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    Vila Aldeia Melanmarii

    Mosteiro Mai Kai | Noite

    As horas passaram rápido em Big Sea Island.

    Após o enigmático e inesperado desfecho do duelo no Lugar do Caminho da Folha do Vulcão, Noah foi levado para o mosteiro, mais precisamente na área de curadoria.

    O lugar, como antes descrito, era bastante calmo e silencioso, onde só velas forneciam iluminação e, como sabido, também sem janelas.

    Lá, devidamente medicado, o jovem repousava, sereno.

    No lado de fora da área de descanso onde estava, Ingrid e Iris, já trajadas com suas roupas normais, aguardavam, ansiosas, por mais notícias.

    Era visível em seus rostos um certo desconforto e apreensão, como se aquilo tudo fosse algo inédito.

    A canina de olhos heterocromáticos, a mais preocupada, não parava de morder o próprio lábio inferior, com os caninos postos à vista.

    Ela também fechou suas mãos, segurando forte em sua saia.

    Ingrid, a canina das ondas, que também demonstrava inquietação, estava um pouco mais sã, se preocupando com sua amiga.

    — Íris, calma! Ele tá bem! — disse, a abraçando pelo ombro.

    — Ele pode tá bem mas eu não estou… — a jovem ainda se martirizava. — Eu peguei muito pesado com ele…

    — Ih, já foi. Kai sabe que você fez por bem…

    — Então porque eu tô me sentindo tão mal? Não… Isso tá errado…

    — Calma!

    Embora Ingrid impusesse seu apoio moral a amiga, era certo que as feridas na moral de Íris ainda estavam abertas.

    O tempo era uma tortura para ela, que buscava a todo instante consertar as coisas.

    Por pelo menos meia hora, isso se manteve.

    Contudo, os acontecimentos naquela noite não se resumiram a notícias da recuperação de Noah.

    Enquanto as coisas não estavam tão boas com Íris, assuntos paralelos ocorriam ao mesmo tempo em outro cômodo do prédio simplório.

    Dentro da construção sagrada dos adoradores de Kai, lá estava acontecendo um tipo de reunião.

    O cenário era de um salão com uma távola no centro, com velas ao redor iluminando o cômodo sem janelas.

    Cadeiras de madeira lisa completavam, como assentos confortáveis, assim como incensos de frutas deixavam uma fragrância adocicada ao local, aumentando o bem estar.

    Voltando as atenções aos presentes do recinto, todos tinham vestimentas azuis, com um cinto branco na cintura.

    Abruptamente, um deles, cuja espécie era um cervo com pelagem bege, tomou a palavra.

    — Muito bem. Orçam todos! — disse, levantando os braços para receber mais atenção. — Peço que façam silêncio, por favor. Nosso zurkan acabou de chegar!

    Dito isso, eis que Marduk entrou no lugar, se apressando para sentar na cadeira logo ao extremo da grande mesa.

    Feito isso, pediu para que todos fizessem o mesmo.

    Após todos tomarem seus assentos, ele falou:

    — Cavaleiros e damas de Guilda Agalelei, lhes adianto de antemão o que todos estavam esperando ouvir: a Festa da Colheita ocorrerá!

    Sem mais nem menos, muitos se emocionaram, clamando a Kai incessantemente.

    Ainda que os motivos de tal reação não fossem claros, era certo de que a confirmação do evento era de extrema importância por todos que estavam na sala.

    Markut continuou.

    — Suko Haalaee, acredito que agora está muito mais tranquilo.

    — Certamente, sacro zurkan! — disse o cervo, sorrindo. — Foi a melhor notícia que poderíamos receber depois do incidente do mês passado.

    — Eu entendo, sacro suko — disse o felino branco, também mostrando alegria em seu rosto. — Estaria sendo exagerado em dizer que pode começar os preparativos?

    — Claro que não! É uma satisfação tremenda realizar os feitos o mais depressa possível! — ele se levantou, esbanjando felicidade. — Kai nos abençoou mais uma vez!

    Aquilo foi como uma ordem, amplamente obedecida pelo entusiasmado suko, que era um desígnio para obreiro na Vila Aldeia Melanmari.

    Assim como ele, outros o acompanharam, restando no salão dois remanescentes.

    O da direita era uma morcega, cujos olhos já não tinham brilho, encobertos por grandes franjas de seu cabelo preto, e a esquerda um canino com pelagem azul e cabelos brancos, que escondiam seu olho direito, deixando à mostra seu outro de cor castanha.

    Ao contrário de todos, ele não usava das vestimentas da Guilda. No lugar, sapatos pretos, calça cinza e blusa com manga longa da cor azul, em um tom mais escuro que a de sua pelagem.

    Como um líder exemplar, Marduk pareceu saber exatamente o que cada um queria dizer.

    — Zoma Alfreedah… — disse, olhando para a morcega. — Também impactada pelo anúncio, acredito.

    — Sim, sacro zurkan… — ela prosseguiu, desviando o olhar. — Todos da Vila Aldeia Melanmarii estavam ansiosos por isso. Entretanto…

    — Hum… — ele esfregou seu queixo, deixando um sinal de que estava curioso. — Qual a adicional, diga.

    — Parte de nossa colheita foi destruída após a invasão dos “Mal que habita”.

    Esse comentário fez com que o zurkan se levantasse, sinalizando seu incômodo.

    Ele se dirigiu até um altar, onde havia um livro aberto.

    Decerto, era esperado palavras após seu movimento, como a designa bispa aguardava.

    — Sacra zoma, está insinuando que a força de Kai diminuiu por causa desse infortúnio?

    — Somente fracos pensariam assim, sacro zurkan… — disse Alfreedah, ainda a desviar o olhar. — Contudo, alguns aldeões questionaram o tratamento quanto à invasão.

    Marduk se virou, rapidamente, olhando para os dois. Seus olhos trouxeram um ar mais sério e sóbrio, mas passando tranquilidade ao mesmo tempo.

    Seguro, ele completou.

    — Contanto que não sejam infiéis, que continuem — falou, trocando olhares com os dois. — Kai jamais deixaria suas sementes para trás e muito menos abandonaria sua colheita. Entretanto, sempre haverá ervas daninhas. Elas não resistem a troncos fortes.

    Palavras firmes e com um peso que só Marduk tinha o tato.

    Ele conseguiu tranquilizar Alfreedah, que demonstrou um leve sorriso ao lado de sua boca.

    Todavia, o da direita, o canino azul, proferiu em seguida.

    — O questionamento partiu de mim.

    A morcega, rapidamente, deixou o alívio para esboçar surpresa em seu semblante parcialmente escondido.

    Mas, mesmo com a revelação inesperada, Marduk sequer mostrou maior reação do que fitá-lo.

    E, claro, fazê-lo falar era esperado.

    — Zoma Lanumoaga… — disse o zurkan, caminhando na direção do canino. — Ainda andas a inquirir ante Kai?

    — Palavras eloquentes proferidas por vós são apoteóticas… — indagou sarcasticamente o azul, se levantando. Seu olhar se encontrou com o de Marduk. — Kai sempre estará no maior altar, não tenha dúvidas nisso.

    — Eu ignoro suas provocações. Seu floreio deixa evidente falta de decoro — explanou, mudando o tom da conversa. — Porque duvida da palavra de Kai? Diga.

    — Minha dúvida não está em Kai… — ele apontou para o felino. — Meu questionamento é sobre você, um líder em evidência.

    Marduk parou de caminhar assim que ficou a poucos centímetros de Lanumoaga.

    Com Alfreedah como testemunha, ela acompanhou o entrave entre os dois, uma rivalidade não muito saudável, como era possível ver.

    — Metade da colheita perdida, aldeões feridos, crianças com medo, idosos receosos e doentes ainda mais enfermos… — continuou o canino, sem desviar o olhar. — Se você seguisse fervorosamente Kai, teria previsto a invasão dos “Mal que habita”.

    — E Kai, como sua palavra, prevaleceu — completou Marduk, sem perder o fio. — O inimigo tentou contra nós e pereceu, assim como todos nós sabemos.

    — Curioso que você ignora o fruto perdido mas valoriza o plantador… — com um sorriso sarcástico no rosto, Lanumoaga concluiu. — Kai continuará sendo o nosso alicerce, mas não tenho plenas convicções de sua competência.

    Marduk manteve seu semblante sério, mas longe de esboçar qualquer irritação.

    Ele se limitou a responder só com palavras.

    — Sua falta de fé é um atentado que não posso admitir… — falou, o fitando. — Tributações sempre ocorrerão pelo caminho. No fim, colhemos glórias e bênçãos… por Kai.

    A troca entre os dois estava à beira de um embate.

    Era o que Alfreedah pressentiu.

    Suas mãos estavam sobre a mesa, receosa de opinar em prol de um ao outro.

    — “Isso precisa acabar agora mesmo!” — internamente, suas dúvidas a deixavam inquieta. — “Lanumoaga tem seus motivos, mas Marduk é o nosso líder! Não posso ir contra nenhum deles, mas…”

    Os pensamentos da morcega cessaram no devido momento que observou o canino azul caminhar em direção a saída.

    Os sons de seus passos ecoavam pelo local silencioso.

    Não havia porta no recinto, o que facilitou para que o azul deixasse o local.

    Marduk manteve seu olhar ao dele até que saísse totalmente, com Alfreedah dizendo:

    — Sua mulher e filho foram feridos na invasão e seu pai está internado com “Mal que toca” na ala sacra do Mosteiro Mai Kai… — a morcega foi direta.

    — Eu sei disso… — em um tom seco, Marduk falou.

    Outra vez, o zurkan foi até o livro aberto no altar, sem ignorar a presença de Alfreedah.

    Ela, por sua vez, ensaiou pensamentos conflitantes.

    — “Como ele pode dizer uma coisa dessas?! A família do zoma Lanumoaga foi ferida e ele nada se incomoda com isso?”

    Contudo, o discurso do zurkan teve um peso no seu julgamento.

    — Sacra zoma, o Caminho de Kai é uma centelha perto do esplendor que ele significa. Tenho certeza de que está pensando que sou frio com sentimentos dos outros…

    Sua breve pausa foi para buscar um pouco de ar, mas não pelo o que iria dizer: ele leu um dos versos no livro segundos antes.

    — Vou lhe responder: sim.

    Isso a fez franzir sua testa. Ainda que seus olhos não tivessem o brilho, ela os arregalou.

    Mas, em contrapartida, Marduk explicou.

    — Nossas emoções, se usadas ao extremo, de forma egoísta, trazem tragédias como a invasão dos “Mal que habita”. Sentir dor pelos outros é algo palpável do que significa Kai. Suas palavras são maiores que qualquer perda pessoal, porque ele é quem trilha nosso caminho.

    Embora Alfreedah ainda pensasse em Lanumoaga, suas palavras de mais cedo, o zurkan tinha todo o dogma do Caminho de Kai em seu ombro.

    Ela também acreditava nesse caminho, de igual forma.

    E, enquanto a morcega encontrava um horizonte, Marduk a confortou, indo até ela, segurando uma de suas mãos.

    — A união de todos é imprescindível ante o inimigo. Os “Mal que habita” foram aniquilados por Kai, você sabe.

    — Sim… eu sei… — a fala pausada de Alfreedah deixou claro sua devoção.

    — Então acredite em Kai, sempre… — ele, gentilmente, beijou a palma da mão da morcega, se retirando até o livro.

    Lá, deslizando sobre as folhas rústicas que o compunha, exclamou:

    — Zoma Alfreedah, peço desculpas pelo o que viu neste recinto. Lanumoaga é um apaixonado, mas dificilmente deixará de seguir Kai. Embora crítico, ele é leal ao Caminho.

    — Eu entendo… — ela falou, se levantando.

    — Por favor, ajude ao suko Haalaee nos preparativos da Festa da Colheita. Será daqui dois dias, mas é de extrema importância que marquemos nosso compromisso com Kai com antecedência.

    — Certamente! — ela o reverenciou, de forma positiva.

    Não demorou muito até que saísse, deixando Marduk a sós.

    Todavia, enquanto caminhava elegantemente pelo corredor rústico e pouco iluminado do monastério, sua mente lhe trouxe mais pensamentos.

    — “Nosso líder age sabiamente, não tenho dúvidas. Mas ver como Lanumoaga saiu da sala foi mais impactante. Aquele silêncio foi mais barulhento que qualquer palavra…”

    Marcas foram deixadas.

    Não foi uma simples conversa entre rivais.

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