Índice de Capítulo

    A Festa da Colheita prosseguiu sem maiores problemas para os habitantes de Big Sea Island.

    Contrastando com o cenário da praia, todos estavam felizes e contentes com o evento sazonal.

    Entretanto, os dois maiores expoentes de liderança da Guilda Agalelei tinham esgotado a normalidade e os protocolos.

    O clima político religioso presente entre Marduk e Lanumoaga escalonou para seu maior ápice.

    O zurkan foi impedido de se levantar exatamente após tomar conhecimento por Haalaee de um novo concerto, sem que soubesse da sua existência ou interesse.

    — Sente-se, sacro zurkan… — disse o azulado, calmo e centrado. — Está tudo bem.

    — Posso saber o porquê? O sacro suko Haalaee acabou de dizer sobre a nova suíte… — ele voltou a ficar incomodado.

    — Nada do que se preocupar.

    — Sacro zome Lanumoaga, eu… — ele foi interrompido.

    — Chega disso, Marduk!

    Não um grito, mas uma ordem direta foi dita pelo canino, que deixou de lado as respeitosas etiquetas.

    Ninguém percebeu, já que foi discreto o suficiente para não levantar suspeitas. As atenções estavam no cervo flautista.

    O zurkan sentiu a inimizade, mas manteve a compostura, voltando a se sentar.

    Nesse contraponto, o azul falou:

    — Chega de guerras idiotas e mesquinhas. Somos adultos, então não há mais espaço para esse tipo de atitude.

    — Hum… — mais calmo, repousou seus olhos. — Sabe, Lanumoaga… faz tempo que tenho você como um rival. Claro, não a altura, mas ainda assim um rival. E sinto dizer que você sempre perde, e vai perder eternamente.

    Diante da tranquilidade de Marduk, o azulado não deixou por menos.

    — Não se trata de perder ou ganhar.

    — É mesmo? Então, veja só: estou rodeado pelo meu povo, alegre e sorridente. Além disso, todos da Guilda Agalelei estão mantendo a todos em comunhão plena em Kai… e nós dois estamos lado a lado.

    — Não há derrotas… — ele voltou as atenções ao palco. — É isso que queria ouvir?

    — Exatamente! — Marduk olhou para frente também. — Só queria saber se tem noção de que estou em vantagem no momento. Vejo que um pouco de dignidade ainda lhe restou.

    O sorriso irônico do felino monge no canto de sua boca coroou sua pseudo vitória.

    Claro, Lanumoaga jogou bastante limpo, como sempre fez:

    — Engana-se. Você diz que estou em desvantagem… Muito bem, Marduk: essa situação não existe. Não estou fazendo absolutamente nada político ou tentando rivalizar com você.

    — Saber disso é agradável. Reconhecer sua inferioridade é um ato nobre e admiro isso. É necessário ter coragem para se colocar no seu devido lugar de direito.

    Como resposta, a exemplo de outras vezes, o canino azulado se pôs nessa situação, deixando que Marduk colhesse os espólios de sua guerra.

    Todavia, a noite guardava uma resolução para o conflito.

    Lanumoaga, quebrando o silêncio, falou:

    — Você sempre esteve no comando. Só que dessa vez você viu isso sair da sua mão… — ele mesmo cessou suas palavras.

    A curiosidade atiçou o gato branco.

    — O que iria dizer, Lanumoaga? Diga!

    Não foi preciso.

    Vindo na direção dos dois lá estava Alfreedah, ainda mais bem vestida que antes: estava usando um vestido de cor azul, um traje que usava toda vez que iria cantar.

    Essa era a pontualidade que Marduk percebeu assim que a viu.

    — O que?! Sacra zome Alfreedah, o que você pensa em fazer?

    — Ora, sacro zurkan Marduk… — sua elegância era enorme. — Irei recitar uma canção.

    Por algum motivo, isso desencadeou reações no felino, que descambou a tremer de nervoso.

    Logo, se viu em um dilema, onde qualquer manifestação sua poderia manchar sua imagem frente ao povo.

    Contido, ele falou:

    — Qual música irá cantar?

    — Ah, bem… É uma música que ainda não tínhamos mostrado na assembleia. Iríamos fazer essa suíte para a abertura da Oração a Kai. Mas achamos melhor adiantá-la para hoje!

    A pressão sobre Marduk cresceu.

    O gato, curioso, não conseguiu esconder a tremedeira de sua vista direita, sendo notado por Lanumoaga.

    O canino se manteve calado, enquanto Marduk fez toda a honra:

    — Deixe-me ver o conteúdo dessa canção, s-sacra zome Alfreedah!

    — Mas é claro… — ela pegou uma folha entre as outras que carregava, a entregando ao zurkan. — Aqui, tome!

    Até a forma que pegou o papel, com pressa ao ler o conteúdo, foi com nervosismo.

    Seus olhos, atiçados pela curiosidade, seguiram alinhados a cada estrofe lida, quase como uma corrida contra o tempo.

    Não demorou muito, a letra era breve.

    Porém, ao terminar a leitura, ele segurou aquela folha com tanto asco e irritação que precisou fazer um imenso esforço para não deixar sua raiva explodir.

    Taquicardia ocorreu, assim como um suor em sua testa, ao mesmo tempo que seus caninos protuberantes surgiram no canto de sua boca.

    Marduk estava prestes a perder a compostura em um nível nunca antes visto.

    — “Essa letra… Essa letra… “ — sua contrariedade interna era avassaladora. — “Isso é um ataque à minha autoridade e liderança, muito mais do que antes ou qualquer outra que fizeram contra mim!”

    A contragosto, Lanumoaga lhe perguntou:

    — O que achou da letra, Marduk?

    Ele iria responder mas, ao tomar partido de seu redor, viu que cada um dos moradores da vila estava com o papel contendo a letra em mãos, percebendo que tudo já estava disseminado.

    O compartilhamento foi rápido o suficiente para que todos estivessem conversando sobre a música.

    Mais uma vez, Marduk se controlou, respirando fundo e se contendo.

    Lógico, ele não ficaria calado.

    — Abrirei uma investigação, baseada nessa audácia. Farei o que for possível para que pague por isso, Lanumoaga.

    O azulado ficou imóvel, aguardando o início da suíte.

    O zurkan não cessou suas palavras:

    — O preço por sua audácia será sua destituição como zome, Lanumoaga. Há provas claras que ferem os estatutos da Guilda Agalelei em todos os parâmetros!

    O silêncio do canino maltratou Marduuk.

    Ele durou minutos antes de Alfreedah subir ao palco e se encontrar com Haalaee e a orquestra.

    Para Marduk, foi uma eternidade, um martírio pomposo.

    Porém, um último acerto de contas era necessário, na visão de Lanumoaga.

    Antes do canino se levantar, ele aproximou seu rosto ao do gato, falando bem perto de seu ouvido:

    — Participar de seu jogo político religioso, assim como os demais que tentaram isso, foi um imenso erro… Mas tive tempo de voltar atrás e achar um caminho: o de Kai — ele foi bem sincero em suas palavras.

    E teve mais, talvez bem mais do que Marduk esperava.

    — Então, escute bem…

    A manifestação conflituosa de Lanumoaga tinha um contexto ímpar, que foi dito no sigilo que só um sacro zome teria a etiqueta suficiente para mantê-la.

    E sob esse contexto, o seu conteúdo se estende para além da Festa da Colheita, em uma outra cena.

    Praia Melanmarii | Noite Soturna

    A aridez espiritual era o que compunha a real essência do momento.

    De um lado, Noah, com sua fé na Mãe Natureza, talvez o único elo espiritual que lhe restou dos pais.

    Do outro, Ingrid e Íris que, por seguirem o Caminho de Kai, tinham nele o motivo de viver e desenvolver o Kaipasu.

    Cada uma das partes não tinha conhecimento completo da outra, o que trouxe um gosto amargo à breve relação do trio.

    No meio desse emaranhado, lá estava Olaga.

    Inocente, puro e simplista, vê-lo sem seu sorriso cativante no rosto era como não haver sol ou lua; um amálgama estranho e silencioso demais para ser ignorado.

    Sem metáforas, a presença do “Mal que habita” estava concretizada, embora só um dos jovens tivesse aptidão para senti-la, mesmo que parcialmente.

    O pequeno lobo era esse ponto, o termômetro espiritual que a praia tinha como dominância.

    O componente mais barulhento era o mar: ondas enraivecidas golpeavam a areia com mais intensidade, como se fosse uma manifestação odiosa e pronta para reclamar.

    O vento, pela força da brisa, também emitiu ruído, um silvado como de uma serpente maldosa.

    Enfim, o cenário refletia o estado de espírito, a quebra iminente do grupo juvenil.

    Íris tomou a frente. Nem mesmo a brisa teve força para lhe tirar a auréola de flores da cabeça.

    — Noah, escuta: estamos preocupadas com você! Olha só como você está e… Porque insiste em falar essas coisas de Kai? Será que você não consegue ver que ele te fez mais forte?

    — NÃO! — seu grito tinha ódio, em uma escalada abrupta. — Você sabe muito bem que ele só me fez ficar triste! NÃO! Eu odeio Kai! Eu odeio tudo desse lugar!

    — Você não pode odiar Kai! Tira isso da sua boca!

    — NÃO! Você que tem que calar a boca! Fica quieta… Vai embora daqui!

    — Não, Noah… — ela estava amedrontada com o ambiente. — Olha, você está perdido, como a Ingrid disse. Vamos voltar pra vila e lá o zurkan vai te…

    A pausa não veio de uma interrupção de Noah, ou até mesmo de Ingrid.

    Foi Íris, ela mesma, que parou de falar, onde uma lembrança lhe veio à mente.

    Até então esmiuçada, a imagem da recordação recente estava mais visível: Ingrid evitando o toque de Marduk com um tapa.

    Ela olhou para ela, dizendo:

    — Ingrid, aquilo que você fez…

    — Hã?! Do que tá falando?

    — O Sr Marduk. Você bateu na mão dele porque?!

    A recordação também saltou nos pensamentos na das ondas, a deixando pensativa.

    Contudo, sua reação foi referente a um outro recorte: no momento que Íris desafiou Lanumoaga.

    Sem responder, entregou outra pergunta:

    — O Sr Lanumoaga… Porque você falou daquele jeito com ele?

    A confusão causada tinha um motivo.

    O “Mal que habita”, imperando no subconsciente das duas sem pedir licença.

    Um mal que não tinha escrúpulos, o mesmo que atingiu Noah.

    Desde a primeira vez que chegaram à praia, o ambiente já estava contaminado pelo enxerto emocional do jovem albino.

    Eram Ingrid e Íris as afetadas desta vez, mas não consumidas por completo.

    Ainda.

    Em outro extremo, no interior da Festa da Colheita, os preparativos para a tão esperada orquestra estavam prestes a acontecer.

    A alegria do povo contagiante.

    A energia cintilante e cristalina.

    E a emoção à flor da pele.

    Destoando dessa sinergia positiva, o polo contrário também ocorreu.

    Marduk, sentado a sós dessa vez, esboçava um semblante sério, quase enigmático.

    Seu rosto neutro contratava com os demais, felizes com a vindoura apresentação.

    Porém, sobre o palco lá estava Orchid, manuseando sua harpa.

    Ela, a mais sensitiva e como única figura que enfrentou o “Mal que habita”, ressentiu:

    — “Ele está aqui…”

    Uma aura negra, proveniente do zurkan, propagou pelo ambiente, seguindo um rastro maldito para além dos festejos, indo em direção ao extremo da ilha.

    Marduk, calado e com olhar fixo no palco, parecia estar em transe, dado sua falta de brilho nos olhos.

    Lanumoaga, no outro lado do palco, bem próximo da sua esposa, disse:

    — Querida, o que houve?

    — Lanu… — ela já estava à frente da ocorrência. — Ele está entre nós…

    O canino sabia exatamente do que ela se referia.

    Calmo, indagou:

    — A música, Orchid. Ela é o verdadeiro poder. Nem mesmo o “Mal que habita” teria como atingi-la… mas que será golpeado por ela sem misericórdia… por Kai!

    Sem que soubessem do real alcance da calamidade percebida, os músicos da guilda começaram a afinar seus instrumentos pela última vez, momentos antes da suíte abençoada ecoar.

    Não havia volta.

    Aliás, sequer a trilha marcada garantia vitória.

    Aquilo não era uma disputa velada ou um duelo.

    Era uma entidade usando de todas suas artimanhas para angariar almas.

    O “Mal que habita” havia ganhado força, evoluindo para algo mais insalubre, além da ameaça corrosiva de almas.

    O Infortúnio, com letra maiúscula, como uma denominação.

    Um infortúnio venenoso sem escrúpulos , pondo seus poderes amaldiçoados a toda potência em um desejo mor.

    Sem que o relógio da vida parasse, os eventos se desenrolaram desta vez todos em simultâneo, no encontro do ponto culminante dos acontecimentos em Big Sea Island.

    Voltando a Praia Melanmarii, víamos as duas caninas em um meio inóspito até então: elas haviam perdido o norte, se esquecendo, até então, do que haviam lutado mais cedo.

    Elas se antepuseram a Marduk e, pasme, até mesmo Lanumoaga.

    Isso tinha um significado tão gigantesco que a lembrança lhes trouxe novos horizontes.

    Por um breve momento, ambas dialogavam internamente, mesmo que isso fosse impossível.

    Elas se encontraram nos pensamentos, no que precisaram passar até que chegassem até Noah.

    — “Porque eu esqueci disso?! Porque tá tudo tão estranho e…” — Ingrid estava tremendo, tentando manter a linha de raciocínio. — “Eu tô com medo…?”

    — “Eu lutei contra o senhor Lanumoaga porque?!” — Íris era mais contida, mas com o mesmo mal estar. — “Minha cabeça está doendo… e eu não consigo pensar direito…”

    O conflito atingiu seu auge.

    A presença sórdida do Infortúnio fincou suas colunas no cenário praiano, local onde a pureza sempre encontrava a natureza.

    Palavras e ações, em uma comparação direta e irrestrita, já não eram tão eficazes.

    Aos poucos, as duas caninas, pelo peso da dúvida e recuo emocional, estavam se aproximando da experiência terrível de Noah.

    Dentro de seus egos, no campo mais íntimo e único de cada uma delas, uma voz sinistra ousou invadir sua honra:

    — Ou te ave lou agaga mama, le tama valea…

    Um golpe certeiro, cirúrgico, que atingiu o âmago das duas ao mesmo tempo.

    Ingrid e Íris sentiram a pontada, que drenava seu interior como o de Noah em uma outra oportunidade.

    Com isso, o esvaziamento de suas mentes puras ocorreu.

    Porém, em contraponto disso, essa agressão recebeu a devida resposta.

    Com pureza.

    — Porque tão paradas?! Eu… EU ENCONTREI O NOAH!

    Olaga.

    Essa foi a primeira vez que gritou em toda sua vida.

    Sua ação, tempestuosa e inesperada, trará mudanças bruscas no desenrolar da situação insalubre que estavam mergulhados.

    Algo gigantesco no âmbito espiritual.

    Um mar de revolta real e inquieto se formou.

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