Índice de Capítulo

    “A mais profunda forma de desespero é escolher ser outro que não si mesmo.”

    Kierkegaard.


    Centro da Vila Aldeia Melanmarii

    Festa da Colheita | Noite adentro

    A comemoração sazonal prosseguia com toda pompa.

    Os habitantes, tomados pela febre de alegria e algazarra, celebravam suas conquistas e animavam os quatro cantos da área central da vila.

    Ao cair a noite, as duas luas, Dezoris, a maior, e Motavia, a menor, tinham comparecido no céu estrelado, embelezando ainda mais o teto natural que encantava a quem o olhava.

    À medida que a escuridão avançava, atenuada pelas tochas e velas acesas, um frescor da leve brisa trouxe consigo o cheiro costeiro do mar que circundava Big Sea Island.

    O ruído do mar batendo na praia era mais um chamado, interpretado pelos moradores como “um ode de Kai pela fidelidade à sua palavra”.

    O festejo, comemorado com afinco e várias demonstrações de fé a Kai, ganhava ares de milagrosa à medida que o tempo passava e a abundância não cessava.

    A fartura e a harmonia caminhavam de mãos dadas.

    Porém, existia alguém destacado, longe da integração com a festa, embora presente o tempo inteiro no meio do povo.

    Noah, ao lado de Marduk o tempo todo, deixava sua apatia ainda mais visível, mesmo que as demais pessoas não percebessem.

    Como característica mais marcante, seu olhar adimensional o pusera em um tipo de abismo existencial, o levando para um estado de pura desconexão com a realidade.

    Com esse contexto revisado, os eventos da Festa da Colheita continuavam a demarcar os rumos futuros.

    Um pouco mais ao fundo, próximo a uma tenda de doces, lá estavam Ingrid e Íris e, como já sabido, a Família Lagi, estando Lanumoaga, sua esposa Orchid e seu filho Olaga.

    O pequeno, com seu amável sorriso, era o maior orgulho de seus pais.

    — Olaga, não acha que já comeu o suficiente? — disse seu pai, de braços cruzados. Seu olhar, fechado, era visível.

    — Ah, pai… Eu gosto muito de batata doce! — falou o menino, segurando a verdura tostada na brasa da Grande Fogueira.

    — Vai passar mal se comer demais… Não exagere.

    O zelo com o filho mal disfarçava o incômodo que o corroía por dentro.

    Lanumoaga, na verdade, não tirava da cabeça o que tinha visto mais cedo.

    — “Eu tenho certeza de que Marduk fez algo… — ele fechou seus olhos, sendo um deles visível, já que o outro era coberto por seu cabelo. — “Se ele tomou para si a responsabilidade de ser o tutor de Noah, já não há mais o que fazer, é a lei da nossa ilha.”

    Mesmo que mantivesse atenção à sua família, sua mente estava a metros dali, maquinando sobre aquelas vielas enfeitadas com velas aromatizadas com cores sortidas que guardavam em mistério.

    Lanumoaga sentiu um frio na barriga, o desconforto aumentou, do nada.

    Sua respiração se tornou mais funda, como se algo comprimisse seu pulmão com força, quase sufocante.

    — “Essa sensação… O que está acontecendo?! — com seus olhos arregalados, em sinal de choque, pôs o foco para o centro.

    Logo à frente, viu o zurkan sobre o palco.

    O local, simples, possuía espaço suficiente para apresentações. Feito de madeira, tinha um teto feito de pano leve e suportes metálicos.

    A acústica permitia que qualquer pessoa conseguisse falar e ser ouvida sem problemas.

    Isso veio à prova, com Marduk a falar.

    O gato branco manteve sua postura elegante e palavras eloquentes:

    — Por todos os lados, sacros irmãos, temos fartura e comunhão. Esses dois vieses, que se completam harmoniosamente, são o maior significado do esforço de todos vocês!

    Os aplausos acalorados por todos eram altos a ponto de sobressair aos demais ruídos da festa. A plateia, com a felicidade estampada em cada rosto, mostrava-se contente e vislumbrada com as palavras iniciais.

    Receber elogios foi muito bem-vindo.

    Contudo, distante dali, Lanumoaga observava os efeitos do discurso.

    Sua análise cobriu por todo o centro, onde viu que todos deram ouvidos a Marduk, sem exceções.

    Durante sua leitura de campo, o azulado acompanhou com os olhos o zurkan do Lugar do Caminho da Folha do Vulcão, que continuou seu monólogo.

    Lanumoaga tomaria um baque após as tais palavras que Marduk proferiu:

    — Como vosso zurkan, é meu dever manter acesa a chama do ensinamento de Kai. Mas mais que isso… é minha vocação fortalecer os laços que nos unem, pois sem eles, somos apenas folhas ao vento! — disse, apontando para todos os presentes.

    Ficou implícito aos demais, mas não para Lanumoaga, o porquê daquelas palavras que acabou de ouvir.

    Marduk não parou. Ele foi além:

    — E sei, do mais íntimo do meu ser, que continuamos unidos. Porque vocês não apenas confiam em mim… — falava, colocando uma das mãos sobre o peito e, com a outra, estendida à frente. — Vocês sentem que isso é o certo. A fé verdadeira não precisa de imposição. Ela floresce… quando há clareza no destino!

    Dito e feito: o canino azulado trincou seus dentes assim que percebeu a mensagem.

    Estava codificada, mas clara aos seus ouvidos do teor e objetivo mor do zurkan.

    Sua vontade imediata foi de ir em direção ao palco, uma caminhada que só faria aumentar sua irritação.

    Porém, dando-lhe um ponto de pensar suas vezes, sua esposa Orchid se colocou entre ele e seu antagonista.

    — Lanu, pare agora — falou, o fitando. A loba, com olhar sereno, não saiu da sua frente.

    — Orchid, você também ouviu! — sua resposta veio com um tom de voz grosso e ameaçador, mas não direcionado a ela.

    — Também ouvi o que Kai falou comigo quando cheguei aqui: de te guiar pelo caminho correto.

    Esse gesto corajoso de sua esposa foi o suficiente para que se recolocasse na razão, ainda que sua irritação por Marduk não cessasse.

    Pelo contrário: ela só aumentou, lhe trazendo revolta interna junto com muita resignação.

    Orchid, agindo como uma conselheira, impediu uma atitude mais evidente e explícita de tal sentimento.

    — Você está certo em se sentir enojado, Lanu… — falou, apoiando sua mão sobre o coração do canino. — Mas Kai não tolera qualquer tipo de ódio. Mesmo o inimigo sendo cruel, se você semeia o mal, dele colherá.

    Lanumoaga, mesmo inquieto e cercado por dilemas, não pôde fechar seus ouvidos a sua esposa. Aquilo tinha um peso muito maior e mais impactante que o que ouviu de revoltante por Marduk.

    Ele se limitou a ficar imóvel e, olhando para a loba, falou:

    — Kai me abençoou em ter me colocado nesta ilha e ter te conhecido, Orchid. Sem você, acho que nunca conheceria um ser angelical que me daria um rumo na vida.

    Sem esboçar dizer algo, a loba restringiu suas ações a sorrir e apoiar sua cabeça ao peito de Lanumoaga, que retribuiu com um abraço carinhoso.

    Olaga viu isso e se viu no direito de fazer parte: pulou nos dois, exigindo atenção.

    — Ei, eu quero abraço também!

    Seu sorriso era contagiante, trazendo essa doçura para os rostos de seus pais, que atenderam seu pedido.

    Evocando esse contraponto de felicidade momentânea, no outro lado da análise da cena, lá estavam também Ingrid e Íris.

    Enquanto os risos da família Lagi ecoavam, como uma canção de paz, duas jovens guardavam silêncio e dúvida.

    Conforme as frases eloquentes de Marduk tomavam o interior confiante e esperançoso das pessoas da Vila Aldeia Melanmarii, um conflito interno tomava forma nas mentes das suas.

    A dupla, sempre juntas, sequer ouviam o que seu principal líder e mestre do Kaipasu estava falando.

    As palavras eram só um ruído quase inaudível, passando direto por suas mentes e saindo. Nem mesmo o símbolo de zurkan ressoava como antes.

    Suas atenções só estavam em Noah.

    Esse era o único foco que as duas tinham desde que o viram na festa.

    — Íris, temos que falar com ele! — falou a das ondas.

    — Ingrid, eu quero fazer isso também. Mas… — retrucou a bicolor. — O senhor Lanumoaga não vai deixar. Você sabe muito bem da promessa que fizemos!

    O pragmatismo de Íris se baseia na confiança que o azulado tinha nela e vice versa. Incapaz de ir contra sua palavra, manteve firme a promessa.

    Porém, Ingrid, mesmo possuindo um senso de honra e moral como Íris, tinha em seu interior algo que a destacava da dupla: a atitude rebelde.

    — O Noah tá mal, Íris! Você viu que ele tá diferente!

    — Eu sei, está bem? Eu sei… — a jovem voltou seu olhar a Lanumoaga, se mostrando incomodada. Ela chegou a fechar seu punho ao mesmo tempo que segurou em seu vestido. — Só que… não podemos desobedecer ordens!

    A relutância de Íris gerou uma ira em Ingrid, que bradou bem alto:

    — ELE TÁ MAL, ÍRIS!

    O grito, com um teor de raiva e indignação, não tinha potência para chamar tanta a atenção, mas foi o suficiente para que Lanumoaga percebesse.

    Ele conhecia as duas melhor do que ninguém, por serem suas protegidas.

    Ele olhou, acompanhando de longe a movimentação suspeita da dupla.

    Voltando a conversa, Íris, abalada pelo berro, respirou fundo, quase respondendo a altura, mas se contente.

    Seu desejo era de pôr para fora sua angústia, a situação também infligia o mesmo dano causado a Ingrid.

    Impedida por sua responsabilidade de se manter íntegra, sua pouca idade (ela também tinha 10 anos) não lhe deu um entendimento de vida para processar tal sentimento.

    Ela manteve o silêncio, saindo de perto de Ingrid e indo em direção ao centro.

    A canina, que possuía três ondas em sua pelagem na testa, foi a seu encalço, sabendo que tinha atingido um ponto crítico na de olhos heterocromáticos, que se pareciam com jóias preciosas.

    Ingrid sempre estava em movimento como o mar, e Íris era mais recatada, mas parecia carregar o universo em seus olhos.

    Essa dicotomia movia as duas.

    Sempre na mesma direção, em tudo.

    Foi nessa mudança de postura de Íris que fez com que Ingrid a seguisse entre as pessoas. A fuga torturava a das ondas, que tinha dificuldades de acompanhá-la.

    — Íris, desculpa! — disse a canina, quase a alcançando. — Eu fui uma boba em ter gritado com você, tá ouvindo?

    — Me deixe em paz, Ingrid! — a de olhar exótico manteve a trilha.

    A inquietação das duas era uma constante naquela noite, onde Íris parecia lutar contra seus pensamentos enquanto tentava escapar da visão de Ingrid.

    Quase perto no palco, a alguns poucos metros de Noah, ela o olhava com curiosidade e apreensão, percebendo melhor que o brilho que viu nos olhos do mestiço não era o mesmo.

    Na verdade, não havia vida.

    — “Porque ele não olha pra mim?!” — Pensativa, continuou com sua angústia. — “Noah, porque você está assim? Isso não está certo…”

    Ressoando como um carma maldito, a música alegre do palco cessou, como um presságio do caos.

    Foi nesse momento que Ingrid alcançou a outra canina.

    — Finalmente, hein! — a das ondas estava até ofegante. — Eu pedi desculpas! Porque você não parou?

    — Te responder só ia me deixar mais chateada com você!

    — Tá, eu mereço. Desculpa de novo, tá?

    Elas, enfim, fizeram as pazes.

    Mas aquilo não era o foco.

    — Tá, pra onde agora, Íris? O que vamos fazer? Você tá ainda pensando na promessa que fizemos, né?

    — O tempo todo, Ingrid.

    — Mas o que fazer então? Temos que falar com o Noah!

    Não havia muito o que dizer. Íris tinha isso como um limitador do seu agir, como se suas mãos estivessem atadas.

    “Por que essa relutância?”, era o que o inconsciente de Ingrid trilhava a todo instante, revoltada com o estado de Noah.

    “Por que perder a moral?”, a indagação interna de Íris, comprometida em atingir a expectativa, realçava sua responsabilidade.

    Uma dualidade plausível.

    Entretanto, o pensar das duas sofreu uma pausa abrupta. A percepção do espaço em volta as trouxe à realidade dos fatos.

    Isso se deu porque o zurkan, que estava sobre o palanque, pegou na mão de Noah e desceu a escada.

    As atenções eram para Noah, por parte delas, mas a proximidade com o palanque era quase como um convite para ouvi-lo desta vez.

    — Que belos músicos temos, não? — falou Marduk, olhando para todos. — Uma salva de palmas com louvores a Kai!

    O bater de palmas ecoou, mostrando o entusiasmo dos que estavam na festa.

    Marduk continuou, dessa vez com mais calor em sua voz:

    — Peço humildemente a atenção de todos… — o gato monge, trazendo Noah a frente, tomou uma nova atitude. — Como já devem ter percebido, estou sendo acompanhado essa noite pela maior dádiva que Kai trouxe a nossa vila! Notifico a todos que, a partir de hoje, o jovem Noah terá a honra de ser o meu protegido!

    A multidão, emocionada, foi ao delírio, clamando a Kai e reverenciando à Marduk e Noah.

    O jovem, perdido em pensamentos, não tinha noção do que estava acontecendo.

    Seja lá se era sua vontade ou não, a verdade era que ele foi conclamado com tal honraria, título que todos da festa viam como algo extraordinário.

    Para Noah, só era uma palavra sem razão.

    Durante o anúncio inesperado, as reações foram muitas: Lanumoaga ficou horrorizado. Não pelo anúncio, já esperado, mas pela ousadia em fazê-lo logo na festa mais importante da Vila Aldeia Melanmarii.

    — Grr… Marduk, seu facínora! — falou, mas em um tom de voz baixo. A raiva era visível em todo seu rosto. — Não posso deixar que isso fique por isso mesmo!

    Nem mesmo Orchid foi capaz de pará-lo dessa vez. Ela o acompanhou, também sob estrita indignação.

    — “Por Kai, que Lanu tenha sapiência e que não tropece em pedras pontiagudas que o inimigo derrubou pelo caminho. O Caminho de Kai só pertence aos bem-aventurados…”

    O movimento também se deu em Ingrid e Íris.

    Mais próximas do palco, elas receberam a notícia com um abalo tão grande que quase não tiveram forças para seguir em direção a Noah.

    — “O que?! O senhor Marduk escolheu mesmo o Noah?!” — a das ondas não estava acreditando.

    — “Ele… ele está entendendo o que acabou de receber?!” — a de olhar bicolor entendeu além. — “O Noah nem comemorou, ou ficou feliz… O que devo fazer?!”

    Várias frentes, interessadas pelos mesmos motivos, mas de diferentes interpretações, rumaram para o mesmo destino.

    Nesse intervalo, as coisas no palco também se movimentam.

    Eufórico e com um sorriso apoteótico, Marduk levava o jovem, descendo o palanque.

    Ele, o zurkan, queria expor sua alegria, exibindo seu prêmio entre o povo que o adorava.

    Durante o trajeto, Noah esbarrava nas pessoas, sem saber o que estava acontecendo.

    Ele sequer se incomodava com isso, estando a mercê de sua mente bagunçada e estéril.

    Contudo, sua consciência começou a selecionar imagens de seus olhos, momentos que seu inconsciente buscou significados.

    Ele retratou famílias, com pais e filhos unidos e amados.

    Esses recortes de sua mente dilacerada só o torturavam ainda mais, como mementos de uma vida feliz que desejava ter e estavam fragmentadas, se estilhaçando junto com seu ímpeto.

    Seu luto era tão profundo que esse sentimento lhe tirava o porquê de estar alí.

    Não saíam lágrimas… e sim lamentos.

    Ambos foram em direção a um tipo de galpão de madeira, que fazia parte da festa.

    Um lugar mais reservado e polido, fino, que destoava do ambiente acolhedor da festa.

    O local, reservado, era como uma área de acolhimento, exclusivo para a Guilda Agalelei.

    Na frente da Zona Sacra da Festa da Colheita, lá estavam Ingrid e Íris.

    Elas tinham ciência que, ao entrar pelo portal daquele lugar, iriam mais do que desobedecer às regras.

    Uma batalha entre narrativas e dilemas seria a consequência de sua atitude.

    Em breve.

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