Capítulo 86 - Mar de Revolta (Parte 23): Ressignificação Solene
Como um mensageiro carregando consigo as respostas tão desejáveis, o pequeno Olaga, alimentado pela mais linda pureza que continha em seu coração, teve sua revolta abordada pela primeira vez em sua vida.
Seu comportamento explosivo trouxe irritação a seu rosto sempre sorridente.
Mas não no sentido negativo: o pequeno lobo o fez por fúria, por não aceitar a relutância.
Ele, transbordando de vontade genuína de cumprir com sua missão, lutou contra o Infortúnio… da dúvida e da discórdia:
— Mamãe me deu essa missão… Eu achei o Noah… PRA VOCÊS!
O brado de Olaga foi violento.
Um golpe da luz sobre as trevas com tanto poder que fez com que um feixe fosse propagado no plano espiritual, afastando a faixa temerária do “Mal que habita”.
Sua súplica enraivecida rompeu as barreiras, indo além do intangível e percorrendo para toda Big Sea Island.
Claro, em espírito. Sua palavra foi ouvida no local onde estava, mas a mensagem percorreu movida por sua fé pura e carregada de boas intenções.
A tal reação explosiva que executou golpeou a essência do “Mal que habita”, que causou reações em Marduk, em plena Festa da Colheita: o zurkan, em vislumbre do palco arrumado para a ocasião musical, franziu sua testa, o deixando quase com um visual demoníaco.
A influência maligna atuava nos dois cenários, dentro do que queria dominar… e devorar.
Voltando a praia, no ápice do embate espiritual, o recuo do Infortúnio aumentou, ainda que tímido.
Um pulsar em sua estrutura, no que o tornava firme o suficiente para manter sua presença maligna e tortuosa às caninas, ainda em conflitos internos.
— “Porque estou tremendo…?” — Íris mal estava se concentrando. — “Não estou… conseguindo respirar direito… O que está acontecendo?!”
O ambiente se tornou mais ofensivo e opressor, com ruídos estranhos vindo com o vento, causando ecos no vazio, já audíveis pela sua alma.
Assim como Ingrid:
— “O que… mas o que tá…” — sua confusão a estou acuada. — “Tem… tem alguém… Não! Tem algo… aqui?!”
Até a mais atrevida da trupe havia ouvido o mal, um estrondo agudo angustiante e perturbador, como o som de correntes esganando seu subconsciente, o tomando sem pudor.
Vulneráveis ao “Mal que habita”, agora já na forma Infortúnio, as duas caninas eram quase como uma oferenda fresca a uma calamidade faminta por desesperança e desespero.
Era a maior de suas conquistas, em uma só tentativa.
Um troféu carrasco, que possuía um valor simbólico para o Infortúnio: a destruição do núcleo de resgate.
O fim estava galgando degraus, que partiram de cima para baixo, cujo destino eram as trevas.
O abismo, que impunha sua autoridade frente a oponentes inferiorizados, deixando claro sua covardia.
O Infortúnio não tinha vergonha em assumir sua natureza.
Todo aquele mar revolto, com ondas grotescas e abissais, eram desafiadoras, terríveis.
Porém, se apegando ao acaso, havia uma força maior, que partiu dos menores dos oponentes.
Ele não tinha medo, nunca teve essa sensação antes.
Aliás, esse alguém não recuaria mesmo se tivesse noção plena com quem estava lutando.
— O NOAH TÁ AQUI! — Olaga gritou mais alto, ressentido pelo dever cumprido. — O que vocês duas querem agora?
As lágrimas que surgiram de seus olhos, os mesmos do seu pai, não eram tristeza e sim determinação e fúria.
Olaga era a coragem da sua forma mais genuína.
E foi dele que a luz brotou com força, que atingiu o subconsciente de Íris e Ingrid.
Sua arma, abençoada e conversa de brilho, era demais para o Infortúnio.
A reação ao realçar de seu brado afastou, mesmo que por segundos, a influência maligna covarde.
Isso elucidou todo o contexto, do porquê estarem ali.
Ingrid e Íris foram tomadas por um clarão interno, impregnado no íntimo de seu existir.
O fenômeno preencheu o espaço necessário para que soubessem olhar para a direção correta.
O porquê de estarem lutando… e por quem.
Era tão simples que, ao mesmo tempo, elas pensaram:
— “Nós estamos aqui… por causa do Noah.”
Ele era o centro, motivo pelo qual todos os incidentes traumáticos ocorreram na Vila Aldeia Melanmarii.
O epicentro do caos… e da liberdade.
O Infortúnio perdia a força, ultrajado pelo poder do pequeno, que tinha recebido aliados desta vez.
O “Mal que habita” era o fragilizado dessa vez, sem poder penetrar na luz criada.
Forte e bela, intensa e revigorante.
Elas enxergaram a trilha, guiadas por uma vela singela, mas que continha luminosidade tal qual a do sol, mesmo vindo de uma fonte tão pequena.
— “Essa luz… ela é tão… bonita…” — Íris encontrou na simplicidade do objeto sagrado seu norte. — “Ele está me levando para onde…?”
— “A vela… tá me chamando?! — Ingrid fez o mesmo, a seu jeito. — “Eu quero… Eu quero mesmo saber pra onde tá me levando!”
A metáfora aflorada ganhou a confiança das caninas, que enxergaram além do lógico.
Era a real ideia de que o caminho tinha liga e coerência.
Elas, aos poucos, descobriram a missão.
Não. Elas redescobriram o motivo.
O ressignificaram a um nível inimaginável, como o remédio adequado.
Mesmo com a direção restabelecida, as duas não estavam seguras. A luta espiritual se manteve, com o “Mal que habita” evoluído desejando retomar o controle da situação.
Contudo, a calamidade faminta não alcançaria mais Ingrid, Íris… e muito menos Olaga, o possuidor da sacra fonte de energia.
Com isso, buscou um alvo mais vulnerável: o albino.
Sua influência ressurgiu o monstro interno que feriu o jovem.
Com isso, toda a carga negativa foi realçada em exponencial no íntimo do rapaz.
Adentrando com toda força e velocidade no ponto mais fundo do jovem, já alcançando seu ego, seu ataque desta vez era para atingir o elo mais valioso do albino:
— Mãe Natureza… — falou o mestiço, olhando para o céu.
O que estou de Noah.
Esse era o alvo: sua fé pela Mãe Natureza.
No plano físico, local da praia Melanmarii, Noah cambaleava enquanto segurava em sua cabeça.
Ele parecia lutar contra o domínio, travando consigo mesmo o controle e a posse do que lhe era mais sagrado.
— Mãe Natureza… porque os levou de mim?! Porque… Eu…
Suas palavras conflituosas se somavam com sua angústia.
O Infortúnio era forte, mas ele lutaria mesmo assim.
— Mesmo quando eles estavam me salvando… não odiaram você… Mas eu… eu… — suas palavras, que saíam com dificuldades, tinham melancolia. — Essa dor que sinto aqui dentro… ela me sufoca, me deixa sem ar toda vez que eu penso neles…
Aquele era a ponta do vale da perdição que Noah estava prestes a adentrar.
Na verdade, um penhasco. Sem fundo.
No plano metafísico, ele estava mergulhado em dilemas.
A imagem criada pelo Infortúnio: o próprio Malae Faavavau. O cenário mais traumático que Noah enfrentou.
Logo abaixo, reclamando pelo o que era dele, o que o Mar das Predições Eternas via como posse estimada.
— Por tudo que aconteceu e acontece… Porque? — sua dúvida alimentava o grande mal. — Eu só queria saber porque você, Mãe Natureza, pode ser tão cruel…
A renúncia ao último símbolo de fé era o objetivo do “Mal que habita”.
O jovem estava quase cedendo ao fim.
Todo aquele arder na alma tinha um líder muito maior do que qualquer palavra escusa de Marduk.
Um ataque direto à sua identidade, à sua essência como ser.
Contudo, um movimento extraordinário, além dos olhares honestos, estava por acontecer.
Olaga reagiu ao ver Noah próximo do colapso.
Sem imagem metafórica, o pequeno lobo virou seu rosto na direção de Noah, percebendo que algo o atacava.
Seu movimento, brusco e simples, fez com que suas lágrimas límpidas e alimentadas por sua pavida coragem se transformassem em gotículas abençoadas.
Miligramas, ou talvez menos que isso, foram levadas pelo vento.
Na metáfora aflorada, tal brisa se tornou o mensageiro, que levou sua encomenda até o destino.
Gotículas minúsculas do líquido puro encontraram a pelagem branca do albino, contato físico singelo e invisível, mas que proporcionaram uma mudança considerável em sua psique.
Aquilo fez crescer uma força monumental, que tomava mais forma e potência.
Algo o moveu, o fazendo levantar seu rosto aos céus.
Com o reflexo de Motavia e Dezoris em seus olhos verdes esmeralda, um grito honesto e repleto de fé genuína ecoou por todo o cenário praiano:
— Mãe Natureza… eu te… adoro como meu Pai e minha Mãe!
As palavras fizeram surgir um silêncio agudo e destruidor, que se propagou como uma onda.
A frase, sem muito sentido aos presentes, significava muito para Noah.
Esse alçar, a escalada do que o jovem disse, teve efeitos imediatos em Ingrid e Íris.
Intrínseco, por assim dizer.
O olhar das duas buscaram o horizonte, o mesmo que Noah tivera a anos atrás, sob a tutela de seus pais.
O pensamento das duas se encontraram no interior de uma casa simples e confortável, junto com duas pessoas cujos rostos eram anônimos.
Elas, ainda mais jovens, brincavam na sala, sorridentes e alegres.
O amor que sentiam era abismal.
A sensação de proteção e amabilidade cercavam seu existir, dando um significado ímpar ao momento introspectivo.
Mas, como um raio, as trevas vieram com força, terminando com a convivência harmoniosa.
Da benevolência à malevolência em milésimos de segundos, onde sequer se lembraram qual foi o espaço tempo.
O fato era que aquilo foi perdido, e que nunca mais seria recuperado.
Foi naquele momento que, retornando a realidade, as duas, ao mesmo tempo, reagiram juntas ao evento vislumbre do passado e, por instinto terno que as duas ostentavam, assimilaram a dor da perda de Noah.
Tal qual o raio que lhes tiraram o que tinham, elas surgiram já abraçadas ao jovem, entregando a ele tudo que tinham de mais valioso: um abraço.
O gesto simples guardava um significado especial e marcante: foi o que receberam de Lanumoaga assim que surgiram em Big Sea Island.
Essa foi a última lembrança que tiveram.
Tudo que elas pensaram a partir de agora era o momento atual.
O passado lhe deu a resposta.
O presente, o dever da missão.
O futuro… a ser escrito.
Mas que dependeria da ação das duas.
Em prol disso, elas não cessaram seu elo com Noah.
O enlace, cheio de carinho genuíno, tinha um significado maior do que o gesto nobre.
As palavras de Íris, a mais sensível das duas caninas, deixou isso claro:
— Chega… Chega de sofrimento! Para… — suas lágrimas encharcaram a pelagem branca de Noah. — Só deixa a gente te abraçar e abraça a gente também!
Enquanto lágrimas saiam de cada um de seus olhos heterocromáticos, o “Mal que habita” foi golpeado pela razão interior da jovem que, sem misericórdia, também desferiu um jato noir, em alusão às trevas.
Ingrid também compartilhou seus sentimentos, para somar:
— Não solta a gente! Por favor, não solta a gente! — ela também chorava, sem parar. — Eu sei o que você passou… Nós duas também perdemos o que você perdeu!
A voz de Ingrid pareceu ferir o Infortúnio: o ressoar do som formou três ondas poderosas, análogas às que tinham em sua testa marcada. Sua energia criou um mar revolto, mas positivo.
O reagir de Noah, em sinestesia, ocorreu de imediato.
O seu olhar, distante e quase apagado, foi além das fronteiras do desconhecido.
Na verdade, em terras distantes que ele já esteve.
Um recanto cheio de brilho, com um povo unido e… pais amorosos e presentes.
Ele se lembrou dos dias que estava junto a eles, os melhores, e sua ternura era exaltada.
Era um aconchego agradável, afável e mútuo.
Uma sensação de segurança… e proteção.
Voltando ao presente momento, Noah se viu no mesmo cenário familiar onde era amado e cuidado com todo zelo.
Aos poucos, esse sentimento não era um sonho ou delírio.
— “Eles estavam comigo até o fim… e eles dois me protegiam até que não tivessem força…” — o movimento de racionalização dos fatos o curava aos poucos. — “Eu… eu não devo me preocupar… em ser o que eu sou!”
Todo o calor solidário que um dia teve a felicidade de receber e dar foi recuperado, fazendo seu coração ferido se curar e sua mente fragmentada juntar as peças, como a de um mosaico estonteante que se montava e formava uma imagem bela e… sacra.
Nesse contexto, e de forma instintiva, eis que as palavras sábias de Lanumoaga ecoaram no subconsciente das duas caninas.
“Veja o outro como você mesmo…”
O diálogo não era com palavras; o simples afago singelo, que uniu o grupo em um só já era o símbolo que dizia mais do que frases carregadas de lamentos.
“O outro o verá como ele mesmo…”
Foi naquele instante que a descoberta entre eles se fez: aquilo não era só um abraço e sim um chamado por socorro e comunhão… com o luto coletivo.
“No fim, ambos verão um no outro…”
As perdas, sejam elas explicadas e ilustradas, ou não, se encontraram em um único propósito que era compartilhar a dor e, nela, tomarem forças para seguirem em frente.
“E seguirão o mesmo caminho.”
O abraço foi a resposta.
Noah nunca teve seu luto, ao contrário de Ingrid e Íris.
Porém, sua força de vontade mudou o panorama da situação no Lugar do Caminho da Folha do Vulcão.
Seu movimento revolucionário não atingiu o credo a Kai… e sim as pessoas.
E, como resposta, as pessoas que mais o adoravam queriam estar junto a ele.
Não pela ação… e sim por ele ser o Noah.
Ele lhes deu ideias e elas lhe deram empatia.
Não era uma troca.
Era um somatório do que Lanumoaga disse dias antes da Festa da Colheita, e que tocou o interior mais tenro e puro das duas caninas.
Noah, ao concluir sua purificação de amor e fé, aceitou tal dádiva, caindo em prantos em seguida.
Suas lágrimas não tinham caído até então para expressar seu luto.
A dor de ter perdido os pais em um evento da natureza era grande mas, por causa desse evento traumático, pôde ficar mais forte e conhecer o mundo sob sua ótica.
O preço pode ter sido alto, mas o abraço e o luto reconhecido o isentou de toda a culpa que carregava desde então.
Mas faltava um último grão de areia para acabar de vez com a ameaça maldita.
O “Mal que habita”, mal perdedor, ousou pela última vez, uma tentativa covarde: invadir o espaço vulnerável entre os três.
Contudo:
— Ei, eu também quero entrar nesse abraço, haha!
Era Olaga.
Ele, sorridente, abraçou o grupo, sacramentando de vez o real poder da comunidade entre os jovens.
Uma dádiva poderosíssima e imparável, que agigantou o momento de união a um nível absurdo, aniquilando com um golpe poderoso a influência maligna do Infortúnio.
Poucas foram as palavras.
Nem eram necessárias.
A empatia foi mais eficaz. Avassaladora.
O pulsar dos corações bravos contiveram o real inimigo invisível que tentou arrebatar a pureza.
Entretanto, a guerra não foi vencida… ainda.
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