Índice de Capítulo

    Uma derrocada nas expectativas de Noah.

    Essa era a tônica que o jovem sentiu.

    Íris o observava. A canina por fora deixava claro sua autoridade como a mais habilidosa.

    Mas, em seus pensamentos, uma aflição tomou seu coração.

    — “O que foi que eu fiz? Porque?! Porque eu fiz isso?! Porque? Porque?”

    Todavia, sua doutrina era mais importante. Era o seu cerne.

    O nome de Kai manteve sua zeuk, postulada, mesmo diante da suposta vitória contra alguém inexperiente.

    Seu objetivo a seguir era ajudá-lo.

    Íris caminhou em sua direção, sob os olhares orgulhosos de seus colegas.

    Mas…

    — Eu vou fazer… vocês todos ficarem calados!

    Era Noah.

    Usando a própria cabeça e a perna remanescente, forçou seu levantamento.

    Não tinha mais raiva contida em sua voz, até então terna.

    Era algo encaminhado para o ódio.

    Tomado por um ímpeto inesperado, o mestiço, se esforçando ao máximo para ficar de pé, fixou seu olhar em Íris.

    Foi nesse instante que a jovem de olhos heterocromáticos deixou evidente um sentimento de pavor: os olhos verdes de Noah estavam ameaçadores, o suficiente para que desse um passo para trás.

    Mesmo com a imensa superioridade, seja física ou técnica, Íris parecia outra pessoa.

    — “O que tô sentindo?! Porque estou assim?” — ela deu mais um passo para trás, assustada com o que estava ocorrendo. — “Esse olhar dele é como se… fosse me…”

    Sem se dar conta, viu Noah de pé, novamente alinhado a seu nível, a encarando de igual para igual.

    Ele bradou, tão alto que chamou a atenção até de fiéis no Altar Sacro, assim como nos demais cômodos.

    Realmente Noah fez com que todos se calassem, gritando tal qual alguém que tinha acabado de sobreviver a uma tragédia.

    — Mesmo com os dois braços e uma perna paralisados conseguiu ficar de pé? — disse Íris, incrédula. Seu olhar pasmo foi o ápice do seu estado.

    Isso foi algo que nem mesmo Marduk esperava.

    O zurkan se manteve calado, levemente surpreso com o ocorrido, mas ativo mentalmente.

    — “O que está acontecendo aqui? Porque o jovem Noah se levantou?” — ele olhou para Íris em seguida. — Nobre zeuk, termine a luta com seu dever diário imediatamente!

    Os burburinhos ocorreram assim que Marduk a ordenou.

    Íris, agora relutante, se viu em um dilema indigesto.

    — O que?! O senhor quer que eu faça aquele golpe contra ele?! — sua perplexidade foi nas nuvens.

    — Você sabe como conseguiu chegar ao título de zeuk! E tenho certeza de que tem noção que está sendo avaliada por mim e, principalmente, por Kai!

    Outra vez, Iris recuou. Seu passo para trás deixou a tona a decisão de Marduk.

    De forma dura, inédita até então, o zurkan se expressou fervorosamente.

    — NÃO RECUE! — seu grito forte e estridente ecoou por todo o salão, chegando a estremecer os brios da canina. — Kai não aceita fraqueza de espírito! Seu adversário ainda está de pé!

    — Mas… — a garota estava levemente sentida com a situação. — “O que devo fazer? Eu nunca vi isso na minha vida! Porque tudo isso está acontecendo?! Porque ele não ficou no chão?”

    — Pare de trazer má impressão a Kai e faça valer seu posto como zeuk do Lugar do Caminho da Folha do Vulcão! Faça isso agora!

    Não foi preciso mais palavras.

    O olhar do zurkan tou soberano, tão penetrante quanto o de Noah.

    — “A palavra de Kai é o caminho a ser seguido. Eu… Eu não posso ir contra sua trilha!”

    Deixando de lado a discrepante qualidade técnica e física de Noah, Íris se colocou em base de luta, deixando mais do que claro que a luta ainda não tinha acabado.

    Sua fé, nunca desviada, se manteve.

    No lado de Noah, não havia mais amarras. A revolta por causa da situação estava muito além da sua luta.

    Tudo estava ligado a…

    — “Ninguém fala dos meus pais… NINGUÉM!” — enquanto seu corpo fragilizado economizava energia, em sua mente a voz interior gritava com voracidade.

    Instintivamente, seu subconsciente buscava manter a honra dos seus pais.

    Contudo, tudo isso era novo para Noah.

    — “Eu estou de pé… e na frente dela…” — enfim, por um momento, o rapaz teve lampejos racionais. — “Todo meu corpo tá doendo e eu não consigo dar um passo, mas…”

    Mesmo as palavras lhe faltando por ser uma criança, essa era sua força motriz, o que lhe fez ficar de pé em um estado calamitoso.

    Além disso, ele se afastava ainda mais das amarras físicas, transcendendo ao psicólogo, em um dueto que se equilibrava em seu interior.

    Aos extremos do salão, os discípulos estavam incrédulos com o desenrolar.

    “Kai está mesmo aqui, foi ele que levantou Noah?!”

    “O Caminho de Kai é maravilhoso! Ele está de pé!”

    “Eu… Eu estou vendo uma dádiva! Eu estou vendo!”

    Marduk estava tranquilo com isso, satisfeito com o que estava vendo e acontecendo.

    Contudo, uma frase foi dita:

    “Mas isso não é errado?”

    Esse discurso, inocente e puro, foi ignorado pelos demais, mas não pelo zurkan.

    Ele virou levemente seu rosto, para ver suas origem e, ressabiado, gritou para a sua zeuk:

    — Faça, Íris! O Caminho de Kai é soberano!

    Marduk estava em polvorosa.

    Seu grito final moveu a jovem, que foi em direção a Noah com uma aura esverdeada.

    Cada passo que executou a aproximava de algo que, lá dentro de seu existir, a deixava incomodada.

    Essa dicotomia a consumiu durante o trajeto até seu adversário.

    “Lutar com todas as forças contra um novato é algo que Kai aprovaria…?”

    Seus valores morais, algo que a dignificam como alguém inteligente e totalmente sã, duelavam contra seus dogmas, os quais a faziam ser o que é hoje.

    Era uma luta desigual, idêntico ao duelo atual.

    O destino da peleja ainda era incerto.

    Íris tinha uma vantagem imensa, com todas as probabilidades de vitória.

    Mas porque o clima do embate estava tão distante de um desfecho?

    A resposta era simples: Noah estar de pé ia contra qualquer prognóstico.

    — “Eu não sei o que vai acontecer, mas…” — em mais um momento de reflexão racional, Noah mostrou noções de realidade. — “Se não conseguir vencê-la, eu não vou perder sem levar nada…”

    Sua indagação interna veio recheada de um simbolismo ímpar.

    Instintivamente, Noah recebeu mais uma vez da sua herança.

    Seu olhar, agora mais lúcido e coerente, não buscava só a vitória. Seu subconsciente lhe disse que o alcance para tal feito era quase impossível.

    Suas últimas palavras internas lhe deram um foco: ganhar não significa sair vitorioso.

    As possibilidades de obter algo eram infinitas, mas com obstáculos gigantes para serem travados.

    Imóvel e incapaz de se mover, dar um passo nas suas condições atuais lhe levariam ao chão, local indigno para alguém que lutou noites atrás para viver.

    Ou melhor: para sobreviver.

    Bem lá dentro de sua mente o conhecimento tomava espaço, mas longe de abrir novas portas.

    Noah tinha um outro objetivo.

    Ou, pelo menos, seu lado racional, que lutava contra o emocional.

    Pela segunda vez seguida, o mesmo engate de mais cedo cravou suas garras em suas entranhas, o movendo em uma direção diferente.

    O albino externo prosseguiu seu caminho para honrar seus pais. O interno, estava a anos luz a frente e sequer era notado por todos os presentes.

    Esse era o único trunfo de Noah: sua herança lhe dando inatismos para obter sucesso.

    Um estalar ocorreu em sua mente…

    — “Analisar o inevitável. Traçar a mínima porcentagem de vitória…” — seu superego1 dominava essa estrutura. — “Diminuir os danos, buscar algo que possa valer como uma conquista…”

    E um pulsar severo em seu coração…

    — “Isso ainda não terminou!” — seu ego2 tomava o presente, seu estado frente a Íris. — “Tenho que mostrar pra ela que não pode falar o que quer!”

    Cálculos matemáticos de alto nível ativaram a percepção espacial e gradiente3 de Noah naquele instante, em uma distância que diminuía a cada segundo.

    Uma visão periférica, em um giro de 360 graus, se baseando em todo seu movimentar e a de sua adversária, foram travados e milimetricamente condensados.

    O jovem aguardava a menina, que seguiu em sua direção.

    Sem pestanejar, Íris levantou seus dedos, três em cada uma de suas mãos: mindinho, indicador e polegar.

    — Tome isso: Os Três Pontos do Triângulo de Kai!

    Centímetros antes de aplicar seu golpe, a garota bradou com fúria, disposta a aplicar o golpe mais poderoso da doutrina do Kaipasu.

    Seu rosto mostrava seu espírito compenetrado, seguindo friamente sua fé e devoção a Kai.

    Mas, como esperado, havia um lado de Íris que lutava contra seus dogmas.

    — “Sinto muito, Noah…”

    O choque ocorreu, com o golpe acertando a cabeça, o dorso e a barriga de Noah simultaneamente.

    A potência não foi muita, mas o suficiente para cessar imediatamente os movimentos do mestiço.

    Enquanto os olhos esmeralda de Noah se fechavam lentamente, todo o seu subconsciente estava ativo, deixando claro sua estratégia

    Contudo, havia algo de diferente da forma que tudo isso ocorreu: seu corpo tomou uma projeção ofensiva, por mais que incrível que pareça.

    Ele tomou uma direção circular, em espiral, com sua perna, a que estava paralisada, executasse um movimento contínuo, como um pêndulo.

    Íris sequer tinha noção do que estava para acontecer, sem prever as nuances que só o superego de Noah tinha dessa habilidade inata.

    Tudo foi planejado como último lampejo, ao apagar das luzes.

    Enquanto os olhos esmeraldas de Noah se fechavam lentamente, todo o seu subconsciente estava ativo, deixando claro sua estratégia.

    — “Força centrípeta aplicada. Tempo: 6 milissegundos. Força centrífuga ocorrerá no sétimo milissegundo…” — os cálculos físicos e as medidas ocorreram instintivamente. — “Objetivo: mudar a direção e a velocidade conforme recebimento do golpe de Íris…”

    De acordo com a física, a força centrípeta atua em movimentos circulares, alterando a direção ou o sentido da velocidade, enquanto a força centrífuga ocorre em referenciais não-inerciais, como em movimentos curvilíneos. Ela é sentida como uma tendência a se afastar do centro da curva.

    Todos esses conceitos foram aplicados conforme os ensinamentos da herança de Noah abraçavam o destino de suas ações como filho orgulhoso que era.

    Ao aplicar o Os Três Pontos do Triângulo de Kai, Íris escolheu encontrar a vitória acima de tudo, para manter sua fé por Kai inabalável, como esperado.

    Contudo, sua ação premeditada desencadeou uma soma de fatores que traria uma reviravolta inesperada no duelo desigual.

    Ao atingi-lo, por seu corpo já estar fragilizado, os três golpes ocorreram no mesmo momento que Noah girou o eixo de seu corpo sobre o único membro que ainda estava intacto: sua perna direita.

    Isso gerou um fenômeno chamado:

    — “Mudança impulsiva de direção” — o superego de Noah narrou o conceito. — “Uma mudança de direção súbita interrompida ou alterada, tendendo a seguir em linha reta.”

    Sem que ninguém esperasse, a perna paralisada se moveu como um chicote indomável assim que Noah recebeu o golpe, o que fez com que seu poder aumentasse em mais de 180%, acertando a nuca de Íris com extrema força.

    Assim que ela atingiu Noah, o jovem perdeu os sentidos, o que desencadeou todo o “efeito cascata”, o que também a levou a apagar.

    Os dois foram ao chão ao mesmo tempo, para surpresa de todos que assistiram ao derradeiro duelo.

    O choque de forças foi sentido por todos no centro, como se eles tivessem mesmo sentido o golpe, cujo impacto monstruoso ditou a intensidade do momento.

    Seus olhares, atônitos e assustados, imediatamente buscaram refúgio na dúvida, pedindo licença ao fascínio.

    O grupo de praticantes do Kaipasu, diante do final derradeiro do combate, correram até o centro a fim de saber do estado dos dois.

    Ingrid foi a primeira a chegar, seguido por Marduk, este com um semblante fechado, mas sem que ninguém percebesse.

    — Iris! Íris! — berrava a canina das ondas, segurando sua amiga pelo dorso. — Vai, acorda!

    Aos poucos, a jovem voltava a si, ainda tonta com o ocorrido.

    — Ahh… Minha cabeça tá doendo… — ela lamentava, com uma das mãos sobre sua testa.

    — O que aconteceu? Você tinha acertado o Noah e… você venceu!

    — Ah… Noah.. — ela virou para o lado, o procurando desesperada. — Noah?! Por Kai e suas bênçãos… Noah!

    Não foi preciso mais do que alguns segundos para que Iris percebesse que Marduk o tinha no colo.

    Levantando o rapaz, ainda desacordado, o zurkan do Lugar do Caminho da Folha do Vulcão olhava para todos os seus discípulos, com um olhar bastante complacente.

    Foi uma atitude já esperada por Íris, que se levantou e o reverenciou como a zuek que era.

    — Como ele está, senhor Marduk? — perguntou, ainda mantendo sua postura respeitosa.

    Entretanto, Marduk tinha coisas a dizer. Ele retribuiu o gesto de Íris, enquanto falou:

    — Todos vocês puderam ver, com seus próprios olhos, a grandeza da palavra de Kai foi soberana mais uma vez. A experiência e a inexperiência são detalhes vagos para quem segue o seu caminho.

    Ele pediu passagem enquanto carregava Noah pelo centro, sendo seguido por todos.

    Íris, embora cuidadosa nas palavras, se mostrou preocupada. Ele insistiu na pergunta.

    — Senhor Marduk, como ele está? — seus olhos bicolores estavam arregalados, evidenciando sua curiosidade.

    — Dormindo… — falou, continuando a caminhar. — Não fique ressentida por causa do que fez. Vocês lutaram bravamente, até onde podiam alcançar.

    — Mas o Noah… Ele é novato e… — Íris foi interrompida, antes de concluir seu ponto de vista.

    — Não existem novatos no Lugar do Caminho da Folha do Vulcão. Você, com sua experiência, recebeu um golpe e caiu, tal qual seu adversário inexperiente.

    Isso era um fato.

    Por mais que as nuances do embate estivessem invisíveis para todos, esse detalhe era a única coisa que todos concordavam.

    Mas, na busca por uma definição do duelo, Ingrid indagou algo.

    — Íris o venceu… mas porque não parece?

    Marduk parou de andar, olhava a todos. Ele quis responder aquela pergunta.

    — Se você cair junto com seu adversário, você obterá o mesmo que ele. “Íris o venceu” , você disse, jovem Ingrid. Eu digo que isto foi um empate. Mas, de resultado pleno, eu respondo: Kai venceu, como sempre.

    Rumando para fora da construção rústica, seu retiro sacro, o zurkan finalizou a aula.

    — Tomem essa prova de resiliência como um aprendizado! — bradou Marduk, inflando ainda mais sua fé. — Não há espaço aqui para pessoas com espírito fraco! Kai retribui em triplo quem luta contra as dificuldades!

    Como antes, Marduk marcou fervor em todos os discípulos, que demonstravam toda sua alegria e algazarra ao terem um líder tão motivador e sábio.

    Eles buscaram o céu, azul e limpo, parte agradecer a Kai, fé que seguiam fervorosamente.

    A saber, ninguém tinha dúvidas da índole de Marduk.

    Dos aldeões aos fiéis do Altar Sacro, ele possuía plena confiança de todo o povo da Vila Aldeia Melanmarii.

    Percebido por onde passava, os moradores o reverenciavam, enquanto ele carregava Noah com todo o carinho, quase como o de um pai.

    Seus aprendizes até se emocionaram com tamanho zelo em levá-lo daquela forma tão nobre.

    Seu caminhar, quase hipnótico, e sua presença nutria o ímpeto de cada coração por ali.

    Marduk, com seu semblante neutro, tornou a olhar para o mestiço e, em sua mente, reflexões.

    — “Você tem um jeito todo peculiar de me impressionar, jovem Noah… — ele o conduziu até a enfermaria. — “Isso é perfeito! Tenho certeza que seu potencial será deveras interessante de ver se desenvolver…”

    Entretanto, sinais destoantes ocorreram.

    O mesmo sorriso, aquele que esboçou durante a luta, retornou ao rosto do zurkan.

    Era suspeito o suficiente para causar estranheza.

    Por isso mesmo que Ingrid percebeu dessa vez seu comportamento inoportuno.

    — “Porque o senhor Marduk está sorrindo assim?”

    A canina das ondas recebeu aquele código, ainda indecifrável em sua mente, sob fortes dúvidas.

    Seu mestre deixou transparecer algo estranho..?

    Aquela risada queria dizer mais do que um simples gesto de positividade.

    Havia algo a mais.

    Ingrid o olhou caminhar o restante do percurso até o mosteiro, mantendo o mesmo gesto inquisidor.

    O fim do duelo foi apoteótico, no ponto de vista dos postulantes.

    Mas o tom de mistério continuou.

    E isso era somente o começo.

    1. Nota: dentro do contexto, o superego de Noah representa sua lógica, moral e estratégia, guiando-o a analisar a luta racionalmente e preservar sua honra[]
    2. Nota: já o ego reflete sua resposta emocional e imediata, impulsionando sua determinação e transformando sua revolta em ação concreta no combate[]
    3. Nota: “percepção espacial” refere-se à sua habilidade de compreender o ambiente ao seu redor, incluindo a posição da adversária e possíveis ações. Já “gradiente” está relacionado à variação de forças ou ao fluxo de movimento no combate[]

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 0% (0 votos)

    Nota