Capítulo 75 - Mar de Revolta (Parte 12): prelúdio sazonal
“A verdadeira paz não é a ausência de guerra, mas a presença da justiça, da fraternidade e do respeito pela dignidade de cada pessoa.”
Papa Francisco (Jorge Mario Bergoglio)
☀️ 1936
✝️ 2025
Residência da Família Lagi
Dormitório das crianças | Tarde adentro
No interior da casa rústica, o quarto onde Ingrid e Iris descansavam, após a farta refeição daquela tarde agradável, era ainda mais simples.
Três camas separadas de madeira maciça, assim como um pequeno guarda-roupa e um espelho sobre uma mesinha, completavam a mobília humilde.
Tanto as paredes quanto o assoalho eram de madeira bem gasta, com um tapete azul no chão como único adorno decorativo.
Uma janela dava luminosidade natural de dia, restando a um lampião antigo como fonte de luz à noite.
O aroma agridoce do óleo queimado ainda pairava no ar, misturando-se ao cheiro da madeira antiga.
Era um odor que mostrava o contraste entre medo e esperança.
As duas caninas, deitadas uma em cada cama, tentavam relaxar após a conversa com Lanumoaga.
Ingrid, a que estava logo à direita, era a mais questionadora.
— O senhor Lanumoaga tá exagerando, Íris!
Sua afirmação convicta deixou a de olhos bicolores pensativa, que não durou muito tempo.
— Hm… — Íris puxou ar, dizendo em seguida. — Acho que tudo isso que está acontecendo vem há muito tempo.
— Ah, eu sei, mas… — Ingrid olhou para a janela, como se estivesse procurando por algo. — Ele não deixou que a gente fosse lá ver o Noah também.
— É, isso foi inesperado vindo dele… — a canina exótica deixou vaga sua fala.
— E o senhor Marduk falou pra gente voltar pra casa e não deixou a gente falar com ele também… — seu questionamento era evidente. — Eu só queria saber porque!
O silêncio tomou o cômodo assim que Ingrid levantou essa questão.
Um breve momento de reflexão se tornou em tensão, metamorfose ocasionada pela falta de conhecimento das duas jovens.
Mesmo nesse cenário confuso e abstrato, Íris levantou um assunto:
— Tudo isso parece se ligar ao Noah.
— O que?! — falou a canina das ondas, confusa. — O que o Noah tem a ver com os dois?
— Não sei, Ingrid. Eu só… — ela tentava elaborar uma linha de raciocínio. — Ah, o Noah disse aquilo de ‘a Mãe Natureza que guia seu caminho’… Depois disso, tudo mudou. Até o senhor Marduk ficou diferente.
Em um mecanismo similar ao de Noah, um engate ocorreu na mente das duas.
O ato de ligar os fatos e intermediar um vínculo entre os atos ocorreu simultaneamente.
Sem perder tempo, Ingrid saiu de sua cama, se sentando ao lado de Íris que, segurando sua mão, falou:
— Você já sabe, né?
— Sei sim… — a das ondas apoiou sua cabeça ao ombro da amiga. — Aquilo que aconteceu com a gente a três anos parece tá acontecendo de novo…
— O senhor Lanumoaga acolheu a gente, ensinou a palavra de Kai… e o senhor Marduk mostrou mais coisas e o Kaipasu.
Elas perceberam um rito, quase como um traçado do destino diante de seus olhos.
Contudo, havia pontos que elas, por serem ainda crianças, não identificaram como se deve, mas perceberam como jovens que eram.
— O Noah pode tá perdido, mas ele é uma boa pessoa… — Ingrid definiu seu ponto de vista.
— Ele é um menino bonito… — Íris, de forma doce, lhe fez companhia. — E meninos bonitos gostam de ser bonzinhos.
Tão logo, elas se recordaram dos últimos dias.
— Ele aprendeu muito rápido os movimentos básicos do Kaipasu… — Ingrid o ensinou, reconhecendo e percebendo seu crescimento.
— E ele lutou contra mim… — a de olhos exóticos pôs uma das mãos sobre seu coração. — Ele, depois que estava no chão, se levantou e lutou contra mim mesmo com o braço e a perna paralisados…
Era visível que, por ter mais contato em luta contra ele, Íris parecia a mais íntima a ele e ao que sentiu durante o duelo.
Mas foi além da luta:
— Ele te perdoou por tudo, Íris… — recordou a das ondas, a olhando. — O Noah… Ele te perdoou.
— Sim… — uma gota brotou em um dos olhos da canina exótica. — Tem algo especial nele, Ingrid. Ele… Ah… a gente tem que falar com ele.
— Temos sim, mas… — seu cuidado nas ações tinha um motivo. — O senhor Lanumoaga disse pra gente não ir lá no mosteiro.
— Ah… bem… — Íris pensou em algo logo a seguir. — A Festa da Colheita. Lá a gente vai poder falar com ele!
— Isso! Isso mesmo! — um lindo sorriso surgiu no rosto de Ingrid.
Esse sentimento da canina das ondas contagiou Íris, esboçando em sua fronte exótica uma expressão de felicidade genuína.
Embora a conversa melancólica e carregada de tensão ousou em deixá-las desoladas, o espírito jovem e simplório das duas trouxe força e docilidade em seus corações, trazendo de volta o mesmo ímpeto que demonstravam aos demais praticantes do Kaipasu.
Seja lá o que vier pela frente, as duas tomaram uma lição oculta novamente.
E, com isso, fortalecimento de seu caráter em formação.
O tempo na Vila Aldeia Melanmarii passou, com uma tarde tranquila para todos.
Horas depois…
Mosteiro Mai Kai | Noite
Salão de Reuniões da Guilda Agalelei
O recinto, no interior do mosteiro, já estava pronto para receber seus membros.
Como sabido, era um lugar sem muitos luxos, onde a única preocupação era do grupo religioso se reunir e também rezar, onde também havia um altar em ode a Kai.
Pela reunião solene, que tratava dos planos para a festa sazonal, os incensos exalavam um odor adocicado, mais do que o comum, de frutas vermelhas, trazendo energia, alegria, vitalidade e frescor.
Além disso, a temperatura ambiente, fresca, deixou tudo mais aconchegante.
Com a reunião já começada, lá estavam:
O cervo suko Haalaee, que era o mais sorridente, dado sua alegria por causa do festejo vindouro, a morcego ‘raposa voadora’ zome Alfreedah, com seus cabelos cobrindo seus olhos, e o canino azul zome Lanumoaga, único sem estar usando as vestimentas sacras da Guilda Agalelei.
Sua falta de decoro era um incômodo ao zurkan Marduk, mas passava despercebido pelos demais o seu singelo protesto.
Conectando todo o teor da discussão sadia, o grupo já estava tratando os assuntos há mais de uma hora.
O contexto da reunião, com as palavras do zurkan:
— Então, devemos entregar ao povo o que eles desejam de bom agrado: só clamores e rezas a Kai — falou, levantando suas mãos em sinal de reverência.
Suko Haalaee foi o primeiro a clamar, com muito mais entusiasmo e paixão do que o normal, indo até o ponto de fanatismo ou quase isso.
— Kai é o nosso soberano! — clamou o cervo, chegando a se levantar. — Divino é tua palavra, sacro zurkan! Contigo, iremos seguir os ensinamentos de Kai com ainda mais foco e amor!
Com um dos olhos cobertos, característica do azulado, Lanumoaga observava a demonstração exacerbada de Haalaee com olhares mais críticos direcionados ao zurkan, percebido pelo próprio.
Ele não deixou passar:
— Sacro zome, algo o está desviando a atenção? Tal incômodo lhe tira do clamor de Kai?
— Hm… — tomou ar o canino, cruzando os braços e fechando seus olhos. Era um sinal de indiferença. — Se está insinuando que desviarei minha fé a Kai por pouca coisa, está equivocado.
— Então me diga: porque esse seu gesto? — Marduk foi ofensivo, com intenção. — Está fazendo pouco da fé alheia?
Lanumoaga abriu seu olho, direcionado ao zurkan. Ele entendeu a mensagem oculta e não perdeu a paciência.
Já acostumado com as provocações veladas do líder, foi arrojado em dizer:
— Qualquer fiel que se incomoda com o que dizem da sua fé não está em comunhão plena.
Uma resposta simples, mas com peso abismal.
O choque de egos ocorreu quase como espada e escudo: o ataque se tornou defesa e vice e versa.
Eram como golpes furiosos de uma lâmina afiada em uma muralha imóvel e observadora, mas que não cedia por nada, uma defesa firme e sólida que sabia revidar.
O melodrama expôs na analogia exatamente o tom de atrito entre os dois.
Marduk, desta vez com um semblante um pouco mais irritadiço, se levantou, caminhando com elegância até Lanumoaga.
O canino, percebendo as nuances do caminhar inesperado do gato monge, fez o mesmo, mas sem elegância: suas mãos dentro do bolso, gesto grosseiro e delinquente, ia contra o zurkan enraivecido.
Ambos se colocaram a um metro um do outro, com os olhares fixos diminuindo a distância.
— Meu Nirvana se descontrola toda vez que suas atitudes desprovidas de cuidados caçoam das palavras de Kai — disse Marduk, com seus braços levemente abertos, com as mãos apontando para baixo.
— Um líder como você deveria ter mais cuidado com o que fala com seus subalternos, sabia? — provocou o azulado, sem tirar as mais do bolso, mas estando de lado, quase uma base de luta. — Há muito tempo você se segura contra mim, não é?
— Mais do que imagina, zome Lanumoaga… — uma leve iluminação nos olhos de Marduk deixou claro seu Nirvana ativo.
— Muito bem, zurkan Marduk… — sua voz carregada de tensão, feroz, incitou ainda mais os brios do líder. — Quem vai dar o primeiro passo?
A troca entre os dois tinha atingido o ápice.
A iminente via de fatos, concreta e fatídica, era questão de tempo.
Sabendo disso, e agindo por puro instinto protetor, eis que Alfreedah saltou para o meio da visão dos dois e, com os braços esticados e dedos, os três, abertos, deixando claro sua ação de impedi-los, tomou a atitude:
— Por amor a Kai, deixem suas diferenças restritas às suas mentes! — Bradou, com suas asas abertas, como defesas poderosas. — Estamos a um dia da festa mais importante da Vila Aldeia Melanmarii!
O cervo Haalaee também expôs sua opinião, ainda que estivesse mais na defensiva, atrás da mesa:
— Se-senhores, Kai não gosta de violência! Clamo a ele para que estejamos sempre unidos! Então, peço a vocês que parem de inimizades. Isso suja as palavras de Kai!
O cervo, o mais devoto entre os de seu clave, os sukos, tinha a voz branca e jovial, mas que conseguiu restabelecer a ordem e o pensamento em comum: honrar Kai.
Lanumoaga o olhou, com um sorriso no rosto.
Não era deboche ou coisa assim. Era um manifesto honesto, de agrado genuíno.
Ele olhou também para Alfreedah, dizendo:
— Sacra zome… Nos vemos na Festa da Colheita. E espero ouvir sua voz doce por lá, por favor.
O canino, após o que disse, foi até Haalaee e, com uma das mãos em seu ombro, disse:
— De todos aqui, você é o que eu mais tenho respeito… — disse, aproximando-se de uma das orelhas do cervo.
Lanumoaga, em um gesto humilde, lhe falou baixo no ouvido:
— A Deus.
Aquela última frase, simplória, cujo significado era vago, fez com que lágrimas brotassem nos olhos do suko, descendo junto a seu coração.
Ao sair do aposento da Guilda Agalelei, Lanumoaga, olhando para Marduk, que só observou seu breve caminhar pelo salão, falou:
— Sacro zurkan, deixemos nossas diferenças de lado, como o sacro suko sugeriu. Vamos esquecer que tivemos esse pequeno deslize de conduta, para o bem da comunidade.
Marduk, mostrando confiança em seu rosto, com um sorriso afagador, se uniu a razão:
— Pleno acordo, sacro zome. Que isso sirva de lição para ambos: Kai é o soberano. Ele tem as respostas, como todos nós sabemos.
O término da reunião se fez.
Enquanto Alfreedah conversava com Haalaee, o zurkan do Lugar do Caminho da Folha do Vulcão manteve sua postura imponente frente ao altar que tanto gostava de contemplar após as reuniões.
Contudo, seu olhar, ainda que sereno, natural que todos viam, escondia um rancor reprimido.
— “Lanumoaga… Sua insistente rebeldia um dia vai ser respondida. Até lá, que ‘Kai’ esteja mesmo com você…”
Seus pensamentos, contendo sentimentos adversos, eram um contraste ao que ele pregava.
Isso antecedeu o tom daquele dia cheio de intrigas.
O embate ideológico entre as duas frentes obteve um controle: suko Haalaee.
Um cidadão simples, fiel a Kai.
Mas que, sob a palavra de seu soberano, instituiu ordem frente a lideranças que deveriam ser exemplo, principalmente o seu zurkan.
Ele crê que, com a união, a paz e a felicidade de todos reinará.
Esse era o cerne da Vila Aldeia Melanmarii.
Pessoas simples, em tudo.
E que fariam o possível para ter mais desse utópico desejo.
Dentro desse contexto, esse era o principal motivo que o entusiasmado cervo ficou feliz em saber que teria o festejo que estava por vir.
E esse era o sentimento de toda a vila.
Um dia depois…
Centro da Vila Aldeia Melanmarii
O crepúsculo ao entardecer já tomava forma, com o ambiente levemente alaranjado, belo, dando a cor ao sentimento da ilha isolada.
Big Sea Island teria um fim de dia estupendo, como era esperado por seus habitantes.
Enfim, o grande dia, o evento sazonal mais aguardado por todos na vila chegou com força.
As casas, enfeitadas e com grande movimento em seu interior, davam o ar da graça, com os moradores, contentes, se arrumando para as festividades.
Crianças sorrindo e pulando.
Adultos alegres e de bem com a vida.
Melodias angelicais de instrumentos de corda e sopro, com percussão rítmica, eram ouvidos, saltando aos ouvidos e trazendo dança e gracejos.
Junto a isso, vindo do centro, um festival de aromas deliciosos. O cheiro das iguarias nativas norteavam os moradores, atiçando o paladar e causando encanto dos que lá estavam.
O lugar, repleto de pessoas, estava decorado por flores que demarcavam os corredores e vias, com estandes da comida local e, mais ao centro, um palco simples feito de madeira.
O céu, teto de todos aquele final de tarde, aos poucos recebiam estrelas.
A lua também foi convidada, mas não tinha dado as caras. Não ainda.
O brilho não estava só nas velas temáticas, que iluminavam os caminhos, de várias cores: também em cada olhar daquele lugar rústico.
O momento que todos esperavam a meses havia chegado.
A Festa da Colheita começou.
E vários eventos eclodirão…
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