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    De pé e ainda mais impactada, Lilac respirava fundo pela boca.

    Ying manteve o mesmo semblante tranquilo e sereno, mas com um olhar penetrante, característica que tinha quando lutava.

    — “Ele está mesmo lutando a sério!” — a jovem pensava, sem tirar os olhos do guardião. — “Se os guardiões protegem, quem protege os guardiões? Essa foi a pergunta que ele fez, mas porque?”

    Diante desse dilema, Ying buscou o diálogo.

    — Consegue ouvir as nuances desta terra nobre? — disse, olhando em volta. — Este lugar foi construído por todos os habitantes de Shuigang no passado. Nem havia palácio, ou até mesmo um monarca. 

    As palavras continham fatos históricos, que em nada ajudavam Lilac a encontrar a resposta.

    Mas o guardião continuou.

    — Esse paraíso no meio do palácio é hoje em dia protegido da corrupção que nosso povo foi vítima no passado. Cobiça, desonra, inimizade, antipatia… Tudo isso foi somado por anos, até que os guardiões extirparam, com toda a fúria de suas almas puras, o mal que caminhava nessa terra nobre. 

    Ele passou a caminhar ao redor de Lilac, distante uns 5 metros, sem lhe tirar o olhar.

    Suas palavras continuavam.

    — Os tempos passaram, uma nova ordem surgiu: a monarquia de Shuigang. O último, o mais nobre deles, o Rei de Shuigang, pai de Dail e de seu irmão ingrato e vil Spade, levou esse reino com afinco e justiça. Era um panda honrado.

    Lilac tentava ligar os pontos. Aquilo que ele falava começava a criar um sentido, ainda que fosse tímido.

    Ying manteve a conversa. 

    — Brevon. O monstro repugnante e terrível que invadiu nosso reino e usurpou das nossas forças. O mesmo que tentou roubar a Jóia do Reino, tramou uma crise entre nações, quase trouxe uma guerra entre os reinos… e assassinou o meu lorde! — ele falava, caminhando em direção a dragão dessa vez. — E ele foi detido por você, Sash Lilac.

    A tranquilidade que Ying representava enquanto falava deixava Lilac com mais dilemas em sua mente.

    Era uma sensação estranha, de quem tivesse confiança ao mesmo tempo que se mantivesse sempre em alerta, tremendo por alguma investida inesperada, como mais cedo. 

    Naquele instante, Lilac não sabia o que esperar, ficando desconfortável com a situação.

    A indagação que o guardião lhe fez a forçou a dizer: 

    — Não fiz nada sozinha! Brevon foi detido por intermédio de várias pessoas dispostas a pará-lo!

    Deixando o clima mais pesado, o rosto de Ying expressou uma reação diferente de todas as outras até agora: desta vez ele tinha um olhar incriminador, além do que seria um julgamento. 

    Lilac sentiu bem em seu interior um temor absurdo. Mas sequer teve tempo para raciocinar tal mudança de temperamento. 

    — Milla quase morreu. Carol também.

    — Ying, porque está me dizendo essas coisas? Está tudo bem agora! Estamos todas bem! 

    — E várias pessoas morreram durante a amaldiçoada estadia de Brevon neste palácio.

    O diálogo sem ligações e com fatos consumados, mesmo reais, só deixavam Lilac mais incomodada. 

    A dragão também mudou de comportamento, deixando transparecer irritação.

    — Diga coisas que façam sentido, por favor!

    — Tudo faz sentido. Você ainda não encontrou a resposta da minha pergunta? Está muito explícita, dragão.

    — Mas porquê? O que sua pergunta representa a esse duelo que você quer travar contra mim? — a jovem dragão ficou imóvel, trocando olhares com o guardião. — Você novamente está fazendo um teste? Viktor já provou que estamos todos no mesmo lado!

    A sentença exclamativa de Lilac culminou em mais uma reação inesperada do guardião: com suas chakrans, Ying quase conseguiu atingir o pescoço de Lilac com um movimento lateral usando os dois discos.

    Lilac aparou o golpe nos braços dele, que manteve a força mesmo com ela os segurando. 

    Enquanto Lilac lutava para manter sua integridade salva, Ying voltou a falar. 

    — Um teste? Você espera um simples questionamento? Foi essa sua atitude contra Brevon? 

    — Grr… Você não tem ideia do que foi lutar contra ele! — disse a dragão, rangendo os dentes. — Eu estava disposta a acabar com tudo, destruir até a última frota das criaturas monstruosas que ele trouxe junto com seu exército! Essa foi minha atitude!

    Lilac estava decidida a se expressar.

    — Surrá-lo até que todo o mal que ele trouxe fosse totalmente aniquilado era o mínimo que eu deveria fazer!

    — E se você fracassasse?

    — Eu não falhei! — ela falou com fúria, o fitando sem parar. 

    — Você está dizendo dos resultados… — o rosto incriminador se manteve. — E se você fracassasse? 

    A pressão só aumentava.

    O olhar de Ying tinha um poder extraordinário, a ponto de pressionar psicologicamente Lilac, até então bem centrada. 

    Porém havia um limite. 

    E ele se esgotou.

    — EU NÃO TINHA O DIREITO DE FALHAR! — ela gritou com o mesmo nível de fúria quando lutou contra Brevon. 

    Seu brado, que ecoou pelo jardim, veio acompanhado com uma aura branca púrpura, assim como seus olhos brilhantes.

    Ela demonstrou novamente a mesma intensidade de poder que carregou naquele dia.

    Como sabido, Ying estava sendo tocado por Lilac.

    Sendo assim, ele pode ver a sua alma.

    Mas, diferente da última experiência com Viktor, todo o esplendor do âmago da dragão púrpura estava visível, sem características abstratas.

    Ele viu puro poder, um rastro ininterrupto de fúria, tudo unido com uma enorme gama de justiça e responsabilidade. 

    Todos os traços de personalidade altruístas vistos por ele lhe fizeram até mesmo a lacrimejar, tamanho o impacto causado pela visão do interior da essência da dragão.

    Isso levou milésimos de segundos, como da última vez. Mas pareciam anos luz. 

    Ao fim, o guardião desfez a conexão, se afastando de Lilac com um salto para trás. 

    Ela, ofegante, tentava se controlar, cessando seus poderes imediatamente.

    — Seja o que você esteja querendo de mim, peço que pare, por favor! — ela se acalmou, mas não se descuidou da defesa. — Eu não o vejo como um inimigo, nem antes, nem agora, e muito menos amanhã. Só que estou farta de seus testes! 

    Ying ainda se recuperava, dado o lapso que teve a segundos atrás. 

    O guardião não tardou em responder.

    — Poder e proteção. Essa dicotomia abraça um leque de pensamentos.

    — Do que está falando? 

    — “Se os guardiões protegem, quem protege os guardiões?”. Essa frase tem essa conotação. Você ousou contra Brevon, mas tinha noção das suas responsabilidades? 

    — Ying, eu… — Lilac foi interrompida.

    O guardião foi enfático.

    — Você tinha total noção porque estava decidida a acabar com tudo. Eu vi em sua alma a determinação, sem um passo sequer para trás de dúvidas — ele continuou seu monólogo. — O ciclo se manteve, eu sei. Você estava cercada de aliados, de pessoas que queriam o seu bem e que fariam de tudo para te salvar.

    Completando suas linha de raciocínio, Ying concluiu:

    — Você fez isso… e eu sei que faria mais e mais, sem parar, até esgotar sua última centelha de Nirvana! Você estava prestes a ter seu Segundo Aflorar! Essa relação de união e perseverança é parte de seu existir, Sash Lilac.

    Nesse momento, Lilac recordou da imensa crise que se formou no passado, quando Brevon tentou roubar a Jóia do Reino.

    Mas, desta vez, somente boas lembranças: a amizade com Carol e Milla, a aliança com Royal Magister e Neera Li e a ajuda incondicional de Torque.

    Ela entendeu, agora, tudo por trás da pergunta que Ying havia feito. 

    Era exatamente o que precisava passar.

    E logo veio a resposta.

    — Eu protegi as pessoas que eu amo… e elas me protegeram.

    O guardião, desta vez, deu sinais de ter recuado na sua investida ofensiva contra Lilac, guardando suas armas.

    Com argumentos mais complacentes, ele voltou a falar.

    — Havendo alicerces firmes, mesmo no maior dos problemas pode-se obter vitórias. A vida é assim, o tempo todo. E é esse um dos motivos que lhe trouxe até aqui. Você sempre buscou fazer o melhor, ajudar a quem precisa, a todo custo. Eu sei sua história, todos os vieses acerca de você, Sash Lilac.

    Lilac se lembrou do que precisou passar para salvar Avalice. E ela tinha total ciência de que não fez nada sozinha.

    Porém, sua força de vontade superou a chance do fracasso, culminando em transformações que influenciaram a vida de todos que teve contato.

    Esse era o objetivo de Ying.

    Saber ao certo o quanto Lilac estava disposta a ir. Ia além disso: seus amigos também tinham o mesmo pensamento.

    — Eu precisava provar para mim mesmo que você, Sash Lilac, era a mesma pessoa que teve o “privilégio” de ter dado fim ao problema chamado Brevon — disse o guardião, já com seus braços arriados. — Vi agora que sua força, que já era esplendorosa, é maior ainda porque você tem amigos e aliados a seu lado com seu mesmo valor.

    Tomando espaço, um sorriso franco surgiu no rosto de Ying, dando mais do que sinais de que a carga emocional caótica de outrora deu lugar a um momento de relaxamento e algazarra.

    O mesmo foi sentido por Lilac, que ficou mais relaxada após ver a demonstração de amabilidade na face andrógina do guardião de Shuigang. Seu carisma era único, com um poder de multiplicação de felicidade gigante.

    Contudo, havia um ponto onde este sorriso, ainda que presente, perdeu um pouco da força. 

    — O segundo assunto que devemos tomar é sobre Viktor.

    Esboçando estranheza, Lilac ficou curiosa com isso. 

    — E do que quer falar dele? Acho que tudo que vocês queriam saber sobre ele já foi mostrado durante o jantar e um pouco antes disso, durante o ataque dos Red Scarves.

    — De fato. Mas me refiro ao próximo passo.

    — Próximo passo? Do que está falando?

    — Lilac, ele é um estrangeiro no meio do caos. E quando digo “caos” não estou me referindo a confusão que todos nós estamos lidando. Trata-se de não importunar as leis da existência. 

    O rosto de Ying passou a ficar mais sério, uma impressão que Lilac tirou como uma clara demonstração de preocupação com Viktor.

    O guardião continuou a falar.

    — Não há, até agora, um porquê dele estar aqui em Avalice. Poupá-lo de todo esse imbróglio é a melhor alternativa, senão a única, para que fique seguro.

    — Porque está dizendo isso? E, agora que me lembrei: porque levou Viktor e não a todos nós? Eu tenho certeza de que o banho termal traria os mesmos benefícios de recuperação a ele! 

    — Decerto… — ele disse, fechando seus olhos. — Era necessário que fizesse averiguações ao estrangeiro. Fiquei preocupado se a radiação de Avalice fosse danosa ao seu corpo. Peço desculpas se lhe trouxe algum tipo de suspeição minha, cara dragão.

    — Ah, tudo bem… — disse Lilac, demonstrando tranquilidade, mas não totalmente. — E onde ele está agora?

    — Provavelmente em seu quarto. Foi um dia cheio.

    — Entendo… — a dragão abraçou o próprio corpo, como se estivesse se sentindo culpada por algo. — Bom, acho que é isso que os guardiões fazem, afinal. Você estava sempre dois passos à frente, pelo visto. Eu que devo desculpas.

    Ele, então, estendeu sua mão a Lilac, como um convite. Ela, gostando da gentileza, atendeu ao pedido, dando-lhe a honra.

    O guardião, conduzindo-a até próximo ao riacho alí próximo, onde o espelho d’água refletia a luz de Dezoris, a menor, novamente havia concretizado um elo, uma ligação com ela. 

    As mãos dadas se mantiveram durante toda a conversa. 

    — Você e Viktor têm particularidades.

    — Particularidades…?

    — Sim. Sua grandeza, Sash Lilac, é sempre estar disposta a ajudar quem precisa e fazer o bem. O mesmo digo Viktor, ao seu jeito. 

    — Viktor, desde quando o encontramos nas Planícies de Orvalho, mostrou para todos nós que era alguém que poderíamos confiar. Ele cozinhou para gente e ficamos quase a noite toda conversando. Ele parecia ser do time há muito tempo. 

    — Esse era o detalhe que eu queria ouvir… — disse Ying, contemplando a lua.

    — O que seria? 

    — O papel de Viktor em nosso mundo não pode ser o mesmo que em seu próprio.

    — Hã? O que quer dizer com isso? Dessa vez eu não entendi mesmo. 

    — O protagonismo que ele supostamente tenta empregar em Avalice. 

    — Protagonismo?! — Lilac finalmente entendeu. — Você está dizendo que ele deseja tomar partido de tudo, não é isso? E qual o problema? Ele é independente.

    — Sua “independência” o levou a uma situação crítica, você foi testemunha.

    — Situação crítica?

    Ying manteve o olhar, não ofensivo, mas inquisitivo. Ele a forçava a conseguir ligar os pontos. 

    — O fato que não foi consumado mais cedo. Lembra-se que eu tentei contra a vida de Viktor?

    — Sim, eu lembro. Mas você nunca faria isso… Ou faria? — disse Lilac, confusa e desconfiada.

    — O que separa minha atitude de um vilão é que eu não tenho pensamentos escusos.

    Um silêncio tomou conta do lugar. 

    Um vazio, um vácuo repentino.

    Um guardião estava fazendo seu melhor.

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