Capítulo 68 - Mar de revolta (Parte 5): raiva
Big Sea Island
Vila Aldeia Melanmarii
Lugar do Caminho da Folha do Vulcão
Salão Central | Final da manhã
Marduk teve a incumbência de pôr Noah frente a frente da discípula da doutrina do Kaipasu mais habilidosa da vila.
Embora o fato tenha impactado o jovem, os demais praticantes estavam ansiosos, dado os inúmeros louvores a Kai pelo zurkan entusiasmado.
De modo que foi contagiante a emoção, tocando a todos que lá estavam.
Noah, contra sua vontade, caminhou para o centro do local de treinamento, com Íris, que mostrava um semblante sério e paciente, estava aguardando pelo início.
Ela não desviou o olhar de Noah um instante sequer.
Por isso, o albino refletiu internamente.
— “Porque devo lutar? Qual a necessidade disso tudo?!” — ele pensou, mostrando relutância, a mesma de antes. — “E porque ela tá me olhando assim? Não, isso não está certo…”
Com um de seus punhos à frente, os olhos heterocromáticos da canina viram o mestiço tentar novamente sair do lugar, como se estivesse se retirando do centro.
Mas, antes de tal ato, ela interveio.
— Você vai desistir tão cedo? — falou, em um tom provocativo.
— Não estou desistindo de nada! — Noah claramente estava incomodado. — Eu só não quero lutar.
— Você se saiu muito bem contra Ingrid… — ela voltou a provocá-lo com sua voz jovial. — Kai está te chamando, tenho certeza!
Isso causou curiosidade a Noah, mas não o suficiente para que mudasse de ideia.
Pelo contrário.
— Vocês falam muito de Kai… — ele parou seu caminhar, olhando para ela. — Porque tudo isso? Porque rezam e, do nada, praticam artes marciais? Porque, hein?
Marduk, sorrindo, tomou sua posição no centro. Seu objetivo era muito claro, denunciado em suas palavras cheias de fervor.
— Artes marciais necessitam de concentração, disciplina, devoção e, principalmente, de muita fé… — ele deixou vago, tomando ar para continuar. — Kai presenteia a todos que treinam duro para construir um futuro cheio de dádivas e milagres!
Todos os discípulos ficaram animados com o que ouviram, levantando seus braços e comemorando.
Noah olhou para aquilo e ficou com ainda mais dúvidas.
— “Porque estão fazendo isso? Nunca pensei que artes marciais tivessem esse tipo de coisa — ele refletiu ainda mais em sua mente.
As lembranças de Noah vieram à tona.
— “O senhor Zhong Shu me disse uma vez que muitos lutadores tinham que ser fortes, mas nada disso aí parece o mesmo.”
Se aproximando do jovem, Marduk, insistentemente, passou a tentar convencê-lo.
— Jovem Noah, não estou o obrigando que continue. Porém, como já deve ter percebido, estamos diante de uma dádiva cedida por Kai. Você é o simbolismo encarnado da grandeza da palavra do caminho de Kai!
— Senhor Marduk, eu não sei se quero continuar. Tudo isso é muito estranho pra mim… — Noah desviou o olhar, ficando ainda mais evidente seu desconforto.
Mas o gato branco nunca iria desistir de sua gama. Ele continuou:
— Você mostrou desenvoltura agora a pouco. Kai lhe guiou e, junto a ele, vai trilhar um caminho cheio de sucessos! — o zurkan o reverenciou, em sinal de respeito.
Noah era o centro das atenções.
Mesmo Íris tendo o título de zeuk, não era um obstáculo para a fé de todos os discípulos do Kaipasu, que olhavam orgulhosos.
Diante esse cenário, o mestiço mostrou seu ponto de vista, sem filtros:
— Acho que isso tudo que eu fiz não tem a ver com esse tal Kai.
Enquanto os demais praticantes continuavam com sua algazarra, Marduk reagiu timidamente ao relato de Noah, franzindo sua testa em sinal de desavença.
Isso também os contagiou, trazendo um silêncio repentino.
Até mesmo Íris se sentiu impactada, mas com um sentimento maior de surpresa.
— “Ele ainda não conhece Kai, não sabe quanto o Caminho o faria crescer mais e mais…” — pensou a canina, um pouco incomodada com o que ouviu.
Sua fé, inabalável, trouxe uma responsabilidade maior, desta vez em sua mente:
— “Kai, o perdoe. Eu prometo que farei seguir seu caminho! Nem que eu tenha que ser dura com ele de leve…”
O zurkan, pressionando Noah, manteve seu discurso.
— Sua falta de fé em Kai é justificável, jovem Noah. Por isso mesmo que você deve lutar contra nossa zeuk — disse, olhando para Noah.
— Eu não quero fazer parte disso e o senhor sabe muito bem! — falou o mestiço, dando as costas a Marduk e caminhando para fora do centro.
Marduk, sorrindo, abaixou levemente sua cabeça, como um código só percebido por Iris. Ingrid, até então quieta, percebeu o gesto, mas não o significado.
Entretanto, a canina de olhos bicolores, decodificando o recado recebido pelo zurkan, não deixaria Noah prosseguir com essa ideia: ela gritou para que fosse ouvida.
— Então é assim? Você não quer saber nem por que tudo aconteceu?
Mesmo tão jovem, Íris tentou mexer com Noah. Mas ele, jovial tanto quanto, não tinha vontade de se expor dessa forma.
A canina, se vendo incapaz de maturar um discurso com palavras fortes o suficiente para convencê-lo, mordeu o lábio de baixo, se mostrando frustrada.
Mas, dentro do que podia se esperar, a jovem falou algo mais forte e intrusivo, talvez imprudente.
— Então eles morreram por nada?
Direta ao ponto, sem rodeios.
Foi ao extremo.
— “Porque eu disse isso?! Kai não aprovaria isso…” — uma tremenda sensação de culpa caiu como uma rocha em sua mente. — “O senhor Marduk acenou para que eu o incentivasse a lutar e eu não queria falhar…”
Ela o incentivou, mas da pior forma.
Noah reagiu imediatamente: ele voltou sua fronte para a jovem, que não desviou o olhar e manteve a provocação.
Por um breve momento, Noah pareceu se segurar, porém era quase impossível manter o controle por muito mais tempo.
— “Isso que ele disse não pode ficar assim! Quem ela pensa que é pra falar isso pra mim?”
E veio assim, sem mais nem menos, sua mudança abrupta, de alguém calmo e gentil para um estado mais voltado para o caos e raiva.
Essa reação, de estar irritado, foi sua primeira experiência. Nunca antes Noah teve raiva de alguém.
Junto a esse acontecimento, os observadores, todos discípulos do Kaipasu, olhavam, chocados, as palavras ditas por ela.
Íris sabia exatamente como provocar, mas nem ela estava certa de que havia ido longe demais
Em seus pensamentos, ela tinha percebido que linhas foram cruzadas.
— “Droga… eu exagerei?!”
Ele, sem esmorecer, estava com seu rosto mais fechado, irritadiço por assim dizer. Noah voltou para o centro, mas diferente de quando entrou.
— O que você disse aí? — perguntou, direcionado a Íris, deixando visível seu descontentamento.
A menina, preocupada com o que fez, pensou:
— “Acho melhor eu falar algo pra tirar essa raiva dele…”
Ela tentou fazer isso, mas:
— Oh, nossa! Você é um garoto corajoso, além de bonito! — ela parecia fazer questão de provocá-lo com mais afinco. — Por um minuto pensei que…
— CALE A BOCA! — ele cerrou seus punhos ao mesmo tempo que gritou com toda a raiva que estava sentindo.
Sim, Noah a interrompeu.
Mas não só com seu grito de fúria: ele executou um inesperado movimento partindo de cima para baixo, após um salto.
O golpe, cheio de força, visou o dorso de Íris, que desviou no último instante.
— “Porque estou assim? Algo dentro de mim tá me mandando fazer ela calar a boca, mas…” — sua primeira sensação furiosa deixou sua mente confusa. — “Eu… Eu não gosto disso, não mesmo! Só que isso não posso deixar parar… Não mesmo!”
O albino, perdido momentaneamente em fúria, não atacou como algo planejado, atabalhoado na execução, como um ato involuntário.
— “Nossa… Ele quase me atingiu!” — disse a canina, recuando um pouco seu eixo. — “Se ele não fosse um novato iria me acertar…”
Respirando ofegante, mas com muita irritação estampada em seu rosto, Noah se virou pra ela e disse:
— Nunca mais fale deles… Você ouviu? Nunca mais! — seu punho levantado em direção a canina mostrou ainda mais seu estado de espírito.
Mais uma vez Noah provou do sentimento de raiva, mas com viés em maior quantidade, sob os olhares surpresos de todos, inclusive de Íris.
O impacto das palavras dela ainda ecoava no centro de treinamento.
Noah cerrava os dois punhos agora, e sua respiração estava acelerada. Por um momento, pareceu hesitar, mas então deu um passo à frente.
— “Tô me movendo assim, sem saber o que tá acontecendo…” — a fúria o dominava a cada segundo, em uma conduta quase involuntária de sua força interna.
Íris, que havia provocado sem medir as consequências, manteve-se firme, mas agora com uma sombra de incerteza nos olhos bicolores.
— Muito bem… — a voz de Marduk quebrou o silêncio, mas sem roubar o momento. — Se quer tanto lutar, lute como se Kai estivesse te guiando!
Noah não precisou de mais nada. Ele já estava avançando antes mesmo que o anúncio fosse finalizado.
Os demais voltaram aos louvores por Kai, deixando Noah ainda mais irritado.
Era até possível ver os caninos do albino à mostra, destilando mais e mais seu cólera, enraivecido.
Por fim, o esperado aconteceu: o albino, frente a frente com Íris, ficou em base de luta, decidido a realizar o tão promovido embate.
A exemplo do jovem, ela também se postou para o início do duelo.
— Muito bem… — falou Marduk, levando uma de suas mãos a frente. — Será uma luta utilizando dos golpes aprendidos hoje. Lutem!
Segundos antes do anúncio, Noah já estava indo em direção a Íris, que se mostrou surpresa com a audácia do iniciante.
Como Marduk disse, o mestiço usou dos mesmos golpes que praticava com Ingrid, só que desta vez com fúria.
Excetuando pequenos saltos para trás e laterais, a canina se esquivava mostrando toda sua desenvoltura como zeuk, título que tinha com orgulho.
Contudo, os ataques ferozes de Noah tinham um quê a mais, além de simplesmente um duelo.
Suas mãos, que nunca haviam buscado machucar alguém, desta vez cortavam o ar indomáveis, realizando ruídos conforme eram desferidos.
Seu rosto, que nunca havia mostrado qualquer desagrado odioso, agora tinha estampado o maldito sentimento.
— “Ele está muito irritado. Eu fiz besteira…?” — pensava Íris, com o sentimento de culpa a remoendo.
Diante desse dilema, a jovem manteve o controle de seus movimentos enquanto evitava os golpes do albino.
Sua irritação, somado com sua pouca, ou quase nenhuma, experiência o deixou desprotegido: Noah sequer teve tempo de se defender do golpe direto de Íris, que o atingiu em seu braço direito.
Com isso, o movimento arrojado trouxe reação imediata, fazendo com que seu braço paralisasse totalmente, ficando inanimado.
Seu membro superior caiu inerte ao lado do corpo. Ele tentou movê-lo, mas nada aconteceu. Um frio percorreu sua espinha
— O que você fez com meu braço?! — disse, mostrando curiosidade e, também, um pouco de temor em seu rosto pálido.
— Foi paralisado, novato. — falou Íris, lhe mostrando a ponta de seu dedo da mão esquerda. — Meu melhor golpe: Agulhas Cintilantes de Kai1.
— O que?! — Noah olhou em sua direção, ainda dominado pela fúria. — Eu vou te fazer calar a boca por causa disso também!
Mesmo com seu braço paralisado, Noah investiu novamente contra a jovem.
Seus golpes, usando a onda dos dedos, como aprendeu com Ingrid, eram a única coisa que conseguia aplicar mais próximo do que um lutador do Kaipasu podia mostrar.
Todavia, isso era muito pouco para ser utilizado contra uma artista marcial prodígio, papel que Iris executava com louvor.
Impactado pela raiva, Noah não sabia lidar com sua frustração, a atacando sem um planejamento ou foco, a não ser tentar atingi-la para, por consequência de seus atos desesperados, a calar.
— “Essa sensação tá me sufocando!” — seu incômodo se tornou insuportável. — “Eu tenho que fazer essa menina calar a boca por tudo que disse deles!”
Sua força de vontade era admirada pelos demais que observavam ao duelo, mas todos sabiam o tamanho do desafio que Noah estava lidando.
“Ele não tem noção do que Iris pode fazer!”
“O novato está cego. Não sabe que nossa zeuk é a melhor entre as melhores!”
“Ninguém do Lugar do Caminho da Folha do Vulcão a derrotou e não será hoje!”
Essas eram algumas das conversas nos burburinhos entre os adeptos do Kaipasu que assistiam ao embate.
E um pensamento paralelo a todos davam o sinal:
— “Ele vai perder…”
Era Ingrid, com um pouco de aflição em sua mente.
— “Íris pode parecer doce, mas lutando é imbatível! Noah não sabe de nada!” — pensava, preocupada com o desenrolar do duelo. — “Não machuca ele, por favor!”
Voltando à luta…
Cansado e bastante frustrado, Noah ainda mostrava seus dentes, os rangendo em sinal de que sua fúria não havia se extinguido.
No outro lado, Íris mostrava segurança e confiança, em uma postura madura para alguém de sua idade.
— “Melhor acabar logo com essa luta” — disse, tomando uma posição mais ofensiva. — “Kai não vai gostar que eu fique fazendo pouco dele…”
Como planejado, ela explanou.
— Para um novato, você mostrou muito. Só que eu agora vou atacar para te mostrar o quanto Kai é o caminho!
A definição de “aguardar o próximo passo” não era um cerne para Noah. Ele simplesmente ignorou as palavras dela, antecedendo em segundos até que ela terminasse de falar.
Poucos passos, fortes e firmes ao solo nobre do salão central de treinamento, foram executados até que Noah estivesse a poucos centímetros de Íris, que observava os movimentos do albino com uma precisão cirúrgica.
Ele, como único subterfúgio, a atacou do mesmo jeito que antes, deixando fortes brechas em sua base e forma.
— “Dorso aberto, mãos baixas, perna à frente, braços expostos…” — a análise da canina foi rápida, se movendo para um dos lados antes de ser atingida.
Noah, ainda golpeado, viu seu ataque ser em vão, a observando ao seu lado.
Totalmente desguarnecido, Íris não perdeu tempo para um contra-ataque: ela concentrou uma gama de energia em suas mãos, dizendo:
— As Duas Palmas do Monge de Kai2.
A suavidade de sua voz era um contraste com a intensidade do golpe que desferiu contra Noah: com uma das palmas atingiu o outro braço de Noah e, com a outra, sua perna esquerda.
Duas singelas fagulhas foram vistas adentrando ao membro superior restante e ao interior, deixando claro que o movimento foi preciso e efetivo.
Imediatamente, o jovem, desequilibrado, foi ao chão, gritando de dor.
Seu braço restante e sua perna foram paralisados plenamente.
Enquanto seus gemidos de agonia pelo dano causado ecoavam pelo salão, os demais, atônitos, ficaram em silêncio.
Eles não estavam impactados.
Estavam respeitando o resultado.
— Kai deu a Íris um dom prodigioso! Mesmo diante de influência negativa, ninguém tem chances sobre o Caminho de Kai!
Os discípulos gritavam a polvorosa, clamando por Kai o tempo todo.
No centro, ainda no chão, Noah, de cara para o solo, ouviu tudo aquilo.
Toda a emoção, súplica e adorações, assim como as palavras apoteóticas do zurkan, martelaram sua mente.
Uma resposta virá…?
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