Índice de Capítulo

    O imponderável é o que nos surpreende, moldando o destino sem aviso.

    Trata-se de eventos, escolhas ou circunstâncias que surgem inesperadamente, alterando o curso das coisas.

    Essa força invisível nos lembra de nossa vulnerabilidade e de que, por mais que planeje ou tente antecipar o futuro, sempre haverá fatores fora de nossa compreensão ou influência.

    O imprevisível molda nosso destino ao criar oportunidades ou obstáculos inesperados, muitas vezes transformando nossa trajetória de maneira profunda e irreversível.

    Esse era o cerne da situação.

    O evento terrível passado trouxe mudanças drásticas.

    O futuro era incerto.

    Horas depois, em algum lugar do Malae Faavavau…

    Seus olhos lutavam para se abrirem.

    O peso das pálpebras, junto com a luz penetrante, eram obstáculos ferozes contra suas biologia.

    Era Noah.

    Sua milagrosa salvação do incidente terrível e fatal ainda não era uma realidade em sua mente conturbada.

    Noah não tinha ideia de que estava vivo. O imponderável, sempre implacável, havia moldado seu destino mais uma vez.

    Após um longo período batalhando contra sua fraqueza física, enfim seus olhos esmeralda encontraram maior nitidez e força para se manterem assim.

    Foi nesse momento que ele viu três pessoas à sua frente.

    Uma delas, mais próxima, era um suposto felino de pelagem branca. Ele estava vestido com uma calça cáqui e um blusão branco, que pareciam um tipo de uniforme religioso.

    Seus olhos magenta eram bastante brilhantes.

    O gato, esboçando um sorriso, disse:

    — Por Kai, você acordou!

    Ele ajudou Noah a se sentar na cama, estendendo uma de suas mãos. O albino aceitou a gentileza, mas lhe fez uma pergunta esperada.

    — O-onde eu e-estou? — disse, mostrando fraqueza no tom.

    — Está na enfermaria de Melanmarii, nossa aldeia tão querida — disse o tal felino branco, sorridente.

    Lentamente, Noah levantava com dificuldades, sendo ajudado pelos outros dois indivíduos, caninos que trajavam mantos azuis.

    Ainda cambaleante, o albino caminhou até o exterior da construção rústica, com escasso mobiliário ao longo de seus corredores e paredes de madeira sendo a base do lugar.

    Noah ignorou os detalhes por onde caminhava com dificuldades, sendo seguido pelos três.

    No lado de fora, ele viu uma aldeia costeira familiar a sua: casebres simples, feitos de madeira.

    Ao mesmo tempo, suas aptidões sensoriais praticamente despertaram, de uma só vez: seus ouvidos captaram cada ranger do piso amadeirado com tacos, assim como ouviu sons da fauna local.

    Em seguida, sentiu uma fraca brisa em seu rosto, como um convite, já que aromas sortidos ocorreram em suas narinas, deixando claro que não era um lugar de poucos habitantes.

    Ao sair, o calor do sol revitalizou seu corpo e alma fragilizados.

    Os habitantes, todos eles, estavam à frente do recinto onde Noah saiu. Parecia que estavam esperando por notícias do misterioso náufrago.

    De espécies variadas, desde dingo (um tipo de canino) e até mesmo raposa voadora (morcego australiano), a população local olhava, curiosa, a aparição inesperada de Noah.

    Todos estavam vislumbrados pelo exótico viajante.

    E, a exemplo deles, Noah também olhava-os com curiosidade.

    Entretanto, ao olhar para o céu limpo e claro, cenário totalmente diferente que viu outrora, lhe fez indagar:

    — Onde estão meus pais? — a pergunta foi feita para todos, com o jovem olhando para todos os lados. — Onde eles estão? Cadê meus pais?

    Noah recebeu em sua mente, ainda bagunçada, vários flashes de um passado adorado e repleto de amor e carinho de seus pais. Passeios na enseada de Marin D’alvy com sua mãe, ou cantarolar a luz da alvorada com seu pai…

    Imagens que lhe trouxeram conforto mas, de certa forma, um mal agouro pelo ocorrido fatal.

    Todos olhavam para ele, alguns já deixando claro a terrível resposta.

    Ela veio, mas do enigmático felino branco.

    — Malae Faavavau foi implacável, mais uma vez.

    Noah se virou, olhando para o tal. Ele, novamente, perguntou:

    — Onde estão meus pais?

    — Eles agora brilham entre as estrelas — disse, colocando uma de suas mãos sobre o alto da cabeça do albino. — Eles estarão observando sua jornada.

    O rapaz, nutrido por um grau de resiliência absurdo, conseguiu absorver exatamente o teor das palavras confortantes do felino.

    Noah, neste momento, teve noção exata do que havia acontecido: seus pais estavam mortos.

    Lágrimas surgiram de seus olhos esmeraldas, escorrendo pela sua face. Mas, em contrapartida, seu semblante se manteve inabalável.

    Era uma dualidade de emoções: era visível uma tristeza angustiante mediante suas lágrimas, ao mesmo tempo que seu rosto inexpressivo deixava claro sua serenidade.

    A dor e a força de vontade eram bases fortíssimas em seu estado mental.

    Aquele dueto, espontâneo e exótico, deixou o gato branco ainda mais entusiasmado.

    — Você é especial, jovem… — disse, ainda com o mesmo sorriso no rosto. — Qual o seu nome?

    — Me chamo Noah Hibiki — ele respondeu, sem desviar o olhar.

    — Noah Hibiki… — ele disse, redundante, para que todos soubessem. — Dêem as boas vindas para o nosso mais novo habitante da benfeitora Big Sea Island!

    Todos correram até Noah, o felicitando e o apoiando de forma tão gentil e fraterna que fez cessar suas lágrimas.

    O gato, sempre com um sorriso no rosto, fez as honras e, enfim, se identificou.

    — Me chamo Marduk, Noah — falou, enquanto observava a todos o abraçá-lo. — Eu sou o zurkan do Lugar do Caminho da Folha do Vulcão e líder da Aldeia Melanmarii, seu novo lar.

    Após as palavras de Marduk, Noah ficou surpreso com o fato.

    E bastou olhar um pouco melhor para trás do casarão amadeirado de onde saiu: havia mesmo um monte bastante elevado.

    Mas não era um monte.

    Era mesmo um vulcão, ativo e caloroso.

    Todavia, seu vislumbre durou alguns segundos, já que ainda era bem recebido pelos aldeões, que da mesma forma em sua querida vila.

    Naquele instante, sua ferida recebeu um importante curativo, mas que ainda inspirava cuidados.

    Embora fragilizado e ciente da sua perda, o mestiço estava lidando com muita maturidade a oportunidade que lhe foi dada.

    Longe do Noah sorridente e alegre de antes, ele se manteve forte.

    Contudo, mesmo recebendo frases de incentivo e de apoio, nada disso apagou seu estado de luto.

    Horas depois…

    Abrigado novamente na suposta área clínica onde foi aleitado, Noah recebeu o convite do felino branco que o resgatou.

    O local, iluminado por velas, era bem simples.

    Os dois, à frente de um painel, com explicações e gravuras desenhadas a mão, observavam um mapa de Big Sea Island.

    Uma breve conversa ocorreu.

    — Noah, está é Big Sea Island… — disse Marduk.

    — Uma ilha no meio do Oceano das Lamentações Eternas? — falou o albino, olhando para o gato. — Este lugar é amaldiçoado.

    Noah não demonstrou cuidado algum nas palavras.

    Não era para menos, já que tinha acabado de perder seus pais.

    Marduk, olhando com um pouco de temeridade, o retrucou.

    — Big Sea Island é um lugar abençoado por Kai, jovem Noah.

    — Do que está falando? Quem é Kai?

    Sua curiosidade gerou muito entusiasmo no zurkan. Com um ar de satisfação, o felino branco expôs sua opinião.

    — Todos desta vila oram todos os dias pelo nosso protetor. Kai nos entrega a luz, o conhecimento e a vida. Sua palavra rege nosso existir, dá um sentido a todos nós.

    Ele caminhou até um altar onde quatro velas forneciam iluminação. Por lá, ele continuou:

    — Big Sea Island é o epicentro de sua palavra. Por isso, enquanto estivermos aqui, receberemos em dobro nossa devoção a sua palavra.

    Levantando uma das mãos em frente ao seu rosto, Marduk recitou uma fala, executada com muito clamor.

    — Kai é o caminho. O Caminho de Kai é a salvação.

    Era explícito para Noah que Marduk era mais que um líder da aldeia. Mesmo muito jovem (ele tinha 10 anos), sua sagacidade de entender certas coisas chegava instantaneamente.

    Noah desviou o olhar do mapa, cerrando os punhos. Sua voz, baixa e cortante, era um reflexo da dor que ele ainda não conseguia esconder.

    Ele ainda era uma criança e, naturalmente, teve um comportamento como tal.

    — Eu quero voltar para minha casa.

    — Voltar? — o zurkan, relutante, falou. — Nenhum de nós tem essa opção, jovem Noah.

    — E porque não?

    Marduk, reflexivo, ergueu o olhar para o altar iluminado pelas velas.

    — “Kai nos deu este lar, Noah — disse, continuando. — Sair daqui não é tão simples quanto parece.

    O olhar fixo de Noah, olhos nos olhos com o zurkan, deixou claro ali um conflito breve de posições.

    O mestiço cruzou os braços, os olhos fixos no mapa, enquanto o tom de sua voz carregava amargura.

    — Meu pai sempre dizia: “Se não te deixam sair, então é uma prisão.”

    — Jovem Noah, você está interpretando mal minhas palavras. Aqui não é uma prisão, é um refúgio.

    — Refúgio? Para mim, é uma prisão! — disse, em um tom mais explosivo. — Eu só quero voltar para casa!

    — Creio que isso não será possível, jovem.

    — E porquê? Me diga!

    Na defensiva, Marduk virou uma das páginas do mural, evidenciando uma região muito mais ampla do continente de Big Sea.

    Existiam áreas não nominadas e ditas como “onde o mal habita e impera”.

    Embora para alguns dos aldeões pudesse parecer um aviso, para Noah, pelo conhecimento herdado de seu pai durante o fatídico acidente, em sua mente a verdade era outra.

    — “Eu conheço essas águas. Mas… Como eu sei disso?!” — suas dúvidas foram marcadas pelo seu desconhecimento da herança recebida. — “E porque ele marcou essas áreas como um lugar onde o mal está?”

    — O Malae Faavavau é implacável contra seus opositores. Kai o irrita, o deixa insano e perturbado, por não possuir a luz. Aquelas águas não escondem nada que já não tenhamos aqui.

    — Eu não concordo — Noah o encarou, sem demonstrar medo. — Minha casa fica lá longe, para onde eu quero voltar!

    — Jovem Noah… — a voz carregada de Marduk mostrou decepção. — É difícil lidar com esses assuntos…

    Uma discussão mais ampla estava por vir, caso a conversa continuasse.

    Noah tinha noção de que clareza não era um ponto muito desenvolvido na conversa, com Marduk buscando mostrar as dificuldades de um meio hostil e implacável.

    Se ambos fossem por esse caminho, o conflito seria inevitável.

    Contudo, ele foi interrompido.

    Ambos se viraram para ver uma jovem canina entrando com um sorriso.

    Contrastando com o tom dramático que se encontrava, o olhar de Noah suavizou por um momento, surpreso com a energia contagiante da garota.

    Uma voz doce e amigável pediu licença.

    — Ah, líder Marduk, líder Marduk!

    Isso chamou a atenção dos dois, principalmente de Noah, que olhou sem pestanejar.

    Feito isso, pôde ver uma linda canina, que possuía pelagem castanha e cabelos loiros curtos, em um corte estiloso. Além disso, tinha olhos azuis.

    Mas, como expoente mais marcante, a canina tinha na sua testa uma pelagem em formato de ondas, três delas.

    Era uma característica natural.

    Além disso, ela trajava sapatilhas azuis, calça de pano cinza e uma blusa regata preta, em uma combinação muito agradável.

    Ela era tão jovem quanto Noah.

    O albino ficou impressionado com sua aparição, não lhe tirando os olhos.

    Claro, o diálogo ocorreu com o zurkan.

    — Jovem Ingrid, a que devo sua repentina presença?

    — Hehe… É que todos já estão no Lugar do Caminho da Folha do Vulcão esperando pelo senhor!

    — Nossa, o tempo realmente é um percalço… — disse, fechando o mural. — Devo mesmo ir rapidamente.

    — Isso! — disse a canina, saltitante.

    Mas, ao perceber que estava sendo observada por Noah, ela não ficou calada.

    — Ah, você é o novato, não é?

    — Hã? Novato?! — Noah se surpreendeu.

    — É, ué! Você também tem que ir para o templo, novato!

    — E porque eu deveria ir? — ele estava com um tom de voz que transpirava ceticismo.

    Nesse meio da conversa, novamente o recinto recebeu mais uma visita.

    — Todos nós temos que ficar mais fortes!

    Essa voz, vindo da entrada, trouxe ainda mais curiosidade a Noah: ela uma canina que, a exemplo de Ingrid, tinha sua mesma pelagem, de cor castanho, e também cabelos loiros com um corte curto, mas com mechas presas por uma tiara.

    Entretanto, sua característica física mais marcante e bela estavam em seus olhos: ela era heterocromática1

    Seus olhos eram algo exótico, de valor ímpar: um era de cor cinza e o outro amarelo.

    Sua juventude era similar a de Ingrid.

    Trajada com as mesmas vestimentas da outra canina, ela caminhou até próximo dos dois.

    Durante seu percurso, Noah ficou impressionado com sua beleza única.

    Ele deixou isso bem claro.

    — Minha nossa… — o albino foi ao encontro dela, a olhando nos olhos. — Seus olhos são lindos!

    — Ah?! Ah… B-bem… — Iris desviou o olhar por um momento, tocando a tiara em seu cabelo. — Obrigada. Sabe, muitos dizem isso pra mim todo dia. Mas, vindo de um novato, isso tem um significado maior, hehe.

    E ainda aproveitou para fazer o mesmo: ela o olhou de cima para baixo, principalmente para seu rosto.

    Um sorriso tímido brotou em seu rosto, mas logo ela o disfarçou com uma risada.

    — Você não é tão ruim, novato.

    — Ah, eu… — ele ficou envergonhado, recuando um pouco.

    Marduk fez as honras das apresentações.

    — Noah, essa é Iris, a zeuk do Lugar do Caminho da Folha do Vulcão.

    — Zeuk? O que é isso? — perguntou o mestiço.

    Iris, sem cerimônias, levou seu dedo indicador até o nariz de Noah, que arregalou seus olhos, pego de surpresa.

    — Eu sou a melhor lutadora d’O Caminho de Kai.

    — O que?! Lu-lutadora?! — ele estava ainda mais surpreso com a notícia.

    Esse aspecto despertou uma curiosidade impressionante em Noah.

    Desde que chegou na Aldeia Melanmarii, ele nunca demonstrou abertamente tal sentimento, que não passou despercebido por Marduk.

    — Hum… Ingrid, Iris, que tal conduzirem Noah para o Lugar do Caminho da Folha do Vulcão? Tenho certeza de que ele vai gostar muito.

    — Hã? Como é? — o albino, confuso, olhou para o zurkan de forma inocente.

    No meio das duas garotas, Noah teve duas mãos seguradas por causa uma delas que, sorridentes, o puxaram carinhosamente.

    Como combinado, elas o conduziram.

    — Hã? Para onde estão me levando?! — ele estava relutante, mas era só aparência.

    — Ei, calma! — disse Ingrid, sempre a mais sorridente. — Está tudo bem. Você vai gostar de lá!

    — Isso mesmo — desta vez era Iris, falando em seu ouvido em seguida. — Sabia que você é muito parecido com o zurkan? Todo mundo já notou isso!

    — O que?!

    As duas caninas davam bastante risadas enquanto levavam o mais novo habitante da ilha até o local citado.

    Noah, mesmo nesse momento de pura descontração, manteve o seu semblante neutro. Por um breve instante, um pouco dele transpareceu.

    Embora as risadas das caninas preenchessem o caminho, o coração de Noah ainda estava pesado.

    Ele sabia que o ‘Lugar do Caminho da Folha do Vulcão’ seria apenas o início de algo maior.

    E, talvez, o verdadeiro teste de sua força.

    1. nota: heterocromáticos são pessoas que têm olhos de cores diferentes. A heterocromia é uma condição rara e única.[]

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