Capítulo 74 - Mar de Revolta (Parte 11): ver além
A Vila Aldeia Melanmarii era palco de disputas políticas e intrigas de liderança.
Muito antes de Noah surgir neste cenário, o embate ideológico entre Marduk e Lanumoaga trouxeram para o pacato vilarejo questionamentos.
Em um lugar isolado de tudo em Avalice, era natural desavenças, mas não ao quilate que estavam desencadeando.
Com essa percepção do mundo, a história continua, em uma localidade inédita.
Residência da Família Lagi | Início da tarde
Lar do zome Lanumoaga e sua família, o local era ainda mais simplório quando comparado às construções da Guilda Agalelei.
A casa, toda em madeira envelhecida, tinha móveis feitos de palha e pano, com armários e estantes, que guardavam utensílios domésticos e papéis em sua superfície e interior.
A cozinha era integrada a sala de estar, com dois grandes sofás de madeira, luminárias de velas e um pomposo candelabro no centro, este feito de metal.
Ao fundo do salão espaçoso, portas que davam para os quartos, que sempre se mantinham fechados.
As janelas, do mesmo material rústico da casa, eram pequenas, quatro no total, que davam para os quatro cantos da vila, com cortinas de pano de cor azul.
Com o sol, que sempre lutava contra as nuvens espessas daquela região afastada de Avalice, ele estava a pino, indicando aos habitantes que era a hora do almoço.
A refeição já tinha sido servida por Orchid, esposa de Lanumoaga.
Ela era uma loba com pelagem esbranquiçada, onde seus cabelos azuis, assim como seus olhos, a deixavam à par da pelagem de seu marido.
Ela usava um vestido azul, simples, sem outros adornos.
A lupina era muito reservada, sempre em silêncio na maior parte do tempo.
Mas não todo o tempo.
Era também mãe de Olaga, que herdou suas características por completo (como segue a regra genética em Avalice). O garotinho de 7 anos sempre tinha um sorriso para compartilhar.
Exímia na cozinha, Orchid estava à mesa, acompanhando Lanumoaga, Íris e Ingrid na refeição.
Conversas durante o banquete da tarde eram um costume imutável na vila.
E, seguindo o rito diário, assim se fez justo.
— Mãe, o vovô vai voltar pra casa quando? — perguntou Olaga, tomando sua sopa.
— Em breve… — Orchid respondeu, mantendo sua seriedade no rosto o tempo todo.
— Ah, mas eu queria ele aqui logo! Tenho que dizer pra ele que eu já tô quase aflorando meu Nirvana! — o garoto mostrava entusiasmo em seu sorriso.
No outro extremo, lá estava Lanumoaga, onde sua irritação era visível em seu rosto.
Nas laterais, Ingrid e Iris trocavam olhares, em uma comunicação não verbal que já dizia por si só: elas sabiam que o canino estava irritado com o ocorrido de mais cedo.
Lanumoaga não deixou essa impressão inicial perder força. Ele expôs sua insatisfação:
— Eu juro, Orchid: vou fazer o que for possível para frear Marduk.
— Lanu… — falou a loba, mantendo o olhar distante, característica sua. — Aja sabiamente. O que fizer trará consequências…
— Estou ciente disso, Orchid. Só que não posso deixar que nosso líder desvie os ensinamentos do Kaipasu por pura ideologia.
A lupina, que na maioria do tempo era serena e introvertida, havia terminado de comer. Se levantando, falou mais:
— Quando você fala, é como se eu, Olaga e seu pai tivéssemos nossas vozes junto à sua.
— Orchid, eu sei bem onde quer chegar com isso. Não vou deixar que nada afete vocês!
Ela, com seus olhos azuis opacos, embora lindos, foi bem direta:
— Kai odeia qualquer manifestação de ódio. Lanu, não ouse semear essa emoção baixa em seu coração… — disse, caminhando para a área da cozinha. — Deixem a louça sobre a mesa. Assim que terminar o almoço, irei lavá-las.
Firme e calma, era constante Orchid limitar suas palavras, mas sempre deixava um recado forte e duradouro.
Sua simplicidade nas ações era sua maior virtude e força.
Lanumoaga recebeu a mensagem.
E era isso que o mantinha equilibrado o suficiente para ter sapiência.
Seu espírito rebelde precisava ter limites, e era em sua esposa onde encontrava esse status quo.
Tomando um copo d’água, olhou para Olaga, proporcionando um movimento entre pai e filho.
— Ol, então já está quase aflorando seu Nirvana? Muito bom saber disso.
— Estou sim, papai! — falou o menino, sempre sorridente. — Em breve vou entrar para o grupo da Ingrid e da Íris e vou ajudar a proteger a vila!
— Hehe… Vá devagar, Ol… — o canino o olhava. O pouco de interação trouxe um pequeno sorriso ao seu rosto. — Tenho certeza que você vai se sair bem, mas não se apresse. Aproveite para fortalecer seu espírito!
— Vou sim! Vou sim! — ele cerrou os punhos, pulando de alegria. — Quero muito aprender a arte marcial que o zurkan ensina!
Só em ouvir o título de liderança já foi o suficiente para trazer tensão ao olhar de Lanumoaga.
Ele, para quebrar o clima, liberou seu filho.
— Olaga, se já terminou de comer, vá limpar sua boca e poder ir brincar.
— É sério? Legal! — o garotinho saiu em disparada, para aproveitar o dia.
Ao vê-lo cruzar a sala, Lanumoaga voltou suas atenções as duas caninas, indagando a Íris:
— Aquilo que você me disse sobre o jovem Noah é verdade?
— Hã?! Ah… S-sim… — a canina estava um pouco sem jeito, gaguejando leve. — O Sr Marduk tentou convencê-lo e…
— Um engodo, isso sim! — falou, a interrompendo. — Marduk estava o coagindo, tenho certeza disso!
Ingrid entrou na conversa, a rebelia:
— O nosso zurkan nunca faria isso!
— O que? — a surpresa de Lanumoaga não durou mais do que alguns segundos. — Ingrid, você tem o direito de defendê-lo tanto quanto eu de criticá-lo.
— Ele tratou o Noah como a gente, exaltou a palavra de Kai como sempre fez, e nunca foi duro com ele, nada diferente do que é com a gente!
— Muito bem, eu respeito sua opinião… — falou, se levantando. — Contudo, eu vejo impressões diferentes de sua índole por toda a vila…
Indo até uma das janelas de sua humilde casa, Lanumoaga olhou para fora, vendo a vida cotidiana do lado de fora fluir.
O vai e vem de seu povo, sua gente de tantos anos, lhe trouxe várias lembranças de anos passados ao lado de seu pai.
Ele também viu Olaga brincando com outras crianças, aproveitando aquele início de tarde aconchegante.
Íris, o vendo fazer esse gesto, se prestou a falar. Sua confiança parecia ter voltado:
— Sr zome Lanumoaga, eu sei que o senhor quer o melhor pra todo mundo aqui na vila. Mas o Sr Marduk tem sido um mentor sempre presente pra todos nós. Eu não entendo porque fica tão irritado assim.
— Simples, Íris… — disse, olhando para as duas. — Desde o dia que eu as tomei como minhas protegidas, Marduk vem se mostrando um perfeito demagogo “entre linhas”.
As duas, mais uma vez, trocaram olhares.
Íris não demorou para se expressar:
— O senhor diz isso até hoje… — falou, mostrando um pouco de impaciência.
— Marduk nunca aceitou essa ideia até hoje também. Queiram vocês ou não, o fato é que o poder dele de influência é um ponto a ser combatido.
— Combater um zurkan de dar a palavra de Kai?! — desta vez era Ingrid, confusa.
Lanumoaga tinha um alvo, como ele deixou claro:
— Kai é soberano. Sua palavra está à frente, sempre. Meus questionamentos são direcionados só a Marduk, entenderam?
Tomando uma postura mais centrada e responsável, o azulado pôs as cartas na mesa:
— Vocês duas foram escolhidas por mim para serem minhas protegidas não só porque tenho estima por vocês, mas também para diminuir o poder de influência dele.
— O senhor disse isso no dia, eu lembro… — falou Íris. — Até hoje não entendi porque tanta preocupação.
— Porque tanto você quanto Ingrid tem um talento nato para influenciar as pessoas. Vocês são inteligentes, educadas, bonitas, gentis, sabem artes marciais… — divagou o canino azulado, caminhando até uma cadeira e se sentando.
Ele, já mais relaxado, voltou seu olhar para os delas, continuando a sua ideia:
— Marduk busca pessoas como vocês o tempo todo. Ele leva a palavra de Kai a um patamar digno do nosso soberano, admito, mas… — ele pausou suas palavras, olhando em seguida para um quadro.
Seu olhar voou até a arte: um navio em um mar revolto, lutando contra as ondas e com raios que tracejavam o céu.
Aquilo, como uma história, tinha um simbolismo que só Lanumoaga conseguia entender.
Foi nesse entendimento que definiu o diálogo:
— Controle e liberdade são duas coisas que não se combinam. Sem ordem não há progresso, mas sem liberdade não se encontra a paz interior. Se as ideias de cada um não são respeitadas, a palavra de Kai não ecoará para além mar. Nunca.
Ingrid e Iris não se mostraram entender ao certo o que Lanumoaga quis dizer. A mensagem passou despercebida pelas duas, já que eram muito jovens.
Ele, sem querer forçar passos maiores, se levantou e, caminhando para a saída, deixou uma valiosa lição oculta:
— ‘Veja o outro como você mesmo. O outro o verá como ele mesmo. No fim, ambos verão um no outro e seguirão o mesmo caminho’… — disse, prestes a sair da casa. — Trecho do Livro Sagrado de Kai. Pensem nisso, vocês duas…
Ele deixou a casa, sem mais citações ou palavras conflituosas.
Lanumoaga estava tão imerso em seu ideal que agiu de forma gentil sem nem se dar conta.
Ingrid e Íris, que ficaram na casa, refletiram, juntas, aquilo que o canino azul disse.
As palavras ecoaram em suas mentes, com o mesmo peso.
Abstratos, difusos e, até o presente momento, um amontoado de códigos.
“O que ele quis dizer com isso?”
Enquanto isso…
Mosteiro Mai Kai | Tarde
Logo após o almoço, Marduk e Noah estavam sentados em seu salão.
O local, ainda mais fechado, tinha um ar sofisticado: ao invés de madeira na maioria da arrumação rústica, paredes prateadas, com acabamento metálico, davam um ar solene ao local sagrado.
Uma mesa, daquelas de escritório, só que mais simplória, estava no extremo da sala, acompanhada de estantes com livros.
Logo atrás da grande poltrona da mesa, havia um altar, ainda mais reluzente que o da sala de reuniões.
O sistema de ventilação rudimentar captava a brisa externa, mantendo o ar fresco, mesmo sem janelas.
Velas, aos montes, em candelárias coladas nas paredes, iluminavam muito bem o local.
O conforto era pleno.
A moradia do zurkan tinha um quê a mais.
Nesse cenário, o albino, calado, terminava de lavar seu rosto após a refeição vespertina, no lavabo do salão.
Assim que terminou, Marduk surgiu no local. Ao abrir a porta, viu seu protegido terminar a lavagem.
— Jovem Noah, então… — o gato mostrou um sorriso ao perguntar. — Terminou seu almoço?
— Sim, senhor zurkan… — o mestiço lhe disse, de forma natural.
— Ótimo… — falou, se sentando à sua mesa. — Fique à vontade para descansar em minha humilde estalagem.
Noah assim o fez, deitando-se em uma cama localizada atrás de um biombo que separava os ambientes onde Marduk dormia.
Deitado olhando para o teto, se manteve em silêncio enquanto o zurkan fazia anotações à mesa.
Esse breve instante de quase total silêncio tornou os minutos seguintes quase como um efeito de suspensão: o tempo não passava.
Foi nesse momento que, ainda entretido nos seus afazeres, Marduk começou um diálogo.
Bem direto, por sinal:
— Aquela pergunta que me fez mais cedo… — recordou o gato, sem perder o foco das anotações. — Você tem a natureza como força mor… e se eu a vejo dentro de você…
— Sim, a Mãe Natureza é a que me guia — disse Noah, tão direto quanto seu protetor.
— Eu não vejo qualquer outro a não ser Kai nos seus olhos… — respondeu Marduk, ainda compenetrado nas notas.
Noah lhe entregou o silêncio após o que disse.
Por alguns minutos, o mestiço só se prestou a descansar, sem buscar conflito ou outro tipo de emoção.
Como característica, seu rosto neutro só contemplava o alto, onde buscou meditar.
Todavia, Noah, aproveitando a deixa minutos atrás, ousou demais:
— Eu vi uma coisa dentro de você… — falou, sem buscar contato visual.
Aquilo chamou a atenção de Marduk, como se fosse um sinal, algo que o conectava ao jovem.
Enfim, ele caminhou até Noah, o olhando nos olhos.
Sua dúvida lhe forçou um passo involuntário.
— O que vê dentro de mim? — insistiu o zurkan, em uma rara demonstração de destempero no olhar.
Categórico, o jovem albino respondeu:
— Medo daquele moço que apareceu lá no Lugar do Caminho da Folha do Vulcão.
Ele se referiu a Lanumoaga.
E isso foi motivo para que o zurkan, o até então equilibrado e perspicaz líder da Vila Aldeia Melanmarii, entregou descompostura em gestos, mesmo que ainda invisíveis à Noah.
Sua testa quase franziu por completo, por pouco transpareceu sua irritação, mas tinha controle emocional de sobra para evitar e manter as aparências.
No fim, se recuperou, mostrando o mesmo ar sereno de antes.
— Zome Lanumoaga é um de nossos benfeitores, Noah. Como eu poderia temer alguém tão apaixonado pela palavra de Kai?
— Ele te acusou de ficar insistindo pra eu aceitar Kai… — falou Noah, sem filtros. — Porque o expulsou?
Os questionamentos de Noah atingiram um ponto até antes inacessível de Marduk: seu ego.
Ele, como líder, nunca foi inquirido de tal maneira por alguém tão jovem.
Sabendo que não poderia deixar de respondê-lo, o fez mas com diplomacia.
— Certos assuntos devem ser limitados em hora e lugar. Onde treinamos não deve receber tais cousas. Zome Lanumoaga tem ciência disso e obedeceu sabiamente, jovem Noah.
— Ele parece saber muito de como o senhor vem agindo… — sem temor algum, o jovem falou o que vinha na sua mente. — Acho que aquele moço queria falar mais… e isso te incomodou, não foi?
Sagacidade simples.
Essa foi a tônica das palavras de Noah.
Sua naturalidade expôs um viés crítico, que uniu sua pouca idade à sua herança dos antepassados, que davam outro sinal de ativação inata.
O jovem não tinha noção alguma do mecanismo mas, de forma natural, aquilo ia se somando ao seu raciocínio presente.
O movimento mais inquisitor do garoto albino martelava em sua mente como estacas fincando colunas em um solo rochoso, mas que, aos poucos, as fissuras apareciam, deixando evidente seu abalo.
O primeiro pilar das estruturas de um líder foi atingido: a paciência.
— Você tem um potencial latente como artista marcial estupendo, jovem Noah… — falou Marduk. Seu olhar, baixo por Noah estar deitado, tinha um teor de superioridade. — Contudo, parece desperdiçar esse valor por baboseiras juvenis.
As palavras proferidas pelo líder, a princípio, não foram processadas por Noah. O linguajar carregado de termos específicos ainda não eram compreendidos por uma mente em formação.
— Lisuras como as que renega a Kai, inúmeras maneiras, causam-me anseios. Seria você um correligionário ou um reles insurgente alfétena? Essa curiosidade me causa asco…
Isso seria um fato consumado, se não fosse por um detalhe: o mestiço não tinha uma mente normal, típico de uma criança de 10 anos.
A Herança Eterna, cedida por seu pai, agiu segundos depois, no processamento, conseguindo colher o significado claro e cristalino.
Seus olhos buscaram foco, de quem acabara de descobrir nuances intrínsecas, daquelas que mudaria de forma drástica o jeito de ver as coisas daqui para frente.
De forma involuntária, Noah teve a mensagem em sua mente:
— “O senhor Marduk me vê como um aliado… ou um inimigo?!” — pensou, refletindo sobre o assunto. — “Mas… se ele gosta das minhas habilidades, porque está me dizendo isso? Porque? Eu… Porque estou tento esses pensamentos?! O que está acontecendo? Ele me disse isso mesmo?!”
Seu cérebro em formação sequer tinha conhecimento de suas habilidades inatas.
Noah, no momento, só ficou com o significado. Os sentimentos, conflituosos com o conhecimento, se perderam em dúvidas.
Ele não sabia aceitar e nem mesmo acreditar.
Era bem tratado, com dotes paternos por Marduk, tinha o centro das atenções.
Mesmo assim, aquela conversa mudou tudo.
Não por ter recebido o significado, mas por estar expondo coisas até então escondidas.
Ao contraponto, o zurkan do Lugar do Caminho da Folha do Vulcão o olhava com um sorriso no rosto, expressando, mesmo que de forma velada, uma alegria honesta.
E, por fim, o gato branco indagou:
— Amanhã é um dia de descanso, nada de treinos ou afazeres. Um dia sagrado… — disse, de forma cortês e gentil. — Jovem Noah, descanse, leia os livros que quiser da minha estalagem…
Apalpando o travesseiro macio onde Noah repousava sua cabeça, ele completou:
— Porque, no dia seguinte, teremos a Festa da Colheita. E sim, nesse dia, você vai gostar de conhecer nossos costumes. Teremos muita comida, pessoas felizes e louvores a Kai…
Após a notícia, deixando o jovem a sós, ele voltou a sua mesa.
E em seus pensamentos:
— “Você aprenderá uma bela lição, jovem Noah. Verá muito do que ‘Kai’ faz contra hereges…”
O que Marduk queria dizer com isso?
A tal festa traria as respostas…
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