.

    Ying se manteve calado o tempo inteiro, sim fugir do olhar. O mesmo fez Viktor, que continuou a contar sua versão. 

    — Eu quase a agredi, pensando que era um inimigo também. Corri como nunca na minha vida, para me salvar. Mas, por um instante, eu consegui respirar e raciocinar… “Porque ela não tentou me atacar?” Foi o que eu pensei. Eu quase a agredi outra vez, ao estar fugindo novamente das criaturas.

    O semblante inquisitivo de Ying se manteve, dando combustível às palavras honestas do humano, que continuou. 

    — E foi no momento que vi a Milla estar em perigo que entendi que elas estavam lutando contra aquelas coisas. Eu salvei a Milla, com o pouco que havia restado do meu fôlego. Foi aí que a senhorita Lilac me ajudou, assim como a Carol. E elas me abrigaram…

    Viktor até iria continuar a falar, mas foi interrompido pelo guardião, que levantou uma de suas mãos em direção ao jovem, que cessou suas palavras logo após isso ocorrer.

    O panda andrógino, ainda com o olhar, tinha as pupilas trêmulas, reação essa não percebida por Viktor, mas que demonstrava sinais de complacência.

    Não era um sentimento de pena, e sim de: 

    — Inocência.

    — O que?! Porque disse isso?

    — Você possui inocência em suas palavras.

    — O que tem isso?!

    Ying caminhou para mais próximo de Viktor e, ainda o olhando, tinha algo a perguntar.

    — Eu posso lhe fazer um pedido?

    — Claro. O que deseja? 

    — Posso tocar em seu coração? 

    Essa pergunta deixou o jovem um pouco surpreso.

    — Hã?! Mas… Porque? Você é médico também? 

    Esse comentário, simples e inofensivo, trouxe um sorriso ao rosto do panda. Uma paz sincera foi mostrada por esse ato.

    — Eu não sou médico, mas tenho habilidades especiais. Como disse em minha casa, consigo saber do estado de espírito das pessoas só em vê-las. Entretanto…

    — O que tem? 

    — Consigo ver além do estado de espírito ao tocar em pessoas. 

    Viktor entendeu a mensagem. Ele fez uma pergunta, mas longe de estar com medo. Pelo contrário.

    — Deixar que faça isso vai te fazer ficar mais tranquilo quanto a mim?

    A pergunta pontual era o que Ying não esperava ouvir, mas que era inevitável. 

    — Sim. Totalmente. Será o último passo.

    — Muito bem… — disse o jovem, abaixando seus braços. — Fique à vontade, Ying. Eu confio em você.

    As últimas palavras de Viktor exerceram uma força maior no âmbito de Ying. Foi nesse instante que ele se lembrou da conversa entre garotos que tiveram em sua residência. 

    Essa força motriz o fez seguir com sua mão até o peito do jovem, ao tocar seu coração.

    Assim o feito, as batidas do miocárdio do jovem foram sentidas, quase como se fossem melodias.

    Ondas sonoras, que se propagavam por toda a extremidade do braço de Ying, seguindo até onde seus instintos e sentidos se encontravam.

    Esse movimento, o julgamento que realizava de qualquer um de Shuigang, trazia imagens, que se tornaram mais abstratas, mas, de certa forma, lhe fazia sentir o âmago da situação.

    Rapidamente, todos os pólos sensitivos do guardião se colocaram em polvorosa, tornando do ritual uma busca incessante do porquê da questão, sem sucesso. 

    Mas, mesmo que o emaranhado de sensações lhe traísse, um pulsar mais diferenciado foi sentido, que alcançou o ponto mais fundo do coração de Ying.

    Havia algo lá, desconhecido, e inimaginável. 

    Algo inacessível e, ao mesmo tempo, poderoso para ser domado.

    Em frações de milésimos de segundos, pela primeira vez na sua vida, Ying se sentiu oprimido, tamanho o impacto do que sentiu. 

    Abruptamente, ele desfez o elo que o ligava a Viktor, afastando sua mão do jovem, de forma gentil, como sempre. 

    O jovem humano, olhando para ele, tratou de saber dos resultados.

    — E então, o que achou? 

    — Foi intenso… e impressionante — Ying estava com um olhar mais sereno, como sempre teve. 

    — Como assim? Me explica!

    — É difícil dizer ao certo o que eu vi, mas eu estava certo ao seu respeito desde o início. 

    — Sério? E o que seria? 

    Ying não precisou pensar muito para dizer. Categoricamente, ele cravou.

    — Sua inocência é o cerne de seu existir. 

    Essa frase, ainda que Viktor não tivesse entendido totalmente o significado, teve a ideia de que era uma boa impressão.

    O jovem somente sorriu e, inesperadamente, abraçou Ying, que se sentiu impactado com o ato espontâneo do rapaz.

    Ainda que mantivesse seu olhar sereno, ele nutriu um respeito maior pelo o que Viktor representava naquele instante.

    O guardião viu algo além, um universo talvez…?

    Enquanto isso…

    Quintal Onsen de recuperação | Noite adentro

    — Tu acha mesmo que o Ying ainda tá desconfiando do piá? 

    A conversa continuava no exato ponto deixado.

    As garotas ainda se banhavam nas águas, imersas.

    — É o que eu desconfio, Carol — disse Lilac, mergulhando a cabeça na água e emergindo em seguida. — Hm… O Ying é muito mais misterioso do que imaginava.

    — Tá. O que tá rolando? Se tu disse isso, então é porque tem história. 

    — Brevon parece ser odiado por ele. 

    — Legal. Tem uma fila quilométrica que odeia o insetão. Qual o problema?

    — Não, Carol! Eu me referia ao Ying ter esse ódio em um nível maior. 

    — Ter um ódio maior? Como assim? Tem nível pra essas paradas agora? Explica melhor, diva linda.

    Lilac fez questão de juntar suas amigas no centro da fonte, para que conversassem cochichando. Até Milla fez parte dessa vez. 

    A dragão explicou.

    — Durante várias vezes eu percebi que o Ying reagia de forma diferente toda vez que ouvia o nome do desgraçado do Brevon. 

    — Tá, mas o que tem isso? 

    — O que tem isso? Carol, pensa! Quando eu disse que ele tem desconfiança do Viktor, tenho quase certeza que é por causa do Brevon. 

    — Caraca… Mas como? Que relação às duas peças tem? Não faz sentido! 

    — Por isso mesmo estou dizendo isso. É curioso o Ying ter chamado o Viktor pra fazer esse suposto check-up e não fazer o mesmo com a gente. 

    — Nem o fato do piá não ter pelo ou cauda? — Carol voltou a tripudiar da situação. — O piá é um alien, hehe!

    — Não começa! Cada um deve ser o que é, sem preconceito!

    — Tá tá, “dona inclusiva”! Relaxa que tô de zuera, nyah!

    Nesse intervalo, Milla levantou um ponto. 

    — Acho que o Ying tem curiosidade no que o Viktorius é de verdade. 

    — Hã? Como assim? — perguntou Lilac.

    — Os dois são um pouco parecidos no jeito de ser. O Viktorius e o Ying parecem ser irmãos ou coisa assim, vocês não acham? 

    — Tipo alma gêmea? — Carol desta vez foi quem falou. 

    — É, quase isso… — Milla continuou a falar. — Bem, não importa. Eu gosto dos dois. E se o Ying pediu para o Viktorius fazer esses exames, então acho que o guardião se preocupa de verdade com ele. 

    — Eu sei que o Ying mostrou que gosta do Viktor… — falava Lilac, a continuar. — Mas porquê esse tratamento? Bastava levar todas nós com ele e fazermos o exame juntos. 

    Carol era ligeira demais (com ironia) para deixar esse comentário passar. Por isso que disse: 

    — Uh… Acho que a diva linda aí tá com ciuminho, hihihi… — ela, sorridente, gargalhou baixo. 

    — O que disse, Carol? — a dragão estava vermelha, e não era por causa da água termal. — Para com esse assunto! Eu não estou com ciúmes!

    — Sei… Tá coradinha porque? 

    — Porque você está insinuando um romance! Vê se cresce! 

    — Haha! Ganhei o dia!

    Como sabido, Milla era a mais sentimental do time. Curiosamente, ela percebeu esse detalhe sem levantar muito dos dois, usando de seus instintos caninos naturalmente.

    Mas, claro, era um cenário muito multifacetado, e que não havia um norte e muito menos um sul para clavar acertadamente os fatos.

    Entretanto, foi esse o ápice da conversa, o que cessou as discussões, mas estava muito longe de livrar a mente de Lilac e Carol dos motivos de terem um tratamento diferenciado do de seu amigo. 

    Recuperadas, Carol e Milla deixaram a fonte termal. 

    Vestidas com roupas pós banho de cor verde, as duas deixaram o lugar, com Lilac ainda se banhando. 

    — Aí, vai sair não? Tu vai ficar enrugada feito uva passa, tá? 

    — Você sabe que isso não vai acontecer, Carol. Essas águas são a melhor forma de eu manter minha pele macia por um longo período, você sabe disso! 

    — Tá tá… E você tem escamas.

    — Dá no mesmo! 

    — Ok. Vai ficar aí até amanhã então? 

    — Óbvio que não. Mais alguns minutos e estou indo para o quarto.

    — Tá ok. Até mais tarde, diva linda. 

    — Até, Lilac! — disse Milla, se despedindo.

    E, assim, as duas seguiram para o interior do Castelo, deixando a dragão ainda a se banhar nas águas termais.

    Minutos depois, ainda no Quintal Onsen de recuperação…

    Já estava um pouco tarde da noite. 

    Lilac, já vestida, estava deixando as dependências do Quintal Onsen, a caminhar pela pequena passagem por entre o vale que levava ao castelo. 

    Entretanto, ao estar caminhando pelos corredores, precisou parar seu trajeto.

    A sua frente surgiu Ying, que a olhou nos olhos.

    A dragão púrpura, curiosa, disse: 

    — Ying…? O que deseja? 

    E o guardião de Shuigang, de forma gentil, respondeu:

    — Devemos conversar, cara dragão. Só eu e você. 

    Lilac franziu sua testa, dando sinais de surpresa.

    Ying, por outro lado, estava como sempre esteve. 

    Sereno e tranquilo.

    Mas qual será o porquê de seu pedido? 

    Porque conversar a sós com Lilac tarde da noite? 

    Haveria somente a lua, brilhosa e bela, como testemunha.

    1. nota: comorbidade é toda doença, condição ou estado físico e mental que, em razão da gravidade, pode potencializar os riscos à saúde caso o portador venha a se infectar com algum agente patogênico. Foi exatamente o caso do coronavírus, mas vale também para outros surtos ou epidemias.[]

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