Capítulo 49 - Laços (parte 4): porto seguro

Continuando exatamente na mesma parte do capitulo anterior, a reação de Lilac foi percebida por Caol.

De forma imediata, a felina perguntou:

— Ué, o que foi? — disse ela. — Porque tu ficou séria do nada? 

— Relaxe, Carol… — disse a dragão, indagando. — Temos que nos concentrar no retorno para Shang Tu. Agora que sabemos que Mayor Zao está com o mega resquício da Jóia do Reino, Royal Magister precisa saber o quanto antes. 

— É, tu tá certa, diva linda. Então partiu… para Shang Tu!

Com todo o time de Lilac embarcado, o barco zarpou do pier, ganhando aos poucos o mar de Shuigang.

O quarteto acenou para Ying, que fez o mesmo, mantendo o seu sorriso contagiante até que o flutuante tomasse maior distância. 

Foram minutos que distanciaram o guardião de seus protegidos e, agora, amigos.

Munido de seus utensílios e mochila que utilizava em seu comércio ambulante, pelas vielas do cais caminhava.

Ele, inclusive, pôde contemplar uma jovem urso parda, que usava um vestido branco e uma cabelos azuis e olhos verdes, que, tocando seu violão, emendava arpejos enquanto sua voz melodiosa era ouvida, numa canção¹ apreciada por todos que estavam presentes naquela manhã nas docas de Shuigang.

♪Eu segui este caminho distante à procura

♪Daquela luz cintilante

♪Fechada nas mãos de uma criança

♪Vagando a beira do tempo

A canção, performada de forma doce e bela, tomava forma até onde seu som era ouvido, cativando a todos.

Sua melodia harmoniosa tornou ainda mais confortável aquela manhã.

Contudo, enquanto Ying caminhava de volta para o centro da cidade, a vender doces pelas ruas e praças, como sempre fez, um monólogo veio de sua mente. 

“As últimas horas passadas me fizeram voltar a viver os tempos áureos e felizes do passado. Pela primeira vez em um ano pude novamente voltar a sentir empatia real e nobre por pessoas maravilhosas.”

A cada cliente atendido, um sorriso era visto. 

Não só por parte do panda mas, principalmente, das pessoas que ofereceu seus produtos e fez suas vendas. O valor pago era só um ato simbólico. Os cidadãos de Shuigang estavam se sentindo protegidos de alguma forma. 

Era o poder da gentileza. Ela tinha a capacidade de transparecer o melhor nas pessoas.

♪Eu continuei te procurando

♪Embora não soubesse seu nome

♪Porque eu quis compartilhar

♪Este sentimento com você

Embora Ying se mantivesse centrado no que estava fazendo, lembranças recentes, da noite passada, vieram à sua frente naquele instante. 

“Precisei conhecer alguém de outro mundo para, enfim, poder conversar abertamente sobre mim. Não havia melhor pessoa, a que guarda dentro de si uma potencialidade que não tive a capacidade de medir.”

Ele falava de Viktor.

Sua lembrança? Era a de minutos depois de ter examinado o coração do jovem humano no Palácio de Shuigang.

Ying saiu do domo na policlínica, se resguardando em seu cômodo real, o interior do Palácio de Shuigang.

Entretanto, a porta do quarto do guardião foi tocada.

— Quem deseja? — perguntou Ying.

— Sou eu. Viktor!

O panda, sem perder tempo, foi até a porta, abrindo-a. Foi um dos poucos momentos que esteve com o semblante demonstrando surpresa.

— O que deseja, caro Viktor? Creio que já o liberei para que retorne ao seu quarto.

— Sim, mas precisava conversar com você antes. 

— E porquê deseja isso? 

— Conversa entre garotos, como na sua casa, hehe — ele sorriu, amistosamente.

Já dentro do quarto do guardião, a dupla estava sentada em um sofá.

O local era simples, com biombos separando a escrivaninha da cama, e também possuía um grande espelho na parede com um pequeno guarda-roupa ao lado da janela rústica. Um tapete verde completava a decoração.

A conversa prosseguiu.

— O que quer conversar, caro Viktor?

— Estou aqui pra falar sobre o que aconteceu nesse reino com você.

— Hã? O que está dizendo?

— Brevon… — disse, com sua voz em um tom sério. — Você o odeia muito.

O olhar do belo rosto de Ying logo mudou, com o jovem guardião mudando seu semblante, como se estivesse mesmo sentindo repulsa.

— Eu sei da história toda, mas… — falou Viktor, sendo interrompido.

— Você nunca me entenderia.

A fala seca de Ying pegou o rapaz de surpresa.

Ele entendeu que não tinha mais volta e prosseguiu com o assunto.

— Basta dizer.

— Eu não quero falar sobre isso! — Ying tinha exposto mais de seu lado sensível, até então nunca visto.

Viktor pareceu saber lidar com o assunto. Tanto que insistiu demasiadamente.

— Você precisa. Eu sinto que você não conversa sobre isso com ninguém.

— Como está tão certo disso?

— Desde que eu estava em sua casa, você parece não gostar de ouvir o nome dele. Nossa, você é o guardião! Depois que eu descobri que era o benfeitor deste reino, eu entendi porque agiu daquela forma.

♪O tempo envolve tanto o amor quanto a dor

♪Até que ambos sumam

♪Mas eu ainda lembro deles

♪E sempre lembrarei

A conversa seguiu para um lado mais empático. A cada palavra proferida, mais e mais a carga emocional de Ying era atingida.

— Você me disse que não haviam guardiões no reino… — perguntou Viktor, sendo cuidadoso. — Porque isso?

— Viktor, não continue… — Ying falou, se levantando. Ele ficou de costas, escondendo seu rosto. — Você não entenderia…

Sem pensar duas vezes, o rapaz se levantou, demonstrando todo seu afeto: ele abraçou o panda pelo ombro.

— Diga, Ying. Estou aqui pra te ouvir… e te ajudar.

Enfim, o assunto atingiu um outro nível.

— Ele matou a todos… — ele falava, lutando para lhe dizer a verdade. — A todos os meus… parentes. Brevon matou todos os guardiões. A linhagem da minha família, todos foram exterminados. Eu sou o último da minha linguagem. Eu sou o único guardião vivo!

Viktor ficou mudo por um tempo. 

Sabia que tinha tocado em um ponto sensível. 

Era visível que Ying sentiu muita dor por dentro e deixou isso muito evidente.

Ele continuou a contar.

— Cada dia… Cada momento… Nos instantes mais íntimos aos mais abertos… Só consigo me lembrar daquele dia, que precisei juntar forças para dar-lhes um descanso digno. Guardo um ódio por Brevon como nenhum outro inimigo do meu reino. Eu queria estar no lugar de Lilac… Eu queria dar um fim a vida dele… para que pagasse por tudo que tirou de mim!

Não se enganem: não haviam lágrimas sendo derramadas no momento. 

O clima era de revolta por parte de Ying. 

Viktor, sabendo que deveria fazer algo, logo tratou de lembrar dos momentos iniciais em Avalice e, com Milla, da ajuda emocional que havia recebido da canina. 

Olhando para Ying, ele falou:

— Desde que eu vim para esse mundo eu percebi que as pessoas que me envolvi por aqui são muito unidas. Elas se importam mesmo com o amor ao próximo.

— As pessoas de Avalice ainda guardam as feridas deixadas por Brevon. Eu guardo um estigma. É algo que o tempo não vai curar.

♪Embora eu não possa recordar de quando

♪Um sussurro começara a ecoar

♪Profundamente em meu coração

♪Mais fraco do que gotas do orvalho da noite

Uma ferida que não cicatriza. O fardo de Ying seria carregado por toda sua vida. 

Todos os guardiões haviam sido assassinados pelas forças de Brevon, no ataque que trouxe o controle do Palácio de Shuigang e tudo que aconteceu de ruim em Avalice até então. 

Mas: 

— É impossível eu saber o tamanho da sua dor. 

Foi o que Viktor disse. E continuou:

— Eu sinto falta dos meus pais, da minha avó também. 

Ying olhou bem no interior dos olhos do jovem, conseguindo compreender o que Viktor quis lhe dizer. 

Foi nesse instante que o guardião entendeu que ele não estava só em seu emaranhado de sentimentos ruins e situações de solidão.

Ele encontrou uma direção, um entendimento de que seu martírio não era uma coisa só de sua pessoa.

Suas emoções não poderiam lhe cegar, tendo em vista sua posição de guardião.

Viktor prosseguiu:

— Eles me deixaram uma herança: conhecimento. Eles viveram pra me dar uma oportunidade de viver. Preciso fazer valer a vida deles vivendo.

Ying pode ver em uma pessoa que nem sequer era de seu mundo o significado de continuar seguindo em frente. 

♪Talvez esta oração que rogo

♪Passe pela escuridão de minhas estrelas congeladas

♪E chegue aos céus acima de você

♪Tão distantes

Não parou por aí. 

— Parte deles vive em mim. Nunca poderei mostrar a eles o tamanho do amor que carrego por tudo que eles fizeram. Mas, ainda que tenha esse obstáculo, eu sei que posso fazer o meu melhor para todos que estão à minha volta.

Ele tomou ar, concluindo seu ponto de vista.

— Não dá pra mudar o passado, e muito menos saber do futuro. Cada dia vivido é único e todo dia é dia de conhecer alguém especial.

Foi um ato simples e honesto, natural do humano, que conseguiu com maestria ser empático e, ao mesmo tempo, resiliente.

— Sua dor deve ser insuportável. Acho que nunca poderei saber a intensidade. Mas, o que tiver a meu alcance, eu juro, Ying: eu vou fazer o que for preciso para te ajudar. Vou estar ao seu lado. Acho que Lilac, Carol e Milla fariam o mesmo.

Ying teve sua mente liberta das trevas que tanto o atormentavam. 

Viktor se esforçou ao máximo para confortá-lo.

— Você viu o interior do meu coração. Eu não entendi quando você me disse que minha inocência é minha essência ou coisa assim. Mas, depois de tudo que eu vi aqui nessa cidade, posso dizer com tranquilidade que você é uma pessoa incrível, Ying!

O que Viktor disse foi revigorante ao espírito do guardião.

O jovem não terminou, ao falar:

— Você carrega um fardo muito pesado e é alguém esplêndido, mesmo com todas as suas responsabilidades… — disse, olhando com carinho para o panda. 

Tudo aconteceu da forma mais inocente e sincera possível. Viktor só falava o que vinha a sua mente, sem pensamentos vagos ou tentando parecer preocupado.

Era tudo real.

— Você não está sozinho — disse o rapaz, mostrando mais empatia. — Quero também te ajudar a carregar isso tudo. Mesmo eu sendo um viajante, ofereço minha mão para te apoiar.

Ser um guardião era o que a família de Ying lhe deixou como herança, como o rapaz deixou claro em sua questão:

— Eles eram os melhores, não é? — perguntou Viktor.

— Sim… Com total certeza — respondeu Ying, já com um sorriso confiança no rosto.

— Ok, então… — disse, se sentando outra vez no sofá. — Quero ouvir a história deles. 

— Do que está falando? — Ying ficou confuso, não entendendo bem a naturalidade do pedido.

— Eu quero saber sobre os guardiões. Tenho certeza que você tem muito orgulho de cada um deles, não é?

Aquilo pegou mesmo o guardião de surpresa.

“Nunca ninguém me perguntou sobre meus amados guardiões, que entregaram suas vidas para proteger nosso reino contra Brevon. Um estrangeiro, que não tinha a menor obrigação de me dar atenção, ousou em querer saber sobre mim e de meus queridos parentes.”

Ying estava impressionado, cuja emoção lhe trouxe bons fluidos.

“A princípio, não consegui processar o pedido, estava a anos luz da minha compreensão. Mas, nesse instante, me lembrei do que vi em seu coração naquele dia… Seria um ato de puro egoísmo que alguém exigisse que ficasse entre nós em Avalice. Sua presença aqui é um universo em jogo. O seu universo!”

Por alguns bons minutos, Ying contou a história rica de sua linhagem de guardiões. Contos que nenhum outro cidadão de Shuigang tinha conhecimento e que sequer Ying pensou em dizer a alguém.

“Acredito que alguém o está esperando em seu mundo. Qualquer pessoa gostaria de tê-lo ao seu lado, sem dúvidas. Não é só agradável, mas um perfeito amigo. Ele me ouviu falar, se encantou com os contos dos guardiões, riu comigo, sorriu o tempo inteiro… É um sorriso que deve ser protegido.”

Com o assunto levantado à última potência, o panda soube medir sua importância no mundo, de como fazer com que sua nação esteja protegida.

O sacrifício de seus parentes foi para proteger a todos e isso deveria ser respeitado, deixando claro para si sua devoção de uma posição tão nobre.

Sorrisos voltaram ao rosto de Ying. Embora seu passado tivesse lhe deixado um estigma, a ferida não o incomodava no momento. 

Pelo contrário: aquilo alimentou sua alma, o porquê de estar ali, sorridente e amável.

Ao entender isso, o guardião de Shuigang olhou para Viktor e o abraçou carinhosamente.

— Eu não tenho palavras para demonstrar o tamanho da alegria de ter te conhecido. Você exorcizou fantasmas que me assombravam. 

— Sério? Mas o que… — Viktor foi novamente interrompido.

— Você já fez muito por mim hoje. Acho que, depois dessa conversa, os tons abstratos de sua alma tomaram uma forma, afinal.

— Forma?! E qual seria?

A amizade eterna de Ying foi selada naquele instante. 

Os dois agora eram de fato mais amigos que antes.

A pergunta do rapaz não foi respondida com palavras e sim com mais conversa. 

Naquele instante não havia mais um estrangeiro e um guardião.

Eram Viktor e Ying, cozinheiros por profissão

E amigos, incondicionalmente.

Já no tempo presente, a cidade estava com um astral altíssimo 

Nas docas, ao fim da bela canção, salvas de palmas foram ouvidas, como um ato de agradecimento à performance da jovem urso parda.

Isso antecedeu algumas horas.

O tempo passou… e a noite veio.

Já horas depois que se despediu do time de Lilac, Ying estava em sua casa.

Descansando após o dia de trabalho, se sentou em sua poltrona e, para matar a saudade, olhou para a foto que foi feita antes de saírem.

O panda andrógino, o guardião da Cidade de Shuigang, enfim encontrou seu porto seguro.

E, neste momento de relaxamento, se limitou a dizer uma única frase.

— Não me sinto tão sozinho agora.

Ele abraçou a fotógrafa com ternura, como se estivesse com parentes próximos. 

Era um amor fraterno consolidado.

E, assim, terminou a saga da Cidade de Shuigang.

O time de Lilac estava retornando para Shang Tu, para levar as informações para Royal Magister.

Mas, durante a viagem…

Caravela Metalinna | Início da manhã.

Já dentro da embarcação tecnológica com destino a Shang Tu, os jovens conversaram sobre tudo que aconteceu em sua estadia na cidade de Shuigang.

As aventuras realizadas, as lutas… e a comida. 

Mas, contrariando o clima de confraternização, Carol mostrava preocupação em seu olhar, percebido por Milla, que disse: 

— Carol, o que houve?

— Ah, fofucha, tem um lance que tá me incomodando.

— O que seria?

— Que parada estranha foi aquela de “referência” que tava aparecendo do nada? Cara, coisa de macumba aquilo, oxe!

Sim, era esse assunto sem sentido outra vez.

— Ah, Carol, você é maluca! – Disse Lilac, irritada.

— Eu tô falando, Tem uma coisa bem trevosa nisso tudo!

— Esquece isso e aproveita a viagem! Para, chega com isso!

Mas não. 

Carol estava mesmo incomodada com o fato inusitado. 

Ela tinha isso até em seus pensamentos.

— “Caraca, que coisa estranha era aquela? Pera, era sempre que diziam o nome do… É ISSO!”

Carol, após essas ideias na mente (tagarela) dela, começou a encher os pulmões de ar, sendo observada por Viktor.

— Mas o que é que você está… — ele não teve tempo para completar.

— ZAO ZAO ZAO ZAO!

Todos na embarcação, todos mesmo, desde os demais passageiros aos tripulantes olharam para o time, causando muita, mas muita vergonha a Lilac.

— Carol, para com isso!

— Ih, caraca, calma aí!

— Porque você gritou feito uma louca?

— Nada, diva linda… — disse Carol, pensando em seguida. — “Nada aconteceu. Que estranho. Então tava errada e tudo era coisa da minha imaginação?!”

E, enfim, a aventura em Shuigang terminou

Os jovens agora estão retornando a Shang Tu. Mas não haverá muito tempo para descanso, pois, pelo visto, uma nova missão estava por vir².

1. Canção sugerida: Radical Dreamers – The Unstealable Jewel | Trilha sonora original do jogo Chrono Cross. Compositor: Yasunori Mitsuda. Cantora: Noriko Mitose. Link: https://youtu.be/w3a_iTwQIi4?si=mW17yVC_BgajfcK8[↩]
2. ULTRA COMBO!

   — Ah, lá! Eu sabia! Nyah![↩]