Aviso de conteúdo:
Este trecho contém temas sensíveis que podem afetar alguns leitores, incluindo trauma psicológico, questionamento de fé, manipulação emocional, dor intensa, e sentimentos de culpa e perda. Há também representações de sofrimento mental e simbolismos religiosos em um contexto tenso. A leitura é recomendada para maiores de 14 anos, e deve ser feita com cautela por quem está passando por momentos delicados emocionalmente.
Capítulo 79 - Mar de Revolta (Parte 16): Fuga do Silêncio
Dois dias atrás…
Residência da Família Lagi
Um pouco depois do treino tumultuado onde Lanumoaga invadiu o centro do salão do Lugar do Caminho da Folha do Vulcão e interveio contra Marduk, Ingrid e Íris chegaram em casa às pressas.
Ainda contaminadas com a confusão que foi instaurada, as duas, inquietas, falavam com Orchid:
— Senhora Orchid, o senhor Marduk não deixou a gente falar com o Noah! — reclamou Ingrid, tomando ar.
— Nós não o desobedecemos, mas eu achei isso tudo tão errado! — protestou Íris, com sua costumeira racionalidade.
A loba, calma e centrada, olhou para as duas. Sem se desviar de sua meditação, ela falou:
— Mesmo exercendo um papel questionável, o zurkan manteve a ordem. Kai está em suas palavras, mas temo que não em suas ações.
A dupla ouviu aquilo como um tipo de afronta ao zurkan, mas que foi colocada de lado assim que Lanumoaga surgiu pela porta.
Seu semblante fechado era um espelho de seu péssimo humor.
Sua esposa foi a primeira a perceber sua irritabilidade.
— Lanu, pare com isso… — indagou, serena, mas impondo sua vontade. — Tenho certeza que a expressão de seu rosto tem a ver com a vinda antecipada de Ingrid e Íris.
— Você está certa nisso… — o canino azul, tentando se controlar, mostrou seu ponto de vista. — Voltei do Altar Sacro e o que encontro pelo caminho? Marduk novamente bancando o intolerante.
— Isso é uma acusação grave… — ela se aproximou dele, o abraçando. — Ainda que eu não concorde com os métodos do nosso zurkan, o respeito é a base do Caminho de Kai.
— Eu sei disso, Orchid. Porém o que vi no Lugar do Caminho passou dos limites! Ele não pode obrigar ninguém a seguir as palavras de Kai!
Ingrid estava ouvindo a conversa, assim como Íris. Mas foi dela que partiu reações:
— O senhor Marduk não fez nada errado, tá?
— Ingrid, você pode tentar defender, mas até você sabe que tudo que o ‘nosso zurkan’ tem feito não é livre de críticas! O comportamento dele hoje foi… — o azulado foi interrompido.
— Ele clama a Kai todos os dias! — explanou a das ondas, de um jeito mais inflamado. — Para de falar mal dele!
Íris interveio, já que os ânimos ainda estavam exaltados:
— Senhor Lanumoaga, não queremos discutir essas coisas com o senhor… — sua fala, pausada, carregava teor emocionado. — Temos que falar com o Noah!
O pedido de Íris fez com que as suspeitas do canino ficassem ainda maiores.
Elas estavam mais preocupadas em falar com o jovem do que discutir. Por mais que Ingrid tentasse defendê-lo, aquilo era só uma forma de ocultar seu principal desejo.
Entretanto, Lanumoaga tinha um dom de captar mensagens ocultas nas palavras.
— “Marduk já deve ter pensado em implantar algo naquele menino…” — pensou, envolto em dilemas. — “O perigo está em todo lugar, até entre nós. Não posso arriscar tudo assim.”
Ele não parou de divagar, mesmo que internamente.
O canino estava certo de que teria de haver uma definição concreta:
— “Noah mexeu com aquele detestável em seu próprio campo. Tenho quase certeza de que vai querer tomar de volta o controle…”
Lanumoaga parecia saber das potencialidades de seu algoz. Por isso seu cuidado exacerbado.
— “Preciso protegê-las. Pelo menos, até depois da Festa da Colheita, elas não podem ficar no caminho… para eu saber os reais objetivos daquele traste e pôr meu plano em ação!”
Por isso, ele falou, olhando para as meninas dessa vez, expondo sua opinião raivosa:
— Marduk é astuto e ágil, principalmente quando está falando… — disse, olhando pela janela em seguida. — Não quero correr o risco de tê-las influenciadas por ele mais do que o cretino já conseguiu.
Orchid lhe chamou a atenção:
— Lanu, peço que limite seu vocabulário. Há crianças aqui e Kai não aceita linguajar ofensivo. O caminho até ele deve ter pureza plena, seja nas palavras, ações ou pensamentos.
— Perdão, Orchid… — ele se desculpou, estendendo sua mão até a da loba. — Se às vezes me excedo, é por causa da minha revolta contra Marduk.
Ele voltou suas atenções às meninas, que o olhavam com um pouco de temor.
Lanumoaga, pensativo, tentava raciocinar para definir bem sua estratégia.
Ele franziu sua testa, expressou preocupação e também, como já sabido, revolta.
No fim, tomou o ar, ganhando tempo para decretar sua decisão.
No fundo, elas já esperavam o que estava por vir:
— Quero que me prometam não se encontrarem com Noah.
— O que?! — gritou Ingrid, surpresa. — Porque isso?
— Senhor Lanumoaga, como pode pedir isso da gente? — A incredulidade de Íris era genuína.
O azulado, com o olhar fixo nas duas, foi direto:
— Até segunda ordem, para o bem de todas vocês, quero que me prometam não se encontrarem com ele. Vocês, como minhas protegidas, precisam entender que o momento é de extremo cuidado.
“Extremo cuidado”
Essa frase ecoou na mente das duas pelo resto da manhã até além do almoço.
A promessa veio com esse terror oculto implantado em seus subconscientes, como dois faróis brilhosos o suficiente para ofuscar a vista.
Era uma luz bela, porém que incomodava e trazia pavor.
Voltando ao presente, na Festa da Colheita…
Zona Sacra da Festa da Colheita | Noite adentro
Dentro do local reservado a Guilda Agalelei, mais da simplicidade da Vila Aldeia Melanmarii foi vista: um altar com um livro sobre a plataforma, lampiões iluminando o ambiente e, como adorno fino, um tapete azul.
Grandes almofadas e incensos de frutas vermelhas completavam o cenário religioso e dê resguardo.
Lá também estavam o suko Haalaee e a zome Alfreedah, recebendo a visita do zurkan Marduk.
Como esperado, Noah estava junto a ele, do mesmo estado que antes: acuado e com olhar distante.
— Sacro zurkan… — falava o cervo entusiasmado, sorrindo. — Que belo discurso! E que gesto bondoso acabou de fazer!
— É uma imensa honra saber que agora Noah é seu protegido! — a morcega “raposa alada” estava contente.
Tomando uma postura exibida, Marduk colocou Noah a frente, como alguém que estivesse mostrando um troféu após uma epopéia.
Sua satisfação, que pavimentou seu caminho para a fatídica vitória, era emblemática.
— Somente mais uma de minhas contribuições para a alegria de louvar Kai.
A conversa, cheia de simbolismos escusos, evoluiu benéfica ao zurkan, que coroou sua noite.
Haalaee, com genuína felicidade, se aproximou de Noah, o abraçando. A graça que carregava em seu sorriso deixava evidente seu contentamento com a notícia de minutos atrás.
— Noah, agora você poderá seguir o Caminho de Kai todos os dias! — sua fala, carregada de fé e positividade, disparou. — Amor, fraternidade, fartura, produtividade, saúde, paz e tantas outras dádivas sempre estarão a seu alcance! É uma oportunidade única ter nosso zurkan como seu protetor e…
Mesmo alguém tão puro e temente a Kai percebeu que, por mais que dissesse palavras motivacionais e positivas, o jovem parecia perdido.
Haalaee não só viu, mas também sentiu a frieza no olhar perdido do albino.
— Noah?! Ah… Olha, oh… — ele se assustou, sentindo uma pressão que apertava seu coração. — O que… Mas… — atônito, não sabia o que fazer ou dizer.
Sua reação, espontânea e honesta, foi de alguém que pôde ver além da matéria.
Sua fé em Kai lhe deu a sabedoria para saber que, no mínimo, havia algo errado.
Algo intangível e oculto, mas que estava aportando na superfície.
O soar de ruídos indescritíveis, sinistros e incessantes, vieram aos seus ouvidos, só por ele. Um sinal do horror, de alguma coisa oriunda das trevas.
O suko, hesitante, recuou, chegando a cair no chão na frente de Noah. Sua queda lhe gerou dor, visível em seu rosto.
Mas, assim que abriu seus olhos após contornar a dor sentida, olhou para o jovem e viu além do que olhos normais podiam ver.
Sua visão, clara e cristalina, de alguém comprometido com o bem estar das pessoas por meio da fé, foi capaz de ver um espectro, uma anomalia viva e insalubre.
Algo que não devia estar ali, que feria a ordem natural e espiritual de existir.
Enquanto mantinha seus olhos bem abertos, Noah abriu seus braços e começou a caminhar até ele.
Cada passo que executava era como de alguém importunado, suplicando por algo já a postos, um alento a seu alcance…
Um pedido de ajuda.
Sua súplica estava prestes a ser recebida por Haalaee, que entendia o recado aos poucos.
Mas antes de realizar a salvação, a oportunidade foi coberta por mais escuridão: Marduk interveio, o levantando.
A situação de Noah se manteve a mesma.
O zurkan, ficando entre os dois, falou:
— Você está bem, sacro suko?
— Ah, eu… Bem…
O jeito desengonçado de tentar achar palavras cresceu uma desconfiança no felino branco, que logo o inquiriu:
— Está atabalhoado porquê, posso saber?
— S-sacro zurkan, e-eu estou bem… — disse, saindo de perto dos dois.
O cervo fiel caminhou para próximo de Alfreedah. A morcega, que não estava entendendo aquela manifestação, mas sentiu que o ambiente não era o mesmo.
Estava carregado.
— “Estou sentindo uma pressão… O que seria isso? Não é tão fraca, e… Pesa sobre minha mente um incômodo de angústia. Por Kai, o que está acontecendo?!”
A zome, termo utilizado para quem tem um grau de responsabilidade focado na fé coletiva da Vila Aldeia Melanmarii, tinha o dom da audição e fala: era capaz de sentir e ver através do som.
O brilho que não tinha nos olhos, desde seu nascimento, foi capaz de proporcionar tal habilidade especial natural.
Pelo compartilhamento oral do ambiente, ela conseguiu experienciar as nuances do clima pesado que Haalaee recebeu no íntimo.
Tudo acontecia em um ritmo ligeiro, quase não dando tempo para respirar.
O movimento que Noah realizou não foi uma reação ordeira.
Ele estava lutando internamente contra aquilo.
Muito além de sua consciência, passando de seu ego, rompendo a subconsciência.
Envolvia, como última camada do existir, a conduta mais intimista de um ser: a sobrevivência instintiva (id)1.
Tanto que, após a breve análise de Alfreedah, o jovem esboçou uma frase, quase como um suspiro:
— A Mãe… Natureza…
Todos olharam para o mestiço, embasbacados com sua sentença falava com dificuldade.
Sagaz e astuto, Marduk minimizou a cena, repetindo o gesto humilde velado que o fez se conectar ao jovem: ele se ajoelhou.
— Jovem Noah, você disse alguma coisa? — falou ao céu de uma das orelhas felpudas de Noah.
— A Mãe… Natureza… — sussurrava, com sua voz ganhando força aos poucos. — Ela vai… me…
Haalaee e Alfreedah, atentos, tentaram ouvir o que o jovem, que travava uma luta interna sozinho, tinha a dizer.
Ledo engano.
De Noah.
O inimigo era forte.
— Noah, você viu aquelas famílias… — sem piedade, Marduk ousou. Sussurrando, ele foi em frente. — Eu sei que você as viu…
O olhar de Noah, que tinha ganhado um leve brilho, uma fagulha no meio da escuridão, tinha agora um breu como adversário feroz e impiedoso.
— Noah, Kai manteve aquelas famílias unidas. A felicidade delas é por causa de sua devoção a Kai…
A conversa, ordeira aos ouvidos de Haalaee e Alfreedah, por realçar sua fé, tinham um outro objetivo.
Era oculto a eles, mas ilustrado com todas as cores e traços pelo zurkan.
A chama que mantivera Noah ainda são, mesmo em seu estado catatônico, tremulava no meio das trevas, onde sombras perdidas tripudiavam de sua luta ingrata.
A Mãe Natureza, a que adotou como força divina, estava sendo atacada.
Não era só o luto que o consumia dessa vez.
O dano era muito mais intrínseco.
— Jovem Noah… — Marduk, indócil, cravou seu último arpão no espírito do jovem. — Onde estava essa tal ‘mãe’ quando seus pais morreram por sua causa? Sim… Com ela, você só perdeu. Vê?
Um golpe baixo, com o mesmo poder de destruição que o da noite anterior.
Aquilo minou o âmago do jovem, já em frangalhos, aumentando sua angústia.
Antes era só luto, já devastador.
Agora era o que tinha de mais precioso: sua identidade.
Bater nesse ponto não era só doloroso.
Era como um estigma. Nunca fecharia.
Longe de serem passivos, Haalaee e Alfreedah observavam a conversa, preocupados com Noah.
Marduk o cobria, não deixando brechas.
Porém duas vozes, doces e cheias de ternura, e também carregadas por revolta, foram ouvidas no recinto sacro:
— NOAH!
Todos ouviram, virando suas frontes ao mesmo tempo.
Eram Ingrid e Íris.
Juntas e de mãos dadas, sintetizaram o ato da intrusão inesperada, em um momento mais do que apropriado.
E aquilo, aquele chamado intenso e honesto, gerou na mente do albino uma reação instantânea.
Em seu interior, cheio de feridas, uma luz solitária no tamanho de um grão de areia percorreu por aquele vazio escuro, como um emissário.
E lá, dentro de seu existir mais interno, uma voz familiar foi ouvida.
Um chamado.
Uma ordem.
— Saia deste lugar… Fuja!
Tomado por uma força interior nunca antes sentida, Noah começou a correr em direção a saída, atendendo a ordem.
Ele a executou, sem rodeios, fugindo daquele ambiente coberto de hostilidade e maldições.
Essa era a mensagem que havia sido decifrada pelo último suspiro da sua mente estigmatizada.
Seus passos, largos e pesados, levavam seu corpo para fora, em um movimento que buscava escapar das trevas.
Eram terríveis.
E, nesse seu escape lúcido, passou por entre Ingrid e Íris, que abriram caminho sem se darem conta.
Assim que ele ultrapassou a estada delas, rastros de lágrimas límpidas e brilhosas foram ao ar, onde suas gotas molharam os rostos das duas caninas.
Os olhares dela, fixos, deixando evidente o susto.
Foi muito além: surpresas, Ingrid e Íris sentiram o peso daquelas lágrimas.
Com as duas paradas, ainda tentando raciocinar o momento, Marduk caminhou até elas e, confuso, buscou explicações:
— O que vocês duas estão fazendo neste lugar sacro? — falou, em um tom autoritário. — Me digam, vocês duas!
Não só dele, mas de outro alguém veio tal questão.
Adentrando pelo grande portal da Zona Sacra da Festa da Colheita, eis que Lanumoaga surgiu como uma sombra.
Ele estava mais irritado do que de costume.
— Eu também quero saber e… — o azulado lançou seu olhar para o zurkan. — Porque Noah saiu correndo daqui, Marduk?
— Sacro zome Lanumoaga… — indagou o gato branco, com um olhar que expressava irritação. — Você demorou para que viesse até aqui. Muito bem… Essa será uma noite longa, eu prevejo.
A aparição de Ingrid e Íris trouxe mais um dilema para a Festa da Colheita.
Desta vez o embate será mais crítico.
A fuga de Noah foi em razão disso também.
Mas, para onde? E porque? O que o moveu?
As incertezas eram muitas.
- Nota: é uma instância psicanalítica de Freud que representa impulsos primitivos e desejos instintivos.[↩]
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