Capítulo 73 - Mar de Revolta (Parte 10): o caminho a seguir
O treinamento foi bastante intenso.
O esgotamento de energias se estendeu a todos, sem exceção.
Exaustos, todos foram ao chão no fim da prática.
Inclusive Noah.
O albino desabou após o esgotante exercício quase ininterrupto.
Sua respiração ofegante, buscando ar, deixou claro sua doação no treino.
— “Uh… meu corpo está pesado e eu não consigo respirar…” — Noah respirava fundo, com seu corpo repousado no solo de palha e pano. — “Isso são artes marciais?!”
A volta das energias e do vigor demoravam um pouco mais em alguém sem condicionamento físico.
Enquanto recobrava as forças, eis que uma mão foi estendida em sua direção.
Na verdade, mais de uma, ainda que a segunda tenha demorado alguns segundos.
Ele olhou para cima e, ainda deitado, viu Ingrid e Íris trocarem olhares enquanto mantiveram suas mãos para ajudá-lo.
Era como um duelo de egos, mais uma vez.
— Ingrid, eu que vou ajudar ele! — a de olhos bicolores a fitava, com raiva estampada no rosto.
— Você tá querendo passar na minha frente, é? — a das ondas a encarou, com o mesmo brio.
Noah sorriu, ainda que de forma singela, vendo as duas daquela forma.
Ele, para dar um fim na disputa cômica, segurou nas mãos delas, se apoiando para se levantar.
O resultado foi imediato: a dupla se calou, ao mesmo tempo que uma vermelhidão tomou seus rostos, se estendendo para todo corpo.
— Obrigado… — o albino, sempre educado, as agradeceu. — Vocês me ajudaram muito.
No fim das atividades, com todos formados sobre o centro de palha e pano confortável do assoalho rústico, Marduk, com seu inseparável livreto, falava aos seus alunos.
— Hoje eu vi todos vocês se superando, com a força de Kai nutrindo as suas almas… — contribuiu a dizer, estendendo os braços para frente. — Kai é o Caminho! O Caminho de Kai é soberano!
Os clamores de todos os discípulos, com exceção de Noah, foram ouvidos aos muitos no salão.
Todavia, a apatia do híbrido, de certa forma, incomodou o zurkan.
Ele caminhou até o jovem, indagando:
— Jovem Noah, você foi agraciado pela doutrina do Kaipasu. Kai o chama por cada canto da Vila Aldeia Melanmarii… — ele o olhava nos olhos.
— Não estou aqui por causa do Kaipasu — ele foi direto, talvez até além do normal.
Sim, Noah foi seco e cético.
O que ele disse, além das conversas anônimas pelo salão, trouxe um semblante desanimador em Marduk, comportamento inesperado por todos.
O zurkan não ficou calado.
— Bem, eu entendo, eu entendo… — falou, rondando pelos flancos. — Um jovem como você, que não se adaptou a nossa cultura, ainda não aceitou a Kai. É compreensível…
O gato branco, cessando seu caminhar, se ajoelhou na frente de Noah, ficando logo à frente dele, no seu nível.
Modesto em sua ação, Marduk falou:
— Você não vê que sua força motriz é o Caminho de Kai? Todos nós vimos o quanto você galgou degraus aqui. Não existe outra explicação a não ser a força de Kai!
As preces dos demais voltaram, clamando com fervor quase fanático.
Nesse tempo, Iris e Ingrid olhavam para os dois, ainda acompanhando os clamores… mas não com o mesmo entusiasmo.
— “O que está acontecendo aqui?” — inflamou a exótica, pensando. — “Todos estão reagindo com tanta paixão que até estou assustada!”
— “O senhor Marduk está mesmo com vontade de mostrar ao Noah a palavra de Kai, mas…” — a das ondas também questionava. — “Porque tudo junto tá tão animado assim?!”
Mostrando humildade em seu gesto de estar ajoelhado, Marduk gentilmente pegou nas mãos de Noah, como um guia esperançoso.
Suas palavras subiram de tom, mais incisivo.
— Eu vejo potencial em você. Não sou tolo o suficiente para negar isso — suas voz, firme e persuasiva, continuou a ser ouvida. — Mas potencial sem propósito é um desperdício…
Os demais, praticantes do Kaipasu, jovens tanto quanto Noah, ou talvez mais, ouviam o discurso do gato branco com afinco.
Seus olhos brilhavam a cada palavra, que não cessou.
Ele fitava Noah, sem parar.
— Você luta, você cresce… Mas para quê? Para um orgulho tolo? Para provar a si mesmo que pode se erguer sozinho? Não… Kai está em você e não quer aceitá-lo por algum motivo.
Nesse momento, Marduk se levantou, diante de um Noah tão firme no olhar que mais parecia um duelo de egos.
Não uma disputa amistosa, mas sim de ideologias.
— O senhor conversou comigo ontem… e o que o senhor me disse me ajudou.
— Hm… Eu fico muito comovido por saber disso, jovem Noah… — Marduk abaixou sua face, voltando a olhar o jovem nos olhos. Ele puxou o ar antes de falar. — Minhas palavras te elucidaram, tenho certeza.
— Acho que sim…
— E posso saber o que? Diga, sem cerimônias!
Foi um momento de pura reflexão de Noah.
Ele não precisou fechar seus olhos ou se concentrar.
Tudo estava lá, já definido.
Coisas que pensou na noite passada, como ele mesmo anunciou, trouxeram dilemas, que sua mente especial se incumbiu de mostrá-lo.
Um passado feliz, cheio de ternura e amor, elucidou o que tinha de mais importante na herança: o convívio harmonioso com seus pais.
Noah nunca abdicaria de sua essência, seu existir no mundo e para o mundo.
Como lembrança da noite passada, em seu leito de descanso, suas lágrimas voltaram aos montes.
Involuntárias, elas saíram de seus olhos no momento em que, alimentado pela nostalgia, se lembrou e cantou a música que seus pais sempre cantavam
Enquanto estavam reunidos em noites de chuva, era um compromisso familiar sempre se reunirem para celebrarem a união.
Sua voz, com inocência e ternura contidos, saíram de sua boca, calma e suave.
Sem acompanhamentos, a capela.
♪Os ventos do amanhã são breves
♪Assim como os raios do sol, firmes
♪A estrela no céu da noite brilha
♪Nós estaremos lá um dia
♪A natureza sempre é uma mãe justa
♪Para que nunca esqueçamos de sua fúria
♪Lampejos de uma benção, jogue contra nós
♪Onde o almejar de trilhas lá teremos
♪Não se esqueça, não se esqueça
♪A vida é bela, bela é a vida
♪Enfim, o tempo passou…
Foi o que o ninou, pouco antes de cair no sono.
E foi o que acalmou seu coração.
O resultado da conversa veio a toda potência.
Ele tinha uma crença já definida, estava lá dentro e que foi posta para fora por, pasme, Marduk.
Externando sua herança incalculável, Noah falou:
— A natureza é a mãe de tudo… — disse, sem desviar o olhar. — Então foi isso que o senhor me fez lembrar do que minha mãe e meu pai meu falaram. A natureza… Ela me salvou e me deixou viver!
A imagem de uma mãe protetora, justa e poderosa veio a sua mente.
Ele projetou uma figura anônima, que transcendeu sua compreensão plena.
Alguém acima de seu pai e mãe, que moldava sua trilha nessa terra.
Mesmo com sua pouca idade, as palavras do mestiço fizeram o zurkan do Lugar do Caminho da Folha do Vulcão se levantar, com um semblante mais fechado.
Como última cartada, Marduk, ainda o olhando, disse:
— O que quer dizer com isso?! — o gato estava surpreso.
— Sei o que tenho que fazer agora. É isso.
O zurkan não aceitou tal comportamento. Tanto que insistiu em sua persuasão.
— Aceite o Kaipasu, Noah. Não como uma imposição, mas como uma escolha verdadeira — ele lhe estendeu a mão, com um sorriso emblemático. — Deixe que eu lhe mostre o caminho que pode transformar seu poder em algo maior do que apenas resistência vazia.
O pedido, eloquente e cheio de apelo espiritual, veio com uma resposta simples.
Noah falou com seu coração e alma.
— Eu escolho meu próprio caminho.
A sentença de Noah soou como uma bomba, cujos efeitos foram além do centro.
“Nunca antes eu vi quem dizer isso ao zurkan!”
“Porque ele disse isso?!”
“O que? Fazer o próprio caminho?!”
Essas eram as inúmeras frases ditas a rebeldia, característicos do grupo de praticantes do Kaipasu, naquele instante.
Ingrid, surpresa ao extremo, tentava entender o que estava acontecendo.
— “O que está acontecendo aqui? Porque o Noah tá falando essas coisas?!”
E Íris, a mais impactada, também tentava raciocinar.
— “Seguir o próprio caminho…?! Mas… Porque, Noah? Será que você não viu o que aconteceu aqui, ontem e hoje? Porque disse que foi a natureza que te salvou?! Você cresceu e foi Kai quem lhe deu tudo isso!”
A herança que recebeu de seu pai o trilhou para esse embate.
Sem questionamentos, nem arrependimentos.
Noah disse honestamente o que queria fazer.
Tudo que adquiriu de seus pais, assim como a de todos os seus antepassados, moldou sua moral, mesmo fora do tempo.
Sua frase, poderosa e feroz, foi um violento golpe contra o zurkan, que recuou um passo logo após ouvir as palavras conflituosas do albino.
— “O jovem Noah… Ele teve a petulância de dizer isso aqui?” — disse, o observando fixamente. — “Ele não desvia o olhar, frio como o gelo do inverno e firme como a rocha do cume do vulcão… Essa atitude, quase como uma heresia, me diz que ele…”
Antes que seu fio de pensamento completasse seu pré julgamento, uma voz foi ouvida no salão.
— MARDUK! — um grito ensurdecedor proferiu o nome do zurkan.
Todos olharam, ao mesmo tempo, para o extremo.
Ingrid e Iris disseram:
— Zome Lanumoaga?!
Era o canino azulado, com rosto de poucos amigos, logo atrás onde estava Marduk.
O zurkan, mantendo sua tranquilidade característica, se virou.
Logo, foi tirar satisfações:
— Sacro zume… Mais uma de suas faltas de decoro? — disse, com paciência. — Relevei sua falta de comprometimento com as vestimentas da Guilda Agalelei, mas bradar em ambiente do Caminho de Kai é passível de sanções.
— Sanções?! Está mesmo falando sério comigo? — seu olhar irritado deixou até mesmo os jovens com temor.
Isso incomodou o zurkan, que não recuou.
— Seu comportamento é inaceitável. Justifique-se.
Lanumoaga caminhou até o centro, até mesmo ignorando a etiqueta: sequer tirou seus calçados.
Estando a alguns metros do líder, expôs seu ponto.
— Ouvi conversas pelos corredores, que chegaram até o Altar Sacro, onde eu estava… — ele arregaçou as mangas de sua blusa. — Estou aqui para dar um chega nessa sua arrogância!
— A que se refere, posso saber?
O azulado apontou para Noah, dando sinais de que estava a par da situação.
— O está obrigando a seguir o Kaipasu.
— Isso é uma inverdade… — falou Marduk, ainda com o olhar tranquilo. — Sou o zurkan. Tenho o dever de levar a todos pelo Caminho de Kai, o único caminho seguro e justo!
— Sim, você é o líder, e Kai é o soberano, todos sabemos disso… — Lanumoaga olhou para Noah mais uma vez. — Mas ninguém, em hipótese alguma, deve ser obrigado a tal.
Inesperadamente, um novo embate envolvendo os dois principais influenciadores da Vila Aldeia Melanmarii recomeçou.
Marduk se impôs, como esperado:
— Converter almas perdidas é um dever que só cabe a mim. Todos em Big Sea Island tem ciência das minhas responsabilidades como líder. Não deixarei que inimizades e estripulias de um insurgente como você desestabilizem este lugar sacro!
— Ótimo, Marduk… — falava o canino, olhando para Ingrid.
Seu observar à jovem tinha um fundamento, como ele deixou evidente.
— Ingrid, Noah foi pressionado por ele, não? — disse, apontando para o zurkan.
— Ah… bem… eu… — ela tentou se esquivar, mas em vão.
— Kai não tolera mentiras, muito menos omissões. Diga a verdade!
Dogmas.
Ninguém poderia ir contra os ensinamentos de Kai, ao qual todos acreditavam.
Por isso, a das ondas não titubeou mais.
— Sacro zurkan só disse a ele a importância do que é seguir o Kaipasu. O Caminho de Kai o trilhou até agora…
Lanumoaga, atento, a ouviu.
O azulado, pensativo, pareceu entender o que estava acontecendo, mesmo as entrelinhas.
— “Era o que eu suspeitava…”
Ele confirmou para Ingrid, gesticulando com sua cabeça, que se calou em seguida.
— Iris… — desta vez ele se dirigiu a jovem de olhos heterocromáticos. — Você confirma o que Ingrid disse?
A jovem, relutante a princípio, se colocou em dilemas.
— “O que devo responder?! O que o sacro zurkan disse ao Noah foi… ah…” — em seus pensamentos, ela tentava divagar consigo mesma. — “Não posso desapontar o senhor Marduk! Mas…”
O canino azul insistiu.
— Íris, responda a pergunta!
Pressionada, foi espontânea:
— Sim… Foi o que aconteceu! — disse, fazendo o mesmo gesto que o azulado fez agora a pouco.
Ele, entendido, se virou para o gato branco, que o observava todo esse tempo com um pouco de incômodo.
— Ah, ótimo… — indagou Lanumoaga, voltando sua atenção a Marduk. — Escute, sacro zurkan: qualquer um que está na nossa ilha tem total independência da forma de viver.
Como consequência, o felino monge foi direto.
— Sacro zome, concedi a você e a zome Alfreedah total autonomia e autoridade para confrontar-me quando quisessem. Mas entenda: há hora e lugar. No momento, eu exijo que saia daqui imediatamente.
Sem dúvidas, a autoridade de Marduk era maior.
Nem mesmo Lanumoaga poderia ir contra ordens diretas. Sua rebeldia tinha um limite permitido, como ficou claro.
Por fim, ele obedeceu, se retirando do centro de treinamento.
Contudo, sua voz grossa e alta, que contrastava com a de Marduk, continuou sendo ouvida, mesmo enquanto caminhava para fora da área.
— Mesmo os cegos à palavra do nosso soberano devem ter o mesmo tratamento e respeito. Kai não tolera líderes opressores e sim os guiam pessoas usando suas palavras sabiamente.
— Peço que saia em silêncio, sacro zome… — falou o zurkan, sem lhe desviar o olhar.
Os jovens, espectadores do repentino conflito, só olhavam calados.
Seus olhos diziam por si só: era um misto de surpresa e temor.
Já quase no corredor de acesso, o canino azulado, olhando para Marduk, deixou um recado final:
— Nunca será “você” e sim Kai. Sempre será ele quem nos guiará. Só a palavra dele tem poder aqui, não a sua. Não é o único aqui que passa os ensinamentos de Kai… e sabe disso!
Lanumoaga deixou o local, voltando para o Altar Sacro.
O clima era de total incredulidade.
Ninguém sabia o que fazer ou dizer.
As conversas paralelas ocorreram aos montes, deixando tudo mais tenso e midiático.
Frente a um cenário caótico e desorganizado, Marduk só tinha uma opção.
E foi a que escolheu:
— Seguidores de Kai, dou por terminada a aula de hoje. Em caráter excepcional, gostaria que todos fossem para suas casas imediatamente e que façam preces a Kai por trinta minutos…— disse, revirando seu livreto. — Dispensados.
Isso fez com que todos seguissem com o ordenado, sem oposição a nada.
A obediência foi franca e explícita.
Os jovens deixaram o Lugar do Caminho da Folha do Vulcão, aos poucos, levando consigo muitas dúvidas.
Nessa mesma turma, as duas mais próximas de Marduk tinham uma ideia diferente.
— Ingrid, vamos falar com Noah agora!
Íris chamou por sua amiga sem perder tempo, correndo até o jovem.
Mas Marduk interveio: ele se colocou entre elas e Noah.
Confusas, a canina exótica disse:
— Senhor Marduk, o que houve?
— Vão para casa… — falou, ainda permanecendo à frente do albino. — Eu sei uma ordem e um dever. Agora sigam para casa.
— Só queremos nos despedir do Noah!
— O jovem Noah é meu protegido… — Marduk estendeu uma das mãos para o jovem. — Zome Lanumoaga não irá gostar se vocês me desobedecer!
— Mas… — ela tentou insistir, sendo puxada por Ingrid em seguida.
A canina das ondas a segurou, na tentativa de evitar mais problemas.
— Vamos, Íris. O senhor Lanumoaga vai ficar uma fera com a gente se ficarmos aqui — disse, abraçando a bicolores.
— Mas Ingrid… o Noah… — Íris insistiu em ficar.
— Vamos!
Eles deixaram o lugar, às pressas, para evitarem maiores complicações.
Esse era o entendimento de Ingrid.
— “O senhor Marduk novamente agiu estranho, igual ontem…” — ela se recordou do evento passado. “Aquele olhar… e agora isso que o Noah falou e o senhor Lanumoaga veio até aqui…”
Havia intrigas por todo lado.
Desde os jovens até os adultos, os conflitos enraizados na hierarquia da Guilda Agalelei já estavam tomando força nos demais habitantes de Big Sea Island.
Sem explicitar, essa ideia ainda não era uma realidade para a maioria.
Mas até quando?
Ao fim de tudo, restou Noah e Marduk.
O mestiço, com o mesmo olhar e feição neutra, recebeu de Marduk um olhar diferenciado, para bem dentro de seus olhos verdes esmeraldas.
Em contrapartida, Marduk recebeu o mesmo tratamento, mantendo o sereno e calmo olhar que tanto ostentava.
Os dois, frente a frente, pareciam duelar.
— Jovem Noah… — perguntou, o zurkan. — Quando olha para dentro de meus olhos, você vê Kai?
Noah entregou uma resposta em forma de pergunta, sob efeitos de sua herança de gerações, a que o alimentou, por instinto, até agora.
— Senhor Marduk, quando faz o mesmo a mim, consegue ver a Mãe Natureza?
Aquela pergunta, agente responsivo que o menino híbrido usou para se defender, teve um peso ímpar na mente do zurkan.
Dúvidas surgiram em seus pensamentos, de ambos.
Aquilo foi um ressoar.
Um prelúdio…?
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