Capítulo 72 - Mar de Revolta (Parte 9): de volta ao treinamento
Marduk tinha um carisma monstruoso e um poder de lábia ímpar.
O líder da Vila Aldeia Melanmarii sabia cativar corações, sejam quais forem, sempre passando a palavra de Kai.
O monge, categórico, passou a caminhar pelos corredores, com um sentimento de dever cumprido.
Sem que ninguém o visse, esboçou um sorriso no canto de sua boca, mostrando satisfação.
Entretanto, sua testa franzida denunciava que, por trás do sorriso, algo o preocupava.
Haviam nuances.
Ao mesmo tempo, na área de curadoria, Noah voltou a se deitar, olhando para o teto como se procurasse por algo.
Era quase como uma meditação, onde liberou sua mente de pensamentos e simplesmente deixou com que seu corpo ficasse imóvel, em repouso profundo.
Sem que soubesse, ele realizou o que é chamado de Yoga Nidra1 em nosso mundo, tão logo o fez livrar-se do que estava a sua volta.
O fenômeno teve total influência da herança cedida por seu pai.
Não havia dúvidas ou incertezas.
Só o repouso absoluto de sua mente cansada.
Isso lhe fez transcender o tempo, fugir da realidade.
Regredir, avançar, estagnar…
Lágrimas surgiram, sem um motivo aparente.
E sua mente, repousada, se acalmou.
Com isso, seu sono lhe atingiu.
O resto da noite seguiu tranquila, sem maiores eventos.
Porém, cheia de simbolismos.
No dia seguinte…
Vila Aldeia Melanmarii
Lugar do Caminho da Folha do Vulcão
Salão Central | Início da manhã
Mais um dia de atividades no centro havia começado.
O local, lúdico como já sabido, exalava juventude, com um cheio doce no ar vindo de incensos proveniente do Altar Sacro.
O aroma de flores sortidas impregnava o espaço, dando um clima etéreo relaxante.
A temperatura ideal deixava tudo mais confortável, com o sistema de ventilação natural proporcionando tal luxo.
No centro, o chão de palha e pano macio era um convite à prática de artes marciais.
Um ode a harmonia e a manutenção do bem estar, seja espiritual, físico ou mental.
Com os adeptos do Kaipasu já alinhados para o início das práticas, Marduk puxava a cerimônia.
Logo à frente da turma, lá estavam Ingrid e Iris.
As duas, com um semblante sério, transpiravam concentração, dado que as duas eram a referência mor do espaço.
— Ingrid, tá todo mundo aqui? — questionou a de olhar exótico, preparando a área de treinos.
— Sim, eu já fiz a presença de todos… — respondeu a das ondas, postada no centro.
— A propósito, o senhor Marduk ainda não chegou. Sabe de alguma coisa?
— Ah, acho que ele disse que iria fazer anotações e ia chegar em cima da hora.
— Hm… — pensou Íris, com um olhar distante. — “O zurkan não costumava se atrasar para os treinos. Já faz uma semana que tá acontecendo isso…”
A jovem dialogava em sua mente consigo mesma já faziam alguns dias sobre o assunto.
Junto com ela, Ingrid também esboçava certas opiniões com a mudança de comportamento de Marduk, como elas deixaram exposto.
— Já reparou que faz exatos sete dias que a aula começa com atraso? — comentou Íris, olhando para o corredor de acesso.
— Sim… — a das ondas concordou. — E eu já percebi que o senhor Marduk não tá se dando bem com o senhor Lanumoaga desde aquele dia da invasão…
Esse último comentário de Ingrid com que a zeuk do Lugar do Caminho da Folha do Vulcão a puxar bruscamente pelo pescoço.
Sem perder tempo, ela falou:
— Ingrid, não fale isso aqui! — cochichou Íris, com um olhar de preocupação. — Você sabe que o sacro zurkan pode ouvir!
— Ah, mas o que tem?! Você também não tá achando ele meio estranho desde a invasão?
— Tá, eu estou… Mas ele é o nosso líder! — divagou a jovem, continuando. — Ele tem responsabilidades de adulto, não? É claro que ele vai ter que deixar parte do tempo dele pra coisas mais importantes.
— Mas o Kaipasu é importante para o senhor Marduk.
— É, isso aí! Só que temos que tomar cuidado. Somos as líderes daqui do Lugar do Caminho da Folha do Vulcão quanto ele não está. Então não podemos ficar falando demais para o restante dos postulantes.
As duas levavam muito a sério suas posições como mandantes do espaço de treinamento do Kaipasu.
Durante a aula passada isso ficou evidente.
Ingrid ensinou a Noah, servindo como um espelho, observando-a e, como sabemos, os resultados surgiram, muito mais do que qualquer um imaginava.
E Íris agiu como um agente catalisador, tendo um papel fundamental no objetivo de Marduk em levar a aula.
Enquanto a canina era mais uma instrutora detalhista, Íris desempenhava a prática nua e crua, com um destaque maior por ela ser a zeuk.
Enquanto a dupla fazia os preparativos frente a equipe, o zurkan surgiu pelo corredor, caminhando com imponência e sorrindo para todos.
— Rápido, pessoal… — anunciou Íris, alinhando com o restante. — O senhor Marduk chegou! Em formação!
Às pressas, os praticantes tomaram suas posições, pelo imenso respeito que todos tinham por ele.
— Bom dia a todos — falou o zurkan, contente. — Kai é o caminho. O Caminho de Kai é a salvação!
Os clamores vieram, como de praxe, anunciando o começo das atividades.
Segundos antecederam o início pleno, com Ingrid e Iris logo à frente do pelotão de praticantes.
Contudo, algo inesperado por elas aconteceu: um pouco antes de começarem o aquecimento, exercício que antecede cada treino, eis que Noah surgiu no lugar.
Marduk esboçou um leve contentamento em seu rosto, invisível para o restante dos presentes.
Mas não era uma simples emoção positiva. Tinha um quê, algo a mais que não ficou evidente.
O jovem albino rumava como se lutasse para continuar sua sina em direção ao centro, mas seguindo em frente sem pestanejar.
No meio da área de treinos, as reações começaram a acontecer.
Aquilo foi uma imensa surpresa.
Para somar, o reflexo do duelo do dia passado ainda permeava.
Os burburinhos ocorreram, como esperado, assim como altas expectativas dos praticantes do Kaipasu.
Noah, ao chegar, trocou olhares com as caninas, as que o visitaram no mosteiro da noite passada, e retribuíram o gesto.
Contudo, Íris desviou o olhar, com uma vermelhidão em seu rosto.
Aquilo não foi só um reencontro.
Era também um compromisso, em seu simbolismo.
— Que bom que você veio… — disse Ingrid, com um sorriso, ainda que tímida.
— E eu estou feliz de estar aqui… — Noah foi complacente, tomando seu lugar no grupo.
Ele ficou exatamente na fileira de trás onde Íris estava.
Ela, sabendo onde ele estava, não pôde ficar calada por muito tempo.
— Bem-vindo de volta, garoto bonito — a jovem, ainda de costas, o saudou.
— Obrigado, Íris… — ele deixou evidente sua educação. — E eu só voltei porque vocês estão aqui.
As duas ouviram aquilo, com reações: ficaram coradas.
Ingrid pigarreou, desviando o olhar, enquanto Íris virou o rosto para o outro lado, quase tropeçando nos próprios pés ao tentar se recompor, ambas com suas caudas ouriçadas.
Era um misto genuíno de timidez e ternura, que aqueceu o espírito das duas de uma forma significativa, a ponto de melhorar o humor.
Aquilo animou Marduk, que usou o bom astral a seu favor.
— Ótimo! Excelente! — exclamou, com as mãos levantadas. — Agora todos estamos aqui. E fico feliz que tenha reconsiderado, jovem Noah.
Ele olhou para o albino, que manteve o mesmo olhar neutro, indiferente do que o zurkan disse.
A aula começou, com um aquecimento especial.
Ingrid e Iris impuseram duzentos polichinelos.
Como uma chama acesa e trêmula, o calor do ímpeto dos praticantes foi posto à prova desde o início.
Porém, algo especial estava por vir.
— O Kaipasu é uma doutrina completa por assim dizer, mas… — Marduk pausou sua fala, caminhando para o centro do salão.
Seus passos, calculados e com um pouco de sofisticação, anunciavam algo inédito que estava por vir.
Marduk, respirando fundo, tomou uma base de luta ofensiva e poderosa, como se fosse ao embate contra vários oponentes.
Lá, ele executou uma sequência incrível de três chutes consecutivos, potentes o suficiente para deslocar um pouco do ar.
Seu repertório de movimentos, altos e arrojados trouxeram fascínio por todos, inclusive Noah.
Nesse cenário de vislumbre, o gato branco continuou.
— Nem sempre o Nirvana, que nutre nosso existir, nosso cerne, brilhará com o mesmo vigor depois de uma luta árdua. Então… é preciso ter subterfúgios…
Novamente, ele aplicou outros quatro chutes ao ar, desta vez mais aéreo e acrobático.
Sua projeção ascendente o fez atingir um saco de areia logo acima, quase inatingível, todos os golpes.
Com isso, Marduk mostrou que era um exímio lutador, deixando claro para Noah que o zurkan do Lugar do Caminho da Folha do Vulcão era realmente um artista marcial.
— “Isso que ele fez foi mesmo incrível! Mas… como ele conseguiu dar tantos chutes assim?!” — pensou o mestiço, com os olhos vidrados.
O monge, reluzente com a reação dos discípulos, explicou melhor:
— Isso que vocês acabaram de ver é Joon-sowen — aterrissando no centro, fomentou — Hoje ensinarei aos iniciantes a divina arte da luta que os Naturais de Big Sea desenvolveram.
Esse detalhe chamou a atenção de Noah.
— Naturais?! O que isso significa?
Não só Noah, como os demais iniciados, ficaram curiosos com o novo terno.
Marduk, ao vê-los tão impressionados, se limitou a fechar seus olhos e a estender seus braços para os lados, como uma meditação.
Seu ato foi pensado, entendido da melhor forma possível por sua imediato.
Quem teve a incumbência de responder a pergunta foi Íris.
— São pessoas que não possuem Nirvana. Os antigos que lutavam só com a força física, protegidos por Kai de corpo e alma.
— Então mesmo a gente que tem Nirvana tem que aprender a lutar sem Nirvana? — as dúvidas do albino eram honestas.
Ingrid foi quem tomou a palavra.
— Para que tem Nirvana, lutar só dependendo do físico é pra ficarmos mais fortes! A gente tem que poupar energias!
— Ah, então é isso… — Noah, entendendo o ponto, balançou sua cabeça positivamente.
Marduk, brevemente, abriu seus olhos, retornando ao comando da aula.
— Muito bem… Quero pelo menos cem repetições de golpes… — ele fitou Íris e Ingrid, caminhando para fora do centro.
O felino pálido, no mesmo tom do de Noah, deixava o centro, fechando seus olhos durante o trajeto.
Ele deu ordens, ademais.
— Vocês duas… — disse, se referindo a Ingrid e Iris. — Conduzam a turma. Kai está em cada centímetro deste salão abençoado. Não esmoreçam!
O treino seguiu, com todos dando o máximo.
Ingrid e Íris, as mais experientes, ditavam o ritmo, com Noah tentando as acompanhar, assim como os demais praticantes.
Os chutes consecutivos, fortes e precisos, das duas aos poucos eram assimilados pela turma, com mais dificuldade visível no albino.
No início, seus movimentos, imprecisos e desequilibrados, deixavam claro sua total falta de coordenação motora para com as artes marciais.
O olhando de longe, lá estava Ingrid.
— “Noah tá diferente da última aula…” — ela se recordou, mas não de todos os detalhes.
Sob os olhares surpresos de Íris, a canina das ondas na testa caminhou até Noah, dizendo:
— Você tá fazendo isso errado! — exclamou a garota, tomando base de luta ao lado do menino. — Você tem que chutar como se estivesse em perigo, lutando contra gente malvada!
Joon-sowen era uma técnica totalmente diferente do que o Kaipasu mostrava: ao invés de golpes rápidos e sem potência, mas centrado em técnica e precisão cirúrgica, a técnica apresentada na aula era de pura ferocidade e força.
— Não chuta de qualquer jeito! — Ingrid viu que Noah não conseguia se equilibrar durante a execução dos movimentos. — Se posiciona e depois chuta! Se posiciona, ta? Depois chuta!
Ela demonstrou os golpes, rápidos e precisos, e também impôs força.
O corpo franzino do albino deixava claro seu preparo físico inferior aos demais, principalmente se comparado a Ingrid e Íris.
Contudo, já na metade do treinamento, as coisas mudaram.
Aos poucos, a herança recebida pelo seu pai estalou mais uma vez em sua mente.
Não em fragmentos, mas em bases, formas e postura.
— “Chute frontal: precisão… Circular: base e forma… Para cima: força e postura… Para os lados: base, forma e postura…” — suas capacidades inatas afloraram sem que percebesse.
Com um sentimento em sua mente de não ficar para trás, Íris ficou ao lado de Noah dessa vez, fim Ingrid no outro lado.
— Noah… — explicou a exótica. — Inspire e respire!
Quase como um ritual, a menina ficou imóvel ao lado de Noah, sugerindo um tipo de manifestação interna de concentração.
Não era só um simples gesto: aquilo desencadeou a observação do jovem.
— Se você tem mais oxigênio, tem mais força. E se tem mais força, tem mais forma e postura!
Era aquilo que faltava para que sua aptidão inata se somasse à vivência juvenil que estava ocorrendo.
Não bastava a teoria, mesmo da forma incrível e pomposa da herança de Noah. Era preciso experimentar o movimento, ter prática e execução.
Íris clareou o caminho de Noah.
— “Inspiração: obter energia… Respiração: carga potencial liberada… Condicionamento aeróbico e anaeróbio…” — seu subconsciente aflorou, adquirindo e assimilando as informações externas.
A herança ativou de uma forma incrível.
Os conceitos básicos de artes marciais foram mostrados como se estivessem escritos em uma lousa.
Noah cresceu muito após as instruções essenciais de Ingrid e Íris.
Em um curto espaço de tempo, sua melhora na aplicação dos movimentos foi visível.
Sob os olhares críticos e misteriosos de Marduk, ele observou o crescimento exponencial do mestiço em executar os golpes.
A exemplo da primeira aula, ele percebeu que o jovem tinha uma facilidade absurda em aprender movimentos com a repetição ininterrupta.
— “Então, jovem Noah, você obteve entendimento alígero…” — pensou o felino branco, cerrando o punho esquerdo. — “Isso me dá vontade de testá-lo ainda mais, mas não é o momento…”
E não era somente forma e consequência: Noah, aos poucos, executava chutes do Joon-sowen com a mesma precisão dos demais postulantes, quase atingindo o nível de Ingrid e, pasme, Íris.
— “Hum… Novamente o jovem Noah desenvolveu um crescimento…” — Marduk pensava, percebendo um crescimento nas capacidades do mestiço. — “Sua evolução é muito abrupta… e seu olhar, sereno e terno, se mantém. Fascinante e promissor…”
Na passagem de tempo desde o início da aula, a aplicação de Ingrid e Íris era louvável.
As duas conduziram a aula como se já dominassem o Joon-sowen.
Além disso, elas agiam como inspiração aos praticantes, principalmente ao Noah.
Enfim, foi uma aula bastante produtiva para os adeptos do Kaipasu.
E para Marduk.
- Nota: O Yoga Nidra é uma técnica de meditação que leva a um relaxamento profundo da mente, entre o estado de vigília e o sono.[↩]
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