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    Enfim, uma parte de Avalice, imensa e, até então, cheia de mistérios e contos de navegantes, estava para ser conhecida. 

    Essa região, tão isolada quanto suas histórias, se chamava Sami Tele.

    Ou, como era mais conhecido:

    Big Sea, o Continente das Águas

    O incrível pedaço de Avalice tomado pela água.

    Era a região mais distante e desconhecida de todo o planeta. 

    Seus países eram muitos, constituídos ou por uma grande área de terra cercada por água (uma ilha) ou um conjunto de ilhas (arquipélago), todas paradisíacas.

    Como componente de trilha, aquela área afastada e quase inóspita do planeta era banhada por dois mares convergentes.

    O primeiro mar: Esiliatunailolevaimalematagi. Ou, como todos o chamavam, Esili. Ele era o mais extenso, com águas calmas e várias faixas de terra. 

    Esse era o local mais habilitado de Big Sea.

    Claro, seu nome era impressionante e exótico o suficiente para causar estranheza.

    Por estar em uma língua local bem antiga, era uma junção de várias outras palavras.

    Separadas, seu significado era “Mais do que água e vento”. Um simbolismo ímpar do seu vitorioso povo.

    Como cidade mais conhecida, a três vezes heróica Ailart’Sua, local de guerras náuticas e terrestres em seu passado conturbado.

    Suas histórias eram lendárias, estando presente, inclusive, no vasto catálogo bibliotecário da prefeitura de Shang Mu.

    O outro mar: Malae Faavavau, o Mar das Perdições Eternas.

    Definitivamente o mar mais revolto de toda Avalice. E, também, a região de Big Sea mais misteriosa e soturna. 

    Muitos duvidavam que houvesse habitantes por lá.

    E foi nessas águas que a história prosseguiu.

    Cinco anos haviam se passado.

    Noah era um jovem mestiço de dez anos de idade nessa época.

    E foi o período de mais felicidade para o casal Hibiki: foi durante essa viagem que Noah teve sua primeira experiência em alto mar longe das águas seguras de Shuigang.

    Por quase um ano navegando por seu continente, seu pai o desafiou a ingressar em mares não navegados.

    Ele, como esperado, aceitou.

    O objetivo era simples: viajar pelo extenso continente aquático para catalogar mais da região. Um retorno breve era o plano.

    Era uma expedição, como muitas que Yvo e Rebekka já tinham anos de prática, mesmo sob a superfície do Mar das Perdições Eternas.

    Embarcados no Gerações, barco herdado de sua família há mais de 40 anos, Yvo e sua família estavam navegando pelos mares de Esili.

    Como sabido, era a estreia de Noah em mares tão abertos como os que estavam no momento.

    Não era a primeira vez longe da costa, mas em uma expedição importante sim.

    Tudo correu bem com a Família Hibiki  e a felicidade transpirava em suas vidas.

    Um pouco após deixarem o porto da elegante e espirituosa Ailart’Sua, a família Hibiki zarpou do cais, esperançosos por mais aventuras e desbravamentos.

    Na popa do Gerações, Yvo velejou seu barco quase cinquentenário, juntamente com sua esposa, que conversava a bombordo com seu filho, Noah.

    — Querido… — disse Rebekka, enquanto penteava os cabelos de seu filho. — Você está se saindo muito bem. Gostei de vê-lo falar em samoh (língua local). Sua fluência está ótima. 

    — Obrigado, mãe — Noah respondeu, enquanto olhava a cidade, aos poucos, sumir de vista. — Vamos voltar em Ailart’Sua quando terminar a expedição? Quero muito ver mais deste lugar. 

    — Vamos sim, querido…

    Após terminar a arrumação de seu filho, Rebekka olhou para o horizonte. Como a integrante mais sensível, ela esboçou um semblante que preocupou Noah.

    — Mãe, o que houve? 

    — Ah, querido… Eu, às vezes, tenho pressentimentos. Estamos indo para a Bacia de Tapua e… — ela interrompeu a sua fala.

    — Porque parou? — Noah estava mais preocupado.

    — Essa está sendo sua primeira viagem longa conosco. Já passamos por várias cidades de Big Sea… Entretanto, as águas de Malae Faavavau são perigosas.

    — Mas a senhora e o papai já estiveram aqui, me falaram várias coisas. Vocês dois tem experiência.

    — Sim, nós temos. Mas, desta vez, vamos para além mar, em um ponto mais distante e profundo daquelas águas escuras… — disse, com um olhar mais distante e tenso.

    Noah, durante esses anos que passaram, tinha um relacionamento muito estreito com seus pais.

    Mesmo que eles viajassem, quando voltavam, todo o tempo era dedicado para interagir com seu filho. Eles sempre foram pais presentes na maioria do tempo.

    Por causa disso, o nível de empatia que tinha com eles era grande.

    Tanto que, ao ver sua mãe receosa, não tardou em abraçá-la.

    Esse gesto gentil foi o suficiente para acalmar seu coração, a fazendo sorrir, assim como ele.

    Contudo, o sentimento de Rebekka não foi ignorado.

    Talvez nunca devesse ter feito essa viagem.

    Horas depois…

    Bacia de Tapua-Ginzee Aacan

    Malae Faavavau | Final da tarde

    Um mar escuro e bastante frio.

    Ondas aos montes e enraivecidas.

    O céu sempre com nuvens baixas, que dificultavam a luz do sol. 

    E uma brisa que congelava a alma.

    Esse era o Mar das Perdições Eternas.

    Era uma viagem amistosa, a princípio.

    Porém, se tornou uma epopeia maldita…?

    Indo além das fronteiras catalogadas por cartógrafos1 de toda Avalice, aquelas águas remotas não trouxeram bons agouros.

    Mesmo com a vasta experiência em mares desta natureza, Yvo Hibiki, a exemplo de sua esposa, também não tinha boas vibrações em seguir viagem. 

    Ele, controlando o timão, já havia notado algo sinistro.

    — Rebekka, acho que deveríamos voltar. 

    — Porque, querido? — perguntou Rebekka, se aproximando do panda.

    — Este mar parece mais desafiador nessa coordenada. Não há mapa para termos ciência do quão estamos imersos no desconhecido. 

    — Uh… — ela também tinha a mesma opinião. — A missão que deram foi de circundar a região chamada Le Le Iloa. Era só dar uma volta e, após isso, retornarmos para Ailart’Sua.

    — Tem algo errado… — Yvo olhou em volta. Sua percepção era de estranheza. — Já domamos Malae vezes suficientes para saber dos nossos limites.

    — O que quer dizer com isso? 

    — Que, desta vez, estamos correndo risco de ocorrer o contrário.

    Os dois estavam preocupados com o desenrolar dos eventos. 

    O céu escurecendo, com o sol travando uma batalha desigual com nuvens pesadas e carregadas.

    O vento, mais frio e incessante.

    E as ondas revoltas, como um adversário provocando o oponente.

    Não demorou muito para que Noah, com o pouco de conhecimento dos mares que tinha, dissesse o fatídico evento.

    — Uma tempestade se aproxima!

     Yvo e Rebekka correram para preparar a embarcação. Uma batalha estava prestes a ser escrita.

    Noah não tinha noção alguma da gravidade. O seu olhar, de temor e desconhecimento do que estava por vir, deixou evidente sua ignorância.

    — Noah! — gritou o panda, seu pai. — Pegue o timão e trave-o agora! Quero que você segure firme!

    O balançar do barco era como um julgamento. Yvo e Rebekka estavam na defesa. 

    O mar, o acusador.

    A vítima? 

    — Noah, segure firme, meu filho! — Yvo se esforçava para amarrar a corda da vela.

    O juiz? A natureza.

    — Vamos precisar de tudo de nós! — gritou Rebekka, ajudando seu esposo.

    Os componentes do júri? A vida. De cada um. 

    A insistência de Yvo em dizer repetidamente para Noah se segurar tinha um motivo: o jovem estava petrificado.

    Sua pelagem albina, molhada pela forte chuva que ocorrera, só deixava a cena mais dramática.

    Antes era temor, por não saber o que estava por vir. 

    Agora era terror, por ter noção do que aquilo significava.

    — “Porque isso está acontecendo?! — pensava, a refletir. — Estávamos todos bem minutos atrás… Porque a natureza está fazendo isso com a gente?”

    Yvo e Rebekka eram absurdamente ágeis no trato da proa. Sabiam manejar os mecanismos do barco com louvor.

    Porém, o mar desta vez era um obstáculo nunca jamais enfrentado com tamanha fúria, que reclamava a todo instante por seu pedaço.

    O casal, em contrapartida, lutava contra suas limitações e da herdada embarcação, calejada por tantos mares navegados.

    Yvo Hibiki usou toda sua experiência de anos de navegação, travando uma batalha terrível contra a própria natureza. 

    Mas, mesmo a perícia formidável do panda e de sua esposa panda vermelha, não estava sendo o suficiente para evitar o pior. 

    O barco balançava, prestes a decretar um dos lados como culpado ou inocente.

    Implacável e imponente, o mar golpeava com força o casco da embarcação, como se estivesse os acusando.

    Sob o olhar da natureza, o fenômeno climático abrupto tinha mais evidências e acusações.

    O casal tinha um ao outro. 

    E Noah.

    A luta continuou, com pesar nos olhares dos defensores.

    A batalha estava quase no fim. 

    O acusador era indócil.

    E o juiz tinha escolhido ouvir seu júri.

    Por um breve momento, Yvo e Rebekka trocaram olhares, impactados com a sua total e completa insignificância no meio daquele pandemônio.

    Ambos já sabiam o resultado do julgamento maldito.

    Temendo por isso, com todos ao convés, Rebekka correu até Noah, o abraçando com força. 

    Com a mesma força, ela disse:

    — Noah, meu filho… Eu sei que você está com medo, que não está entendendo nada, mas… Essa é a natureza. Nunca guarde rancor dela! — ela manteve o seu abraço, talvez ainda mais forte.

    — Mãe, eu… — seu olhar atônito disse por si só sua inoperância quanto ao momento caótico.

    — Eu vou sempre estar ao seu lado, Noah… E seu pai também…

    Isso ocorreu segundos antes do evento crucial.

    Uma enorme onda se formou em bombordo.

    Aquele era o martelo do juiz.

    E ele recebeu o resultado de seu júri.

    Sem metáforas dessa vez, a cena era aterrorizante. 

    Uma onda de mais de vinte metros se formou no meio do Mar das Perdições Eternas, fazendo jus à alcunha do oceano escuro de Big Sea.

    Yvo tinha noção exata que não sairiam dali vivos e, como último suspiro, se aproximou de sua esposa, beijando-a. 

    — Eu sempre vou te amar, Rebekka. Seja nessa vida ou na outra.

    — Yvo… eu te amo! Eu sempre estarei ao seu lado, como sempre estive!

    O casal, unido, foi até seu filho. 

    Noah recebeu deles um forte abraço, talvez o último deles juntos…

    E vivos.

    — Noah… Eu o amo, meu filho… — disse Yvo, sorrindo. 

    — Pai… — Noah tinha percebido o que aquilo significava, começando a chorar. — Porque? Porque ela está fazendo isso? 

    Sua mãe fez o mesmo, lhe dizendo: 

    — Sempre estaremos com você… Não se preocupe… — ela também sorriu, do mesmo jeito de antes. — Você é forte e corajoso…

    Ele sabia exatamente o que aquilo significava. A redundância não era à toa.

    Contudo, mesmo diante do fim iminente, fenômenos ocorreram durante o suplício que se atormentava.

    Foi nesse instante que Yvo, nutrido com suas últimas forças, falou:

    — Eu só tenho esse momento e… eu… — disse, com seu corpo ficando levemente iluminado. — Te dou todo meu conhecimento!

    Um brilho emanou das mãos calejadas do panda, onde Noah se viu coberto por uma energia. 

    Sua aura era tão branca quanto sua pelagem.

    Naquele momento, o jovem híbrido recebeu uma infindável gama de informações tanto quanto um computador.

    Flashes de vidas passadas, de gerações muito antes da sua, a do seu pai, do seu avô, do seu bisavô…

    Aquilo era o último lapso de Nirvana de seu pai. 

    Uma dádiva, sua habilidade especial suprema, que ele fez questão de bradar:

    — Ahh! Técnica suprema da família Hibiki: Herança Eterna!

    Ali mesmo, imóvel, Noah conheceu o mundo sob a ótica de todos os seus predecessores.

    Eras de guerras e de apreensão, todas eram vivas na sua mente como uma tela.

    E, o principal: a herança que seu pai lhe deu foi tão intensa que Noah pode ver todos os lugares onde seu pai passou, pessoas que conheceu.

    Tudo estava lá. 

    — Seu bisavô era um Psino, Noah… — disse Yvo, olhando para seu filho. — Assim como eu. 

    — Papai…

    — Cumpri minha promessa de passar o legado para a nova geração. — o panda o abraçou novamente. — É você, meu filho. 

    Seu pai lhe deu toda sua vivência, como um ato de amor. 

    Ele sabia que seu filho não sairia dali vivo e, assim, durante alguns segundos, Noah conheceu o mundo. 

    Ele viveu Avalice.

    Noah a sentiu.

    Isso permitiu que visse o mundo. 

    Pela última vez…?

    Enfim, o esperado veredito ocorreu: o martelo do juiz golpeou o palanque.

    Segundos depois, o choque ao barco pela onda ocorreu, fazendo com que a pequena embarcação sumisse em meio aquele mar revolto. 

    A força da natureza era tremenda.

    Seu julgamento foi breve e fatal.

    Esse foi o fim da família Hibiki.

    Vidas ceifadas por um ocorrido do acaso, longe de casa e de qualquer continente. 

    Ninguém encontraria vestígio nenhum. 

    Aquele dilúvio no meio do nada durou por mais alguns minutos. 

    Malae Faavavau, o Mar das Perdições Eternas, honrou sua infame nomenclatura.

    Aos poucos, uma clareia ocorreu nas nuvens. 

    Aquele oceano, brabo e inquieto, se acalmava

    Mas, mesmo sem estar irritadiço, manteve seu teor hostil e soturno.

    Águas escuras e frias, repletas de aventureiros perdidos.

    Eternamente.

    Entretanto, longe dali, um milagre ocorreu.

    Em uma praia, horas depois do ocorrido fatal, deitado e desacordado sobre uma faixa costeira de areia em uma ilha, lá estava Noah.

    E somente ele.

    O bater de ondas contra a costa agiu como um reclamar por espólios de Malae Faavavau que, sem sucesso, causou efeito contrário. 

    Noah lentamente abriu seus olhos, observando, ao fundo, uma silhueta antropomórfica.

    Era possível ver um grande felino, trajando uma roupa de monge, o resgatou da morte iminente, já que estava muito fraco. 

    Por estar muito fraco, o jovem Noah voltou a desmaiar, deixando claro para o estranho que a luta que travou foi verdadeiramente:

    — Impressionante.

    Suas palavras antecederam sua ação, um ato deveras nobre: ele escolheu o jovem albino com todo o cuidado. 

    Talvez o mais próximo que seu pai faria por ele. 

    — Você terá um futuro, jovem rapaz. Kai proverá.

    Ele o levou para entre árvores de uma densa floresta.

    O que mais virá?

    E quem é o seu salvador?

    A história de Noah ainda não acabou. 

    Talvez nem esteja na metade.

    1. nota: é o profissional que faz mapas de mares. O cartógrafo é responsável por elaborar mapas geográficos, incluindo os mapas de mares.[]

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