Capítulo 54 — Insegurança
Tudo estava escuro. Kamito ouvia gritos abafados de uma garota chamando por ele, mas não conseguia identificar quem era. À medida que a escuridão ficava mais clara, a voz se tornava mais nítida, até que ele reconheceu: era Akane.
Ele abriu os olhos de repente e tentou se levantar desesperado, mas Akane o segurou pelos ombros, pedindo para que não se esforçasse. Todos o observavam com preocupação, sem entender o motivo de seu desespero. Raishi se aproximou, colocou uma mão firme em seu ombro esquerdo e disse que ele precisava relaxar. Segundo ele, o desmaio provavelmente tinha sido causado pelo gasto descontrolado de energia. Kamito o olhou assustado, mas Raishi parecia calmo. Akane, ainda segurando sua mão, apertou-a levemente, fazendo com que ele olhasse para ela. Seu rosto mostrava o quanto estava preocupada.
— K-Kamito?! Você está bem?! — ela perguntou, com a voz um pouco trêmula — Você desmaiou do nada, ficamos preocupados. Eu curei alguns dos seus ferimentos com a ajuda do Raishi. Está tudo bem agora, você já acordou. Você está assustado. Teve algum pesadelo?
Ela tentava acalmá-lo, entendendo que ele ainda estava abalado. Kamito olhou para o céu, procurando o sol, ele não fazia ideia de quanto tempo havia passado.
— E-Eu acho que sim… Por… Por quanto tempo eu dormi?! Droga! Eu acabei atrapalhando vocês! Precisamos nos apressar o quanto antes!
Assim que percebeu a possibilidade de terem perdido tempo, ele tentou se levantar de novo com pressa. Akane o segurou pelos ombros, impedindo que se movesse.
— Por que está me segurando?! Precisamos ir! Eu não sei quanto tempo passou enquanto estava desmaiado! Vamos agora mesmo! — ele insistiu, tentando se soltar.
— Acalme-se, Kamito. — Raishi interrompeu, mantendo o tom firme e tranquilo — Você só desmaiou por 15 minutos. Ainda temos tempo. Eu disse que temos uma hora até o sol se pôr, precisamos destruir o artefato até lá ou ele será ativado. Agora, você precisa se acalmar e me contar exatamente o que aconteceu. Você disse que teve um pesadelo?
Era estranho para Kamito vê-lo tão calmo, mais interessado no sonho do que no tempo que restava. Ele respirou fundo, ainda ofegante.
— Sim… Isso também aconteceu no dia que despertei minha Relíquia. Eu estava num local completamente embaralhado e confuso… Então parei no parquinho onde conheci a Akane e lá estava a minha Relíquia. Mas não era só ela, também havia alguém lá. — o garoto engoliu em seco — Ele era idêntico a mim, mas seus olhos eram negros com tons de azul, e seus cabelos também eram da cor negra. Sua pele era branca como papel e ele possuía a mesma Manifestação e Relíquia que a minha. Porém ambas também eram da cor negra. Quando eu apaguei, me deparei com ele novamente. Ele me chamava de impostor e de farsa, e disse que tomaria meu corpo e mostraria toda a verdade de como eu sou.
Lentamente, Kamito levou a mão esquerda até o rosto e cobriu o olho esquerdo enquanto falava. Ele podia sentir o coração acelerar só de lembrar daquilo. Tinha medo de que tudo fosse real.
— Ele disse que havia me puxado para lá… e que agora ele é muito mais forte do que eu. — sua voz tremia. — Você já viu ou ouviu algo assim antes? Isso me deixa assustado. Não sei se é apenas um pesadelo ou se é real. Raishi, me diga que você sabe de algo!
Raishi o encarou com seriedade antes de responder:
— Eu já vi algo parecido antes… Talvez seja um teste da sua Relíquia, por achar que você não está pronto, por não ser sincero com sua própria alma. Ou… você pode estar sendo atormentado pelos desejos de uma Fúria.
A palavra fez todos ao redor ficarem tensos. Yujiro, Ryruka e Solum o olhavam espantados. Eles sabiam exatamente do que se tratava e não conseguiam acreditar no que estavam ouvindo.
— Fúrias são Manifestadores que tiveram seus corpos tomados pela própria Manifestação. — explicou Raishi, sem tirar os olhos dele — Isso acontece quando o desejo que a criou se torna uma ganância ou obsessão, mas você não parece demonstrar isso. Além disso, você falou que esse alguém possuía uma Manifestação negra.
— Isso não é possível! Raishi, você os fez despertar suas Relíquias antes da hora?! Agora o Kamito é instável. Não podemos deixar ele continuar lutando. Se ele perder o controle, todo o prédio pode ser destruído.
Ryruka o encarava seriamente. Porém Akane e Solum imediatamente se colocaram na frente de Kamito, como se formassem uma barreira. Era óbvio que Ryruka tentaria impedi-lo.
— Saiam da frente! Não podemos deixar que ele lute. Uma hora ele perderá o controle e poderá nos atacar. São assim que as fúrias são.
— Ryruka, não acho que ele seja uma Fúria. Eu lutei contra uma, afinal. Não sinto e nem vejo o Kamito demonstrar estar obcecado por algum sentimento forte. Além disso, a Manifestação dele é da cor azul claro.
Yujiro analisou atenciosamente enquanto falava. Ele parecia querer confiar nele, mas aquela situação o deixou apreensivo, todos estavam em meio a algo importante e logo agora eles descobriram algo tão sério.
— Esperem aí! Ryruka, você não tem o direito de dizer ou fazer isso. O Kamito não é uma ameaça! Eu o conheço desde pequeno. Se ele realmente tivesse mudado de atitude, eu mesma saberia! Então não o julgue sem saber!
Akane estava pronta para avançar contra Ryruka, mas Kamito se levantou rapidamente e segurou o braço dela. Ela olhou para ele, tensa, e ele apenas sorriu, um sorriso fraco, mas suficiente para tentar acalmá-la. Ele não queria que ela brigasse por sua causa. Não havia tempo para isso.
— Certo, certo! Vocês estão se precipitando. — Raishi ergue a voz, encarando sua irmã com seriedade — Ryruka, eu treinei o Kamito e sei melhor do que ninguém se ele está ou não apto a lutar. Ele não vai se tornar uma fúria. E, como eu havia dito, ele não consegue controlar a energia dele. Isso pode ser um efeito colateral. Que tal deixarmos isso para um outro momento?! Já desperdiçamos cinco minutos nessa briga boba.
Ele desviou o olhar, como se escondesse algo, e caminhou lentamente até onde Harpia, Pombo e Camaleão estavam deitadas, ainda enfraquecidas.
— Temos apenas quarenta minutos para destruir o artefato. — afirmou, voltando a encarar os três que ainda podiam lutar — Akane, Kamito e Solum, eu conto com vocês para essa tarefa. Se fizerem isso, eu mesmo me encarregarei do Falcão, como havia dito. Kamito, tem certeza de que pode continuar?! Tudo bem se você não quiser mais lutar ou não achar estar apto.
Kamito respirou fundo, tentando ignorar o medo que ainda sentia após o pesadelo.
— Eu estou bem. Não vou deixar que esses pesadelos me atormentem num momento como esse, e eu ainda tenho mais três disparos daquilo. Eu vou ficar bem. Vou tentar controlar um pouco mais a minha energia, eu prometo.
Ele olhou para Ryruka, que permanecia contrariada, incapaz de aceitar aquela decisão. Não sabia como convencê-la. Akane então tocou de leve seu braço e assentiu, chamando sua atenção. Eles precisavam ir.
— Nós voltaremos inteiros! Hora de pôr um ponto final nisso de uma vez por todas! Vamos nessa Akane, Solum!!! Hora de destruir esse artefato!!!
Hiena, que até então observava de longe, caminhou na direção de Raishi com cautela. Seus olhos carregavam desconfiança.
— Raishi, acha mesmo que fez certo em mandá-lo sem saber da sua condição?! Por que você não disse a ele sobre o real significado da Manifestação negra?! Qual o seu verdadeiro plano?! Você só está nos usando, não é mesmo?! Você paga de bonzinho, mas na verdade é bem pior que o Falcão… Quem é aquele garoto? Ele é realmente um humano?!
Ela olhou rapidamente para Kamito, que desaparecia dentro do prédio junto de Akane e Solum, e então voltou a encarar Raishi. As palavras dela chamaram a atenção de Yujiro e Ryruka, que estavam próximos e ouviram tudo.
— Um humano não teria tanto poder assim. — ela sussurrava, como se tivesse medo de suas palavras — A luta dele contra o Coiote provou que ele não é apenas um ser humano. Quem realmente é Kamito Takeda?!
— Hiena, já ouviu falar da queda da antiga Ordem? É claro que deve ter ouvido. “A grande queda da Ordem dos Cavaleiros Brancos”, arquitetada por quatro membros: Eu, o Coelho; Ruby, a Raposa; Águia e, por último e não menos importante… Lobo. Todos sabem que foi o Lobo quem teve a ideia de derrubar a Ordem, e foi por isso que decidi dar esse nome ao Kamito. Ele tem o mesmo potencial do Lobo, e isso não é de se espantar se você souber o que eu sei.
Ele falava de maneira tranquila, como se estivesse relatando algo cotidiano, enquanto mantinha os olhos fixos nas três feridas diante dele. Ryruka o encarou, surpresa; jamais imaginara que o próprio irmão fizera parte da Ordem, e ainda mais, que ele havia sido um dos responsáveis pela queda dela anos atrás.
— Será uma bela história para contar quando tudo acabar — continuou Raishi, com um meio sorriso — Mas agora preciso me concentrar nessas três. Se me dão licença, não quero ser incomodado.
Hiena estreitou os olhos, absorvendo cada palavra.
— Agora tudo faz sentido — ela murmurou, quase para si mesma — Isso explica como ele sabia tanto da Ordem e do seu líder. Quem diria que Raishi Kurogane foi membro da Ordem dos Cavaleiros Brancos. — Ela olhou para a outra garota — Pela sua reação, você também não sabia disso, Ryruka.
Um clima pesado tomou conta do local. Desconfiança e apreensão pairavam no ar, quase tão densas quanto as sombras que começaram a se mover na direção deles. Yujiro observava tudo em silêncio, como se estivesse tentando reorganizar mentalmente todas as peças da situação.
Enquanto isso, Kamito, Akane e Solum subiam os andares do prédio o mais rápido possível. Cada lance de escadas fazia o tempo parecer ainda mais curto. Eles estavam correndo contra o relógio, e a urgência era palpável.
No último andar, dentro de uma sala, Coruja os aguardava. Ele estava sentado com os olhos fechados, completamente concentrado. Atrás dele repousava o artefato, o objeto responsável por ligar os dois mundos.
Do lado de fora da sala, posicionados como guardiões, estavam Cascavel e Leopardo. Eles não paravam de olhar para o final do corredor, tensos e ansiosos, esperando qualquer sinal de movimento para atacar. Falcão permanecia no terraço, à espera.

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