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    Continuando no exato momento onde Lanumoaga questionou a ação de Ingrid, as duas estavam muito mais críticas.

    Ele fez a pergunta, mas a jovem não parecia a mesma garota de antes.

    Ela ignorou a súplica. Ingrid impôs sua vontade:

    — Você foi o único que tava com ele esse tempo todo… — ela falou com fúria, quase gritando. — O que aconteceu com o Noah?

    Sem rodeios, a canina o atingiu com a atitude arrojada.

    Tentando restabelecer o controle da situação, ele divagou:

    — O que está insinuando? E porquê está agindo dessa forma inconsequente, jovem Ingrid?

    Marduk foi forçado a questioná-la, deixando evidente seu incômodo.

    Foi o mesmo sentimento no último treino com Noah.

    Ingrid, sem medir as consequências, ousou mais uma vez:

    — Porque o Noah tava junto com o senhor com aquele olhar?

    — Ingrid… — Marduk franziu sua testa, sinal claro de irritação.

    — Tem algo errado, eu sei que tem… — ela insistiu mais, jogando para longe as formalidades. — RESPONDE!

    O comportamento da jovem, rebelde e questionadora, atingiu em cheio o ego inflado do felino branco.

    Mesmo sob essa pressão jovial, tentou manter as aparências, mesmo com o semblante, até então sereno, agora irritadiço.

    — Jovem Ingrid, diminua seu cólera tempestuoso! — falou, levando uma de suas mãos até a cabeça da menina. — Kai te agraciou com uma fibra inquestionável e todos sabemos que… — sua fala foi interrompida.

    Isso se deu por um simples gesto: com os cabelos cobrindo seu rosto, Ingrid levou sua mão até a do zurkan, a jogando para longe dela.

    Íris arregalou os olhos, incrédula com o que acabara de ver.

    Ela era a mais próxima dentre os jovens do zurkan e viu Ingrid rejeitar o toque carinhoso que todos os discípulos respeitavam.

    — “Ingrid… o que você fez?!” — seu dilema interno a dominou. — “Tudo isso que está acontecendo… é quebrar as regras! Você acabou de… rejeitar nosso zurkan?!”

    A atitude, vista por Haalaee e Alfreedah como uma imensa ofensa ao líder da Guilda, tinha um teor maior para a jovem.

    Aquilo foi como uma libertação.

    Uma ação poderosa por justiça e verdade.

    Seus dentes à mostra, simbolizando sua raiva, vieram também com palavras.

    — Quero saber… o que você… fez com ele… — sua fala pausada entregou o tom de indignação. — Me diga! O Noah… Ele não estava normal! Ele é seu protegido! Porque não foi atrás dele? Você é o nosso zurkan! RESPONDE!

    O somatório de emoções nas palavras acaloradas da canina impuseram um clima de rebeldia como nunca antes visto pela Guilda Agalelei.

    Até mesmo Lanumoaga se surpreendeu.

    — Ingrid, o que está fazendo? — disse o azulado, mostrando preocupação em seu rosto.

    — Todo esse tempo a gente só queria falar com o Noah, pra ficar com ele, conversar… Mas… do nada, não podemos mais chegar nem perto! Porque vocês colocam esses limites?! Já tô cheia disso!

    Ofegante, sua explosão emocional era evidente a todos.

    Sua determinação pode ter evitado uma guerra de egos escalonada para além de palavras veladas.

    Íris, contendo dúvidas internas, acompanhava a bravura de Ingrid.

    — “‘Ela está certa! A Ingrid está com a razão!’ — pensou Íris. — “Isso não tem a ver com desobedecer…”

    Sua moral, coisa que a diferenciava de Ingrid, havia rompido os limites.

    Não era só uma transgressão.

    Era o resgate de suas próprias identidades.

    Com sua honra abalada, o zurkan intercedeu à Lanumoaga:

    — Sacro zome, exijo sua intervenção imediata às suas protegidas! Não irei admitir mais manifestações como a de Ingrid a partir de agora!

    Marduk, incomodado, agiu de imediato.

    O canino azul, tomando ar após a série de acontecimentos, tomou a palavra:

    — Ingrid, recue. Agora!

    Sua fala, cheia de autoridade, deixou claro que não só o zurkan estava irritado.

    Contudo, o descontrole da situação ficou ainda mais escancarado.

    — Desculpa, senhor Lanumoaga…

    — Você está mesmo disposta a me desobedecer? É isso mesmo? — mais incisivo, impôs mais força em sua voz grossa. — Vocês não estão em uma situação de escolherem o que querem!

    Por algum motivo, isso trouxe um singelo sorriso no rosto de Marduk, que ficou à espreita aguardando a definição das ações.

    A direção que a discussão seguiu parecia ajudá-lo, de alguma forma.

    Todavia, o assunto não se resolveria tão fácil como imaginava.

    Nesse imbróglio, como uma tempestade seca, Íris se colocou em pensamentos, dessa vez mais profundos.

    Ela se recordou de lembranças recentes, de provas concretas de resiliência e ternura.

    Noah era a boa imagem que tinha como principal molde.

    Vê-lo lutar contra adversidades severas, se manter íntegro, mesmo com tudo jogando contra, até o dia que recebeu o maior presente: o perdão em forma de um afago terno do jovem albino.

    — “Ele não tinha motivos pra ter me perdoado e mesmo assim ele me perdoou…” — seus dilemas eram francos.

    Ouvindo seu coração, ela continuou.

    — “O Noah até encarou nosso zurkan, falou que segue a Mãe Natureza… e ele fez tudo isso sozinho!”

    Se antes ela já tinha ciência do real cuidado de Ingrid, Noah era sua força motriz que a motivou a rever seus conceitos e mover usando emoção e razão, sem se esquecer de quem ela era.

    De mãos dadas a Ingrid, esse elo de duplicidade ganhou jogos rumos.

    Voltando à cena anterior, Ingrid manteve sua postura, um ato heróico ou se rebeldia, rompendo todas as linhas de obediência.

    Lanumoaga crescia frente a Ingrid, dando um passo em sua direção. Ele ainda guardava o portal da Zona Sacra, impedindo qualquer um de sair.

    Sua fronte ameaçadora, de quem não gostou de ser desafiado, fez com que a canina das ondas começasse a tremer, temendo ações mais acaloradas e duras de seu protetor.

    Esse episódio esteve prestes a acontecer se não fosse Íris.

    Em um inesperado gesto de coragem, foi ela quem interveio frente ao azulado, o fazendo ficar ainda mais confuso.

    — Íris, o que está fazendo?

    — Me perdoe, Sr Lanumoaga, mas eu preciso dizer algumas coisas para o senhor…

    — Do que está falando?! Isso não é hora nem lugar para… — suas palavras foram interrompidas.

    — Então quando seria e onde? — ela falou mais alto o suficiente para ser ouvida. — Não, o senhor está enganado!

    — O que? Íris, isso que está fazendo é…

    — Eu sei! É errado, mas… Não é tão errado quanto nós, eu e Ingrid, ficarmos caladas sem fazer nada! Olhamos para o Noah e vimos alguém que não parece a mesma pessoa…

    Sua angústia só crescia.

    — Você não tem ideia de como isso machuca…

    Íris mostrou a todos, na hora e lugar corretos, o que ambas sentiam.

    — Ele inspirou a gente, me fez pensar em coisas que nunca imaginei. Eu não sei porque estou lutando, mas tenho certeza que isso vem do Noah! Eu… eu quero lutar por causa dele!

    Marduk, astuto como era, aproveitou o momento.

    — Jovem Íris, sua conduta rebelde é um inoportuno ocorrido. Mas, analisando suas palavras, vejo que está confusa e desviante…

    Ele estendeu sua mão, como um chamado.

    — Eu ofereço ajuda religiosa neste exato momento. E estou disposto a esquecer este infeliz deslize de vocês duas.

    A oferta, em outros tempos, viria de bom agrado.

    Mas Íris estava lúcida dessa vez: recusou sem hesitar.

    Não haviam erros a serem corrigidos no entendimento dela e de Ingrid.

    As duas estavam unidas nesse pensamento mútuo.

    Íris recusou, seu silêncio frente a mão estendida foi a resposta mais forte e apropriada.

    As mãos se apertaram com mais força.

    Lanumoaga, sabendo que aquilo estava perdendo o controle, tratou de impor sua autoridade:

    — Esse comportamento de vocês duas já passou do tolerável! — ríspido, ele falou ainda mais. — Vocês não têm ciência da gravidade da situação! Já estou farto de tanta desobediência! Vocês não são assim, então parem com isso!

    Íris balançou sua cabeça em sinal de negação.

    Sua ação, franca e simples, teve potência suficiente para fazer com que a paciência de Lanumoaga atingisse seu ápice.

    Entretanto, a jovem deu sinais que não iria recuar.

    — ‘Una sua fé, não esmoreça, faça seu caminho virtuoso entre os injustos e triunfe’… — indagou Íris, sem tirar o olhar do canino. — Você me disse isso inúmeras vezes…

    — Íris?! O que… — sua surpresa era real.

    — ‘Prove sua fé. Lute. Reaja. Realce a fé e repita tudo outra vez…’ — recitando outro verso, a garota continuou. — Eu nunca esqueci das coisas que o senhor me disse…

    As citações precisas que Íris falava mudou o cenário como se fosse um culto emocionante.

    As lágrimas que brotaram dos olhos de Haalaee foram o resultado mais contundente.

    Ele, o mais entusiasmado entre os membros da Guilda Agalelei, chegou até mesmo a unir suas mãos, em sinal de comunhão ao que era dito pela jovem.

    Alfreedah reagiu, em silêncio, àquela manifestação. A voz ouvida veio em sua mente:

    — “Isso que ela está dizendo… é do Livro Sagrado!”

    Usando suas maiores armas, Íris não parou:

    — ‘Aumente sua voz, o mais alto que puder, frente ao mal que te oprime. Você é maior, mais forte e mais sábio’… — concluiu, se dirigindo ao azul. — Eu e Ingrid não estamos fazendo nada de diferente do que VOCÊ nos ensinou!

    Naquele exato momento, a mente difusa de Lanumoaga, após quase ter seu cerne cegado por embates ideológicos contra Marduk, recebeu infindáveis lembranças longínquas.

    Ele regressou para bem antes de conhecer a todos, tendo só seu pai como companhia inseparável.

    Ele, mais novo, cheio de energia e vivacidade, era tão vulnerável emocionalmente como estava no presente momento de reflexão ante sua protegida.

    Em seu mais profundo âmago, ouviu a voz de seu pai, cuja imagem sempre esteve oculta:

    “Eu te ensinei como viver. A partir de agora, você decide como viver. Uma dica, meu filho: nunca se esqueça de quem você é e, principalmente, do que você ensinou. É um ciclo de resiliência contra a alienação.”

    Seu regresso ao presente, em sua mente, trouxe muitas coisas à superfície.

    Lanumoaga teve os brios despertados, limpando sua visão combativa e colhendo frutos maduros aos montes.

    Seus olhos, brilhantes, apagaram os traços de irritabilidade de sua alma guerreira.

    Longe de ser fraco, tampouco de mostrar apatia, ele recebeu uma lição que mudaria seu pensar.

    O canino não foi derrotado.

    Ele foi resgatado.

    — “Essas duas… elas… elas realmente…” — suas divagações internas eclodiram seu senso. — “Ingrid e Íris sempre seguiram o que eu disse e continuam fazendo. Elas não se desvirtuaram um segundo sequer!”

    Ele estava emocionado, mas não esboçou esse sentimento externamente.

    Mas, em sua mente acalmada, era como uma comemoração.

    — “Nunca pensei que veria uma manifestação de fidelidade tão grande às palavras de Kai na minha vida! Essas duas, sem dúvidas, são uma benção!”

    Essa palavra, a bênção, lembrou o canino de olhar para trás.

    Não em um movimento simbólico e sim literal.

    De forma breve, ele olhou para fora do espaço sacro, observando Orchid, que estava com suas mãos juntas uma na outra, que o fitava com ternura em seu olhar.

    No fundo, ele ressentiu:

    — “As respostas sempre estiveram ao meu alcance o tempo inteiro. Orchid estava certa em exigir que eu me mantivesse com a cabeça no lugar.”

    Suas emoções, revigoradas e todas no lugar devido, o moveram para um lado mais racional.

    — “Kai está comigo… e agora eu sei como agir e acabar com essa confusão de uma vez por todas!”

    O primeiro passo, de muitos, foi dado por parte do canino.

    Ele, dando sinais visíveis de calma e solenidade, olhou para as duas jovens.

    Com a voz tranquila, tratou de buscar aquilo que tinha perdido:

    — Me respondam: o que aquele mestiço significa para vocês duas? — sua pergunta veio acompanhada de um controle emocional. — Respondam com toda a sinceridade.

    Autoridade. Era isso que buscava.

    Sem ser autoritário.

    Ele era o protetor das duas, não um ditador.

    As duas caninas sentiram o tom de voz mais tênue e amigável, quase como de um pai.

    Aquilo desarmou suas almas rebeldes, que se tornaram, mais uma vez, repletas de ternura.

    — Um amigo que eu quero proteger! — disse Ingrid, sorrindo.

    — Um menino bonito que precisa de ajuda! — Íris tinha um sorriso tão belo quanto a outra canina.

    Lanumoaga, contente com a resposta, restituiu para si o controle que desejava.

    Afinal, ele já tinha percebido que nunca tinha perdido o que sempre construiu:

    — “Integridade, respeito, moral e ética inabalável, senso de justiça, uma luta incessante contra o mal… e a fé em Kai — pensou, esboçando um sorriso.

    Ele, com as duas mãos abertas, finalizou internamente:

    — “Tenho orgulho delas… Ainda mais agora, que vi que passei os ensinamentos do jeito que meu pai me ensinou. Me vejo nelas… e acho que muito do que eu sou está nelas.”

    Após fincar seus alicerces, um simples movimento transformou o desenrolar dos eventos para Ingrid e Íris: ele saiu da frente, dando passagem para as duas.

    — Vão… e encontrem o Noah.

    A abertura do portal pelo seu guardião.

    Alguém sábio a ponto de reconhecer os próprios erros e, ao mesmo tempo, ser justo e honrado.

    O sorriso lindo que surgiu nos rostos das duas foi uma premiação para Lanumoaga.

    — “A beleza de ter fé está no que se acredita sem que isso impeça de ser quem você é. E, além disso, não tirar das pessoas o que elas são…”

    Ele não tinha dúvidas, seu temor foi vencido.

    As viu correrem à sua frente, percebendo a alegria e o alívio estampado nas suas frontes angelicais.

    — “Não há mais tempo a perder. Ingrid, Íris… resolvam esse assunto de vocês. Eu preciso resolver os meus e, juntos, vamos mudar os rumos da Vila Aldeia Melanmarii a partir de hoje.”

    Mesmo diante de um desafio abismal, elas não perderam a graça.

    Até as flores de suas auréolas pareciam mais vívidas.

    E assim elas seguiram, saindo da Zona Sacra da Festa da Colheita, deixando para trás as barreiras.

    Só tinham agora um último objetivo.

    Resgatar Noah.

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