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    O acontecimento foi o suficiente para fazer murchar de vez a atenção dos dois lutadores: era dos soldados do reino que patrulhavam o quarteirão.

    Foi dele que a voz ouvida se fez origem.

    Era um urso com pelugem de cor preto, com porte robusto. Ele estava vestido com o traje padrão dos soldados Shang Mu: consiste em um capacete vermelho com antenas e viseira pretas, armadura corporal vermelha e preta, com um cinto branco e braçadeiras e botas vermelhas e brancas.

    Com autoridade, ele se aproximou do grupo falando:

    — Eu ouvi relatos de uma estranha movimentação por aqui. Vocês sabem que é extremamente proibido duelar em local público nesta cidade?

    Carol não perdeu tempo e foi até próximo do oficial.

    Ela tentou usar de seu papo para mudar o panorama.

    — Ô puliça, calma… — ela olhou para o distintivo do oficial. — Ah, soldado Biggs é teu nome, né?

    — Precisamente, gata.

    — Só tamo treinando mesmo, tá? Coisa leve, só gente amiga.

    — Treinando? — disse, apontando para Lilac e Noah. — Esses dois estavam prestes a se esbofetearem aqui. Não sou ignorante no assunto, mocinha.

    — Sim, mas faz parte do treinamento pro torneio que a gente vai lutar. Fica sussa, seu guarda. Não somos de nenhuma torcida organizada nem nada. Pode ser? Deixa passar essa, tá tudo bem.

    O soldado, percebendo que todos que lá estavam não possuíam nenhum ferimento grave, atendeu a vontade de Carol. 

    Entretanto, ele era um oficial da lei e impôs sua condição.

    — Muito bem… Então façam o favor de darem o fora daqui. E se eu pegá-los fazendo isso nessa cidade, pode ter certeza que os levarei presos por desordem.

    E foi exatamente isso que todos fizeram. 

    Debandando do lugar, o grupo seguiu às pressas para fora do terreno, buscando refúgio nas ruas escuras daquela parte da cidade, no:

    Subúrbio de Shang Mu | Noite adentro 

    Minutos depois, o quarteto liderado por Lilac se encontrava em uma das várias praças da cidade. 

    Porém, desta vez o espaço aberto era mais urbano, sem os demais ornamentos dos demais parques da região. 

    O assunto não poderia ser outro.

    — Noah, você treinava naquele terreno, não? — perguntou Lilac.

    — Sim… — ele respondeu, a continuar com o mesmo semblante sereno. — Quase todos os dias, aquele lugar é minha segunda casa.

    Viktor também tinha curiosidades.

    — Aquilo era Kyusho-jitsu, não era? 

    — Huh? — Noah o olhou, deixando claro sua dúvida quanto à pergunta. — Refere-se a minha arte marcial, estrangeiro?

    — Isso mesmo. Nunca pensei que veria alguém praticante desta doutrina!

    O entusiasmo do humano logo foi consumido pela indiferença de Noah, que se limitou a ignorar a observação.

    O híbrido mudou seu foco de visão, dando as coisas para Viktor de forma natural, mas isso não passou despercebido de Lilac. A dragão entendeu aquilo como uma manobra de fuga, mas se resguardou por enquanto.

    A dragão, tomando a frente, falou:

    — Noah, você mora por aqui? Porque se sim, posso providenciar  um 66er pra você — disse, olhando para o abino.

    — Isso não será necessário… — ele retribuiu o olhar, mas foi gentil o suficiente pela consideração. — Mas agradeço por sua empatia. Este comportamento é raro nessa cidade. 

    Embora Lilac e Viktor estivessem mais à vontade, os instintos de Carol fizeram com que a felina ficasse afastada do albino.

    Seu olhar inquisidor e desconfiado a deixou com receio de buscar contato. 

    Milla, sensibilizada mais cedo, pareceu se unir à mesma causa.

    — Carol, eu não me sinto muito bem perto dele e não sei porquê. Você está sentindo a mesma coisa?

    — Por crer. Esse trevoso me dá arrepios. Desde a biblioteca que tô assim, mó grilada só em olhar pro cara. 

    — Mas o que vamos fazer? Só temos ele que tem interesse em participar. 

    — Pô, na boa, prefiro ir pra Arena Shang Mu e tentar a sorte por lá. Dá não pra ter esse cara no time, oxe.

    No outro extremo, Lilac estava próxima a Noah, mas não sem antes averiguar, usando de seus próprios pensamentos, a impressão inicial de seu time. 

    Ela usou as reações de cada um antes, durante e depois do suposto duelo para tirar suas conclusões.

    — “Carol não tem bom feedback do Noah, eu tenho certeza. Viktor parece ser neutro, assim como Milla. Não é uma unanimidade e fatalmente a escolha será difícil…”

    Uma decisão precoce poderia pôr em risco a harmonia do time, esse foi o entendimento de Lilac.

    Sabendo que a escolha precisava de algo que comprovasse a idoneidade do rapaz, a dragão teve uma ideia.

    Aliás, a única que, talvez, trouxesse um pouco da validação que seu grupo necessitava para aceitá-lo.

    — Noah, qual seu estilo de luta?

    A única reação visível no rosto do mestiço foi um franzir tímido de sua testa, estimulado pela pergunta da líder do time.

    Sabendo disso, ela insistiu na questão, mais incisiva.

    — Você quer fazer parte de nosso time, não? Para isso, precisamos saber mais sobre você. 

    — Pensava que só meu interesse seria o suficiente. 

    — Eu não sou como a Carol… — disse, provocando sua amiga.

    A gata verde ficou incomodada com esse comentário, mas se manteve calada. Era uma verdade, apesar dos pesares.

    Noah, ainda relutante, ousou em argumentar.

    — Enquanto conversamos, o tempo se esgota. Acho que deveríamos nos preocupar com a inscrição, você não acha? 

    Ele jogou no emocional do time.

    Contudo, Lilac agiu com sabedoria diante o outro desafio.

    — Realmente temos pouco tempo… — disse, sem tirar o olhar dele. — E ele também é precioso para você, não é?

    Lilac deixou claro que também sabia jogar. Ela usou a mesma tática contra Noah.

    Ele não ficou calado. 

    — Você realmente deseja saber os meus interesses antes de me aceitar no time, eu presumo.

    — Na verdade, quero conhecer mais sobre você — retificou Lilac, mostrando um olhar mais sério. — Isso vai além dos seus interesses. 

    Enfim, a movimentação de peças por Lilac o deixou em cheque.

    Ela jogou bem, o que fez Noah se mover para não perder a oportunidade.

    A dele.

    — Muito bem… — disse, voltando a caminhar. — Sigam-me.

    Os seus passos eram mais ligeiros dessa vez, deixando claro sua pressa.

    Lilac, seguido de Milla, foram as primeiras a trilhar o caminho.

    Porém, não foi seguido, a princípio, por todos. 

    Carol tinha ressalvas.

    — Peraí, de novo isso? — ela ficou parada, se virando para Lilac. — Pô, da última vez que o trevoso aí levou a gente, deu naquilo lá. 

    — Carol… — Viktor tomou a palavra, passando a seguir o albino. — Eu entendo sua dúvida, mas temos que dar uma chance. A senhorita Lilac está certa nesse ponto.

    — Será que só eu que tô vendo coisa ruim nessa história toda?! 

    A felina estava incomodada e não deixava isso às escondidas. Noah já havia percebido esse descontentamento e, principalmente, o cinismo de Carol.

    A noite estava só começando. 

    Mundos depois…

    Casa de Noah | Noite ainda mais adentro 

    Longe de olhares julgadores, Noah morava em uma pequena vila no sul da grande megalópole.

    Em uma pequena casa japonesa tradicional, mas com um toque chinês, lá ele morava. 

    As paredes, pintadas de um vermelho vibrante e as janelas decoradas com grades de madeira intrincadas, tinham o telhado inclinado que se curvava elegantemente para o céu.

    Dentro da casa, a atmosfera era simplória e comedida. 

    Tatames macios cobriam o chão da sala de estar, onde era possível ver a viela do lado de fora através das janelas de papel de arroz. 

    A cozinha era pequena e funcional, com alguns poucos utensílios. 

    Seu quarto, que era possível vê-lo da sala, talvez fosse o lugar mais arrumado: um santuário de paz, com uma cama confortável e uma pequena escrivaninha, onde continham anotações e diversos livros.

    Sentados ao chão em volta de uma pequena mesa no centro, Noah serviu a seus convidados chá verde, muito apressado em Shang Mu.

    O comportamento do jovem albino realmente foi inusitado, de tê-los chamado até sua humilde residência.

    Mas a dragão, gentil como sempre foi, aceitou o convite, trazendo consigo a opinião de seu time.

    Viktor degustava da bebida, assim como Carol e Milla, com Lilac já terminado.

    Noah estava logo ao centro, observando a todos. 

    Neste cenário, a dragão abriu o diálogo.

    — Porque nos trouxe até sua casa, Noah?

    — Faz muito tempo desde que alguém teve interesse em saber sobre mim… — disse, fechando seus olhos enquanto tragava um gole do chá. — Creio que devo, ao menos, oferecer um ritual do chá depois da oportunidade que me ofertou.

    — Você se refere a entrar para o time, é isso? 

    — Exatamente. 

    Carol pediu a palavra. Como sabido, ela não tinha filtros.

    — Aí, trevoso, manda a braba logo porque o tempo tá correndo e isso vai ferrar a gente pra fazer a inscrição! — ela falou, mas não sem antes mostrar sua personalidade impulsiva. — Se tu não vingar, a gente vai ficar sem tempo pra arrumar outro que preste!

    — Carol! — gritou Lilac, furiosa inclusive. — Como você ousa falar assim com o Noah bem dentro da casa dele? Você é muito sem noção!

    — Ih, qual foi? Tô pensando no time, tá? 

    — Retire o que disse agora!

    — Como é?

    As duas mediram forças, ali mesmo, sem cerimônias. 

    Mesmo com isso, Noah não se absteve. Pelo contrário.

    — Lilac, está tudo bem… — disse o albino, terminando seu chá. — Eu estou acostumado com inimizades.

    — O que? — a dragão falou, cuja curiosidade a fez continuar o diálogo. — Você é maltratado em Shang Mu?

    — Eu não costumo me enturmar muito. Além disso, minha vida se resume à biblioteca. Não tenho amigos… Não mais. 

    Seu timbre de voz trouxe um sentimento de pesar e luto. Tal comportamento foi percebido por Milla, a mais sensível. 

    — Você tinha amigos, não tinha? — disse a pequena, a continuar relutante na frente de Noah. — O que aconteceu que você não tem mais? 

    O mestiço tentou não entrar em detalhes a princípio. Por muito tempo, Noah guardou para si suas angústias e medos.

    Mas, após encontrar o time de Lilac, por alguma razão o rapaz se sentiu mais à vontade, mesmo por um breve momento.

    Sem mais rodeios, ele preparou o terreno. 

    — Eu, por muitos anos, tento desenvolver minha arte marcial.

    — Sua arte marcial…— ponderou Lilac pacientemente. — A que você usou contra mim?

    — Exato. Seu nome é Kaipasu.

    Viktor se surpreendeu com essa notícia. Em seus pensamentos as condições estavam conflituosas.

    — “Kaipasu?! Mas…Não! Eu tenho certeza absoluta que aquilo era Kyusho-jitsu! — Viktor estava confuso a princípio, mas recordou de algo que o elucidou. — Espere! Ele pode ter criado um estilo de luta baseado no Kyusho-jitsu. Nesse caso, Noah seria um lutador de MMA… talvez?”

    Durante os pensamentos do humano, Noah continuou seu relato.

    — Serei direto: quero fazer parte do seu time para desenvolver totalmente minha técnica mais poderosa. Fazer Os Três Pontos do Triângulo de Kai, meu único objetivo de vida, ser aplicado no ápice.

    Carol, ela novamente, curiosa, perguntou: 

    — Peraí! Tu tentou fazer essa bagaça contra a Lilac! 

    — Sim, de fato — Noah lhe respondeu, a fitando.

    — Tá queimando munição antes do torneio porquê, trevoso? — Carol devolveu o olhar, mostrando um pouco de tensão.

    A gata levantou uma suspeição, que ganhava força conforme Noah a olhava.

    Antes de alcançar outras proporções, Lilac se viu na obrigação de se manifestar.

    — Carol, pare — disse, segurando em uma das mãos dela. — É evidente que Noah estava lutando com tudo naquele instante. Então, hora de recuar e guardar sua energia para o torneio, está bem? 

    — Uh… Tá, diva linda… — sim, ela recuou, mas sem baixar a guarda. — “Tem coisa aí. Esse trevoso é muito trevoso…”

    Visível ceticismo. Carol não tinha boas vibrações de Noah. Seu instinto lhe moveu para algo negativo perante os fatos que colheu.

    Ela escolheu ficar calada e deixar tudo para Lilac.

    — Noah, continue… — disse a dragão, lhe dando mais espaço. — Porque você tem isso como único objetivo?

    Foi uma pergunta simples. 

    Contudo, o contexto era complexo demais para uma resposta tão breve. 

    Esse era o sentimento de Noah.

    — Para que eu explique melhor, terei de lhes contar a origem da minha sina… — ele abaixou seu olhar, com seus cabelos cobrindo parte de seu rosto. — Eu nunca antes compartilhei com alguém minha história. Mas, para conseguir meus objetivos, estou disposto a lhe entregar, Sash Lilac, o porquê da minha ambição.

    O semblante apresentado por ele era idêntico ao da biblioteca. Era uma expressão opaca, livre de alegria ou positividade; totalmente coberta de luto e dor.

    Era a angústia de um passado marcado por tragédia, um fardo que ele carregava consigo a cada passo. 

    Essa dor profunda havia se transformado em uma força motriz, impulsionando-o a buscar algo. 

    Seria vingança ou redenção? Dependendo do ângulo que se observasse, um pouco das duas?

    A sina a que se referia era, na verdade, uma cicatriz aberta em sua alma, um lembrete constante de que a felicidade era um luxo que lhe havia sido negado

    Suas marcas do tempo finalmente seriam mostradas pela primeira vez.

    O grupo não imaginava o que estava por vir.

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