Capítulo 0 — Parte 4 — Me Perdoe
Após duas semanas, o dia chegou. Haveria uma noite nublada e sem lua, cenário perfeito para a primeira parte do plano ser executada. Lobo convidou Morcego para ir em uma cidade vizinha. Coelho e Raposa levaram Gato e Rato a um velho campo de treinamento. E Águia desafiou Pato para um duelo amistoso de água contra fogo. As peças estavam em posição.
Lobo e Morcego caminhavam por uma trilha estreita e fechada. À direita havia um pequeno vale cortado por um riacho, já à esquerda a mata era mais densa. Morcego caminhava à frente enquanto assobiava, tentando imitar os pássaros, enquanto Lobo, carregando as mochilas de ambos, a seguia.
— Onde fica essa cidade, Lobo? — Perguntou Morcego, cansada. — Estamos caminhando há várias horas e só vejo mato à nossa volta. Você se perdeu?
— Não, Morcego. Estamos quase lá… — Ele disse, vagamente.
— Está tudo bem? Você ficou quieto a viagem toda. Isso é por você estar com a minha mochila? Eu te disse que não precisava carregar as duas sozinho, mas você fez questão. Vê se não fica muito para trás, não vou notar se você sumir. — Ela comentou, olhando ao redor. — Ei, você soube que o Falcão quer eliminar o líder da capital antes de tomar o poder? Ele me falou que deixaria uma cidade inteira só para mim! Isso não é legal? Mal posso esperar para colocar as mãos naqueles vermes que se julgam melhores do que eu! O que acha? Do jeito que você é, é capaz de ele te dar um país todo! Que inveja…
— Um país todo, você diz? Bom, não acho que eu gostaria de ter tudo isso para mim. Gosto de pensar que somos todos livres.
— Isso de nada serve, já que sempre há políticos governando. “A liberdade que temos é aquela que eles nos permitem ter. O Rei só será Rei se houver aqueles dispostos a se curvarem diante dele”. Li isso em um livro. Legal, não?
Lobo permanecia se comunicando com frases curtas. Mesmo que o plano já tivesse sido definido por ele e seus companheiros, ele não queria ter que batalhar contra uma garota tão jovem como a Morcego. Ele era virtuoso demais para aceitar que as coisas acabassem dessa maneira.
— Escute, Morcego. O que você acha dessa ideia do Falcão? Eu ando meio perdido em meus pensamentos e não sei se o que ele quer é mesmo o certo.
— É sério? É claro que a ideia dele é a melhor de todas. Eu já estava cansada de ser deixada de lado das missões mais importantes só por ser uma jovem garota. Se expandirmos o nosso poder, Falcão finalmente terá que confiar em mim e deixará algo sob meu comando. Uma cidade não é nada perto do que a podemos conquistar, mas é o bastante para mim no momento. Eu quero ser reconhecida como alguém além da pequena Morcego da Ordem dos Cavaleiros Brancos. O que te deixa confuso a ponto de não gostar da ideia?
— Penso que estamos indo contra nossos princípios. A Ordem deve priorizar a busca pela paz. Não gosto de derramamento de sangue. — Ele pontuou.
— As nossas conquistas justificarão as nossas escolhas. A Ordem não tem “cavaleiros brancos” há muito tempo, Lobo. Nós nos tornamos vermelhos como o sangue daqueles que tiveram as suas vidas tiradas por nós.
Lobo então parou de caminhar e ficou em silêncio. Morcego parou logo depois, ainda olhando para frente, e abaixou a cabeça. Algo estranho estava acontecendo e ela estava começando a entender o que era.
— Por que está me fazendo essas perguntas? É um teste do Falcão?
— Não, é um teste meu. Serei sincero sobre o motivo de eu ter te trazido aqui, então acho melhor se virar. — Lobo pediu, com o olhar sério.
— O que você está tramando? O Falcão sabe que estamos aqui? Por acaso alguém sabe que estamos aqui?! — Ela perguntou, assustada, e se virou.
Lobo a encarava seriamente, sem demonstrar nada além do que estava estampado em seu rosto. Ele então soltou as mochilas no chão e se sentou sobre uma grande raiz, olhando para as formigas andando pelo chão.
— Acho que vai ser do seu interesse se sentar e escutar o que tenho a dizer. Antes que me pergunte de novo, Falcão não sabe que estamos aqui. Eu disse a ele que voltaria para a Terra por mais alguns dias, e que iria te levar comigo para te ajudar no seu treinamento. Não sei se sabe, mas na Terra a nossa ligação com o Véu Espiritual é muito menor do que é aqui. Foi a desculpa perfeita para que ele permitisse a nossa saída. — Ele explicou.
— Mas não fomos para a Terra porcaria nenhuma! O que viemos fazer aqui?!
— Conversar, apenas isso. Ouça, eu não concordo com o que o Falcão quer fazer, por isso pretendo impedi-lo. Você pode não concordar comigo, mas escolher viver é o mais inteligente a se fazer. Meus companheiros e eu decidimos que eu seria o responsável por te matar, mas estou sendo piedoso a ponto de te deixar escolher. Você é jovem e tem uma vida inteira pela frente. Não jogue tudo isso fora, Morcego. — Ele disse, esperançoso.
— Me matar?! Então você é um traidor! Quem são esses seus companheiros? Por que querem fazer isso? Diga a verdade, Lobo! — Ela exclamou, com raiva.
O semblante, que antes carregava espanto e choque, logo deu lugar a uma expressão de ódio. Lobo se levantou ao notar que ela tinha se exaltado e cruzou os braços assim que ficou de pé.
— Sim, isso mesmo. Eu não concordo com isso que está prestes a acontecer, assim como a Raposa, o Coelho e a Águia. Nós quatro decidimos colocar um fim na Ordem dos Cavaleiros Brancos. — Ele afirmou, convicto.
— Espere um pouco… Vocês planejaram nos separar para enfraquecer o grupo e depois lidarem com o restante? Se cada um de você lidar com quatro, apenas outros quatro sobrarão, e em questão de poder vocês terão vantagem. Apesar disso, você está disposto a me deixar viva se eu simplesmente sumir?
— Sim, exatamente. Você é esperta, espero que sua decisão corresponda…
Lobo logo foi interrompido por uma gargalhada da Morcego. Ele a olhava com atenção enquanto a mesma tentava se conter. Ela então lançou um olhar confiante e, ao mesmo tempo, desafiador.
— Você acabou de cometer o pior erro da sua vida, Lobo. Me deu de graça os nomes dos outros traidores. Depois de acabar com você, eu terei prazer em contar a verdade para o Falcão. Enfim, serei reconhecida por ele e por todos os outros. Não se preocupe, traidor, isso será rápido e indolor…
— Será? — Ele interrompeu. — Em quem acha que irão confiar? Na Águia, a noiva do Falcão, e no Coelho e na Raposa, dois dos membros mais produtivos da Ordem, ou em você, a garota que sequer é escalada para as missões de reconhecimento? Entenda a oportunidade que estou te dando e a aceite.
— Não, não, não! Chega! Eu sempre fui vista como a mais fraca da Ordem! — Ela exclamou, negando com a cabeça repetidamente. — Acha que eu não me incomodo em ser a única a não ter nenhum grande feito sendo contado nos discursos do Falcão?! Eu cansei disso! Eu não sou fraca!
Morcego então adotou sua posição de combate e se preparou para atacar. Lobo permanecia parado, encarando-a seriamente. Ele queria esperar até o último segundo antes de agir, pois tinha a esperança de que ela pudesse mudar de ideia, mesmo que não parecesse ser esse o caso. Morcego estava ofegante com essa situação inusitada e começou a sorrir.
— Que curioso… Como quase não sou mandada para missões de combate, não estou acostumada com essa sensação. Eu sinto a adrenalina correndo pelo meu sangue e meu coração acelerar. E quer saber? Eu me sinto ótima. Eu devo a minha vida à Ordem e àqueles que me acolheram. Não vou permitir que nada fique entre mim e a minha casa, mesmo que para isso eu tenha que matar meus companheiros e vários inocentes.
— Você não se arrepende do sangue em suas mãos?
— Pintarei os muros da Ordem com esse sangue se precisar!
Com pressa, ela avançou, se preparando para usar todo o seu poder, mas Lobo desapareceu diante dos seus olhos. Morcego olhou para os lados, assustada, e, antes que pudesse fazer algo, sentiu a presença dele atrás de si. Sem dar brechas, ele a segurou pelos ombros e se aproximou do ouvido dela.
— Perdoe-me… — Ele sussurrou.
Com pressa, Morcego se afastou e levou as mãos à cabeça, gritando de dor. Esse era o efeito da sua própria Manifestação. Ela caiu no chão, quase desacordada, e olhou para o Lobo. A habilidade dele era copiar Manifestações, então no momento em que ele a tocou, seu poder foi copiado.
As ondas sonoras que ele transmitiu no sussurro foram fortes o bastante para estourar os tímpanos da garota e comprometerem seu cérebro. Pouco depois, a jovem Morcego estava sem vida no chão. Lobo olhou para o céu, com o coração cheio de tristeza, mas aquele foi um sacrifício necessário para salvar o Extra-Mundo e a Terra. O primeiro passo foi dado. Lobo voltou para o quartel com calma. Quando questionado sobre o paradeiro da Morcego, disse que ela quis ficar por mais tempo na cidade onde ele disse tê-la levado. Sabendo que ela não era alguém de vital importância para outras missões, a desculpa logo foi aceita pelos demais.

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