Capítulo 76 - Mar de Revolta (Parte 13): Festa da Colheita
Centro da Vila Aldeia Melanmarii | Início da noite
Cercado de incertezas e dúvidas, o evento sazonal, durante sua confecção, continha inúmeros boatos sobre sua realização.
A invasão dos “Mal que habita” foi uma imensa calamidade, como muitos ressaltaram nos últimos meses.
Contudo, o povo unido e esperançoso da Vila Aldeia Melanmarii se agarrou em sua fé a Kai e mostrou um compromisso ímpar com o bem maior, que era a comunidade por inteiro.
A fartura de hortas e de fruteiras superou as expectativas, mesmo com o infame ocorrido.
O calor da fraternidade era sentido no ambiente festivo.
Seja no caminhar dos habitantes ou de suas danças ao ritmo da música.
Em cada canto do centro da vila o sentimento era o mesmo: satisfação pelo dever cumprido e o desejo de mostrar os resultados com todo o júbilo ao divino.
O tremular das chamas, seja em tochas, que iluminavam áreas mais distantes, assim como em velas, que cediam luz aos caminhos de flores, em um dueto belo, davam o clima caloroso do esperado evento.
Mas nada se comparava às chamas que ardiam na Grande Fogueira.
Ela, logo ao centro, era o símbolo do ímpeto guerreiro e batalhador de cada um dos moradores da vila na isolada Big Sea Island.
De longe, era o local mais visitado de toda a festa.
Claro, os quitutes deliciosos, tão procurados quanto a fogueira, eram o deleite da noite.
Raízes como o cobiçado aipim, a desejada e folclórica batata doce, o proteico inhame, e as famosas espigas de milho eram consumidas in natura, logo após a brasa deixá-las ao ponto.
As crianças adoravam, mas adultos também se esbaldaram no acontecimento culinário totalmente imerso na natureza.
Aos mais exigentes a uma boa comida, ao longo da festa havia barracas que serviam os mais variados tipos de iguarias como bolos de cenoura, torta de maçã, biscoitos sortidos, pipoca, porções de batata cozida com pimenta…
Portanto, um cardápio variado, que refletia a excelente colheita.
A fartura era evidente em cada detalhe.
Não só na comida, mas também nas cores, as grandes jóias do festival sazonal.
O azul, como o céu, era visto acima de tudo e de todos.
O amarelo, como o sol, também no alto, em grandes mastros.
E o vermelho, ardente como o fogo, simboliza a paixão por Kai, o amor, e a fraternidade, estava mais próximo do povo.
Em cada um dos habitantes, a gana deles estava estampada em seus sorrisos.
As cores só realçaram ainda mais esse estado de espírito.
A Festa da Colheita não era só um evento.
Era um personagem.
Não demorou muito e os convidados importantes começaram a aparecer.
O primeiro: suko Haalaee, acompanhado pelos demais de sua clave.
Todos da vila comemoraram enquanto o quarteto caminhava entre a trilha formada por flores. A retribuição foi imediata, com sorrisos e gestos amigáveis.
Logo atrás, lá estava zome Alfreedah, bem vestida, com uma roupa branca, que deixava suas asas de morcego “raposa alada” mais expostas, mantendo a elegância.
Seus cabelos, que cobriam seus olhos, estavam com um penteado mais arrumado.
Zome Lanumoaga, acompanhado por sua esposa, Orchid, e seu filho Olaga, também havia aparecido, mas sem tanta pompa.
Embora os habitantes tenham comemorado sua presença, a recepção do canino foi acanhada, restando só um aceno singelo, assim como os demais que o acompanhavam.
Ele recebeu os afetos do povo com mais discrição.
Ingrid e Íris vieram logo atrás, juntas, também bem arrumadas: ambas usavam um lindo vestido azul, com auréolas formadas com flores sortidas. Olaga estava trajado com calças e camisa azul, também com uma florida auréola.
O trio de crianças estava bastante animado.
— Nossa, Íris… — disse a das ondas, olhando ao redor. — Tá tudo junto aqui!
— Está sim, Ingrid — falou a de olhos bicolores. — Está sentindo esse cheiro? Estou cheia de fome!
— Eu também tô! — falou Olaga, sorridente. — Vamos comer, então!
Eles aceleraram o passo, ultrapassando a família Lagi.
Lanumoaga, ao observar o movimento do trio, deixou evidente seu desejo no momento:
— Quero vocês três por perto, ouviram? — falou ele, em um tom sério. — Como o combinado.
Ambas olharam, um pouco surpresas, mas entendendo bem o que ele quis dizer.
Diante do olhar autoritário do azulado, elas responderam:
— Sim, senhor Lanumoaga.
O quinteto, situado em uma das barracas, se serviram das guloseimas preparadas.
Enquanto comiam bolo, as duas conversavam, com o jovem lobo devorando um saco de pipoca.
O assunto não poderia ser outro:
— Droga, o senhor Lanumoaga não vai sair do nosso pé! — falou Ingrid, enquanto se alimentava.
— Devemos obedecê-lo, Ingrid — Íris usou a razão, também consumindo o bolo. — Lembre-se que prometemos nos comportar.
— Tá, eu sei… mas… — a canina olhou para a família, vendo que estavam felizes. — Ah, você tá certa. Essa festa é importante pra todo mundo, né?
— Sim. Por isso que não quero desagradar o senhor Lanumoaga.
Olaga, ouvindo o comentário, falou:
— Vocês duas tão falando do que, hein?
— Ah, nada, nada… — desconversou Ingrid, pegando outra fatia de bolo para disfarçar. — A pipoquinha tá boa?
— Tá sim! Tá salgadinha do jeito que eu gosto!
— Que bom, hehe.
Como não estavam sozinhas, Íris mostrou alívio após a das ondas ter conseguido contornar a curiosidade de Olaga. Aquilo foi mesmo um respiro.
— “Ufa! Ainda bem que Ingrid é esperta” — a de olhos bicolores ficou aliviada, mas ainda tensa.
Esse seu estado de tensão tinha uma explicação.
Parte do entendimento dessa situação veio logo a seguir, com quem acabara de chegar na festa.
Sob palmas e clamores, lá estava Marduk, ainda mais elegante, com um traje cerimonial mais pomposo: um manto branco que cobria suas vestes, e um capuz cravejado de runas devorava o alto de sua cabeça.
Reluzente frente às demais autoridades da guilda, era bastante evidente seu carisma aos habitantes da vila.
Os clamores eram direcionados ao zurkan, com entusiasmo e paixão. A popularidade dele era indiscutível.
Em todos, independente da faixa etária.
— Olha lá! — Ingrid apontou, sorridente. — O senhor Marduk chegou!
Íris e Olaga olharam, como a das ondas ressaltou, fazendo com que o trio, contentes, acenasse para o líder.
Ele olhou, reconhecendo os jovens, mudando seu rumo em direção a eles de forma cadenciada para não ser injusto com os demais devotos.
Enquanto caminhava no meio do aglomerado de fiéis, Lanumoaga observava o seu cortejo, com um olhar que demonstrava sinais de inimizade.
Sua esposa, Orchid, caminhou até sua frente e, puxando a atenção para ela, falou:
— Você… — seu olhar, bem nos olhos do azulado, era arrebatador. — Sabe muito bem o que deve fazer.
— Orchid… — ele tentou argumentar, mas seu suspiro lhe trouxe de volta um foco. — Ah, você tem razão… Eu sei bem.
— Bom… — ela beijou o seu rosto, com uma das mãos sobre o coração dele. — Kai está conduzindo essa festa. Cada um aqui sabe disso.
Esse diálogo antecedeu uma outra figura, central, que quase passou despercebida, de aparecer.
Alguém que, em um cenário adequado, seria o principal foco.
Marduk era o chamariz, e a situação fazia isso ter mais contexto, dado a receptividade dos moradores de Melanmarii.
Surgindo como se estivesse nas sombras, era Noah, caminhando entre o povo.
Contudo, ele estava trajando uma roupa diferente: calçados, calças e blusa com mangas da cor preta, com uma faixa branca na parte de cima de seu conjunto.
Mesmo assim, sua pele pálida e seus olhos verdes esmeraldas destoavam muito desse visual sisudo. Parecia até mesmo que era intencional.
Mas não de Noah.
Assim que apareceu, Ingrid e Íris fixaram seus olhares a ele, as deixando paralisadas.
Enquanto devorava uma espiga de milho, Olaga viu essa reação, ainda que seu apetite se mantivesse o mesmo, continuando a comer, distante do grupo.
As duas, engolindo seco, foram ao encontro do albino.
Noah também as observou, notando essa movimentação. Ele fez o mesmo, com mais afinco, desejando a aproximação depois de quase dois dias longe delas.
O reencontro estava prestes a ocorrer. O brilho nos olhos de ambos trazia ternura e um poder de conexão fora do comum.
A poucos metros, a realidade tomou espaço: Lanumoaga se colocou no caminho, mesmo de costas para Ingrid e Íris.
Como complemento, Marduk fez o mesmo a Noah, que precisou parar.
Outra vez, uma troca entre o zurkan e o zome tomou forma.
— Bonita festa. Não acha, sacro zome? — falou Marduk, com um sorriso no canto da boca, soando forçado.
— Tem razão, sacro zurkan… — Lanumoaga, um pouco frio, foi amigável. — Vejo que não veio sozinho.
Ele disse isso olhando para Noah, que foi chamado pelo gato branco.
Com uma das mãos afagando o alto da cabeça de Noah, aparentou ser empático:
— Hehe… Noah está muito feliz por estar aqui — ele olhou para as duas garotas, indo até além. — Ingrid e Íris, vocês estão muito bonitas com essas auréolas de flores.
O “indo além” foi explicitado um pouco depois que saudou as duas caninas.
Marduk mudou seu foco para Orchid e, entendendo sua mão a moça, falou:
— Senhora Orchid, bela como sempre… — disse, em um tom charmoso. — A festa toma contornos mais belos com sua adorável presença.
A etiqueta de Marduk estava condicionada com sua popularidade. Tal comportamento trouxe buchichos entre os fiéis, principalmente das outras moças que lá estavam.
Mas Orchid não era como elas:
— Sua gentileza é louvável… — ela lhe estendeu a mão, mostrando que era gentil. Porém, foi sutil na escolha de palavras. — Kai me trouxe aqui e só isso já me é suficiente. Lanumoaga é o regente desse laço.
Sem cerimônias e tampouco rodeios.
Orchid se impôs de forma educada e respeitosa.
Isso desconcertou Marduk, que manteve as aparências, com o mesmo sorriso acolhedor.
Ele também olhou para Olaga, dizendo a Lanumoaga:
— Seu herdeiro é um jovem muito querido, presumo. Tem o educado bem, sacro zome? — seu olhar provocador era sutil, como se estivesse debochando.
— O futuro do meu filho será brilhante… — respondeu o canino, com paciência. — Em breve ele fará parte do Lugar do Caminho da Folha do Vulcão… se ele quiser.
Um leve franzido da testa do zurkan que deixou escapar sua surpresa.
Por isso ele questionou:
— Hm… — Marduk o olhou nos olhos, ainda com um tom ofensivo. — O dará opções?
— Claro… — Lanumoaga, tranquilo, completou. — Kai mostra o caminho, mas parte da pessoa o desejo do que quer ser nessa terra.
— Um caminho diferente do de Kai…? — ele olhou para Noah, com o sentimento da última aula.
Aquilo causou dúvidas e questionamentos a Marduk. Internamente, por assim dizer.
Mas o canino azulado não lhe deu tempo para pensamentos:
— O caminho de Kai leva para diferentes direções, você sabe.
— Olaga irá seguir o correto então… — falou o gato branco, voltando a olhar o menino. — No dia que ele pôr seus pés no centro do Lugar do Caminho da Folha do Vulcão, verá em Kai sua grandeza.
— Que seja… — o azulado interceptou com o corpo o olhar insistente do zurkan a seu filho. — Até lá, ele vai crescer feliz e seguro, sob as lições de Kai… e de mim e minha esposa.
Marduk voltou a sorrir, com mais entusiasmo, mas percebendo o incômodo causado a Lanumoaga.
Em contrapartida, ele também sentiu desconforto, já que viu ali um sinal de resistência.
O embate deixava de ser velado, aos poucos.
Mas, ainda assim, o clima cortês e gentil se manteve.
Ele lhe deu as costas, voltando suas atenções aos presentes na festa.
Contudo, mesmo que tenha pensado em ter feito a última ação, o canino azul aproveitou esse relance para lhe dizer:
— Assumiu provisoriamente ou será permanente?
Foi uma pergunta totalmente fora de contexto, com intenção.
Isso fez com que Marduk se virasse e, cercado de dúvida e curiosidade, foi tirar a prova:
— A que se refere, sacro zome?
— Seu protegido… — disse, apontando para Noah. — Ele é seu, não?
— Isso o incomoda? — Marduk o fitou bem dentro dos olhos.
— Pra falar a verdade, incomoda sim… — Lanumoaga foi direto ao assunto. — Sabe das suas responsabilidades como protetor se assumir seu protegido.
Um dos olhos do zurkan reagiu, como se o incômodo viesse e ele tentasse o fechar. Um movimento singelo, mas deixou exposto para Lanumoaga que o atingiu.
Marduk, do contrário, virou seu rosto, lento, mudando seu foco.
Ele entregou silêncio ao azulado, sabendo que o barulho seria ensurdecedor se lhe dissesse alguma coisa.
Na frente de tantos fiéis, um embate real e visível mancharia não só sua imagem como destruiria o clima festivo.
— Divirta-se, sacro zome… — falou, levando Noah com ele. — Assim como sua família.
— Iremos sim, sacro zurkan… E tenha uma ótima noite de liderança.
O caminhar de Marduk no meio do povo levou a multidão com ele, deixando tudo bem animado no centro da vila.
Lanumoaga observou seu cortejo coberto de pompa e idolatria, deixando claro seu carisma irresistível da massa.
Contudo, havia algo no ar.
Alguma coisa densa e tensa, encaminhado para o opressor.
O zome, assim como sua esposa, olharam para Noah e viram um jovem desorientado, com olhar perdido.
— Lanu… — Orchid falava, segurando e apertando uma das mãos de seu esposo. — Kai me diz que aquele menino precisa de ajuda.
— Você sentiu também? — o azulado, preocupado, expôs suas impressões. — Ele está muito diferente do que o vi na ala de leito do mosteiro.
Orchid, se virando para ele, foi cuidadosa:
— Tudo o que você planejou não pode ser em vão. Kai sabe que há muito em jogo…
— Sim, Orchid… — fechando seus olhos, Lanumoaga ressentiu internamente um temor inesperado. — “Kai, soberano que sempre me deu um caminho, proteja-me e a todos à minha volta. Juro levar sua palavra até que o brilho de minha vida se apague…”
O clima festivo guardava um pesar trágico.
A comemoração era um sucesso, mas estava repleta de intrigas e mistérios.
Algo sinistro e mórbido estava no ar.
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