Capítulo 60 — Percurso Doloroso
Solum encarava o antigo mestre seriamente enquanto respirava fundo, tentando controlar as mãos que tremiam. Coruja o observava com a mesma rigidez, franzindo o cenho ao perceber que Solum ainda se deixava afetar pelo passado. Ambos ficaram imóveis por alguns segundos, trocando olhares tensos, qualquer passo errado poderia levá-los diretamente à morte.
— Solum… — Coruja rosnou, abaixando lentamente o braço ferido, deixando que o sangue escorresse da varinha até pingar no chão. — Por que dizer algo como isso justo agora?! Acha mesmo que repetir aquelas palavras fará seu propósito raso e sem sentido ser melhor?!
As esferas flutuantes começaram a se reunir ao redor do mestre, orbitando-o como predadores prontos para atacar. O ódio em seus olhos era evidente.
— Lembranças do passado são uma fraqueza! — vociferou ele, avançando um passo enquanto apontava a varinha para Solum. — Por isso você é fraco! Você se apega ao passado e a um discurso inútil! Eu te dei lutas e glória, tudo que você sempre quis! Eu te fiz lutar por você mesmo! E é assim que me agradece?!
Solum cerrou os dentes, respirando com força. Sua expressão endureceu.
— “Lutas e glórias” que não eram minhas! — gritou ele, erguendo as espadas. — Você e essa maldita Ordem me usaram! Se aproveitaram do meu desejo de lutar contra os fortes para alcançarem seus objetivos! E quando finalmente decido lutar por mim mesmo… eu estou errado?! Helenae sempre me falou para não confiar em você!!!
Ele avançou de imediato, sem qualquer traço de medo. Coruja reagiu no mesmo instante, movendo o braço e lançando as esferas contra ele. Solum, porém, acelerou cada vez mais, seus passos ficando borrados enquanto fatiava cada esfera em pedaços minúsculos.
— Seus objetivos e os objetivos dessa Ordem são uma farsa!!! — urrou Solum, aproximando-se aos poucos do mentor. — Eu matarei você e destruirei aquele artefato, e então finalmente estarei livre de vocês!!!
— Solum, não seja idiota! — Coruja respondeu, movendo os braços com vigor, como um maestro desesperado para manter o controle de sua orquestra. — Você fazia parte de algo maior! De um propósito, de um futuro melhor para os Extra-Humanos e para este mundo! Teríamos paz!
Ele comandou as esferas restantes, que dispararam contra Solum. Ao golpear uma delas, ela explodiu violentamente, arremessando-o para trás. Sem dar tempo para ele recuperar o equilíbrio, Coruja lançou todas de uma só vez.
Solum ergueu as espadas para se defender, mas o impacto veio como uma tempestade. As esferas o atingiram simultaneamente, provocando uma sequência de explosões que consumiu sua silhueta em meio à fumaça.
— Não existe uma paz onde o sangue de inocentes é derramado!!! — Solum gritou lá de dentro, sua voz rasgando a fumaça. — Você me disse que a Ordem era o oposto do Império, então por que estamos agindo como eles?! Por esse não ser nosso mundo?! Por não serem da nossa raça?!
As últimas explosões o lançaram longe. Por alguns segundos, tudo ficou silencioso.
Então, Solum emergiu da fumaça.
Cambaleando, mancando, com as roupas rasgadas e coberto de sujeira e fuligem. Mesmo assim, seus olhos permaneciam firmes queimando com a mesma determinação que o impedira, desde criança, de abaixar a cabeça diante dos mais fortes.
Solum o encarava com a respiração pesada, ainda ofegante após as últimas explosões. Seu corpo doía e ardia, mas seus olhos continuavam fixos em Coruja, cheios de fúria e desconfiança.
— O que foi?! Por que não me matou com esse último golpe? Por que diminuiu a força das explosões?! Ao que parece, quem não está lutando a sério é você, Coruja. — Ele limpou o sangue do canto da boca com o dorso da mão, cerrando os dentes. — Pena que esse será o fim dos seus sonhos egoístas e falhos.
Coruja o observava em silêncio, as esferas flutuando lentas ao seu redor enquanto ele recuperava o fôlego. Havia algo diferente no olhar dele, algo mais contido, mais pesado.
— Você está certo em fazer esse questionamento, Solum. — respondeu enfim, dando alguns passos para o lado. Seu tom era firme, mas sem a mesma agressividade de antes. — A Ordem existia muito antes de o império surgir, e seu objetivo era unificar o Extra-Mundo e trazer a paz. Mas nenhuma ideia segue da mesma forma. Elas mudam com o tempo, e desejos egoístas e gananciosos corrompem os bons ideais.
Ele desviou o olhar para a esquerda, fixando-se no artefato. A mão esquerda se ergueu devagar, com a expressão de alguém que chegara a uma conclusão amarga. Solum deu um passo em direção a ele, confuso.
Coruja então fechou o punho.
Uma única esfera disparou e atingiu o artefato em cheio, destruindo-o em uma explosão abrupta. O som ecoou pelo campo de batalha vazio. Solum arregalou os olhos, incrédulo, sentindo o estômago afundar.
O artefato… havia desaparecido.
— Agora, ambos estamos sem um objetivo. — Declarou Coruja, sem tirar os olhos da fumaça que se dissipava. — Meu sonho nunca se realizará, agora que a única forma de o alcançar acaba de ser destruída. E assim, seu objetivo de destruir o artefato também está cumprido. Você disse que me mataria para cumprir tal ato, mas, agora que ele foi destruído… o que fazer, Solum?! — ele se virou, abrindo os braços de leve. — Irá se retirar, ou me matará?!
Solum não respondeu. Seu olhar tremia, dividido entre raiva e confusão. E então, como se alguém abrisse uma janela dentro de sua mente, mais uma memória emergiu, uma que ele não esperava.
Ele e Helenae caminhavam lado a lado pelas ruas simples de uma pequena cidade. O chão de terra batida rangia sob suas botas, e algumas crianças corriam entre as casas, enquanto guardas imperiais vigiavam discretamente. A cesta de mantimentos balançava no braço de Helenae, e Solum carregava um grande saco nas costas, ainda que tentasse parecer que não era pesado.
— Nem acredito que eles tinham tudo que precisávamos. — comentou Helenae, abrindo um sorriso cansado, mas real. — Uma pena que não pudemos comprar mais porções. Têm sido meses difíceis desde que o imperador assumiu o comando do continente. A comida vem diminuindo e os preços subindo. — Ela olhou para Solum com ternura. — Ainda bem que temos alguém como você para nos proteger.
Solum desviou o olhar, corando levemente, sem saber o que dizer. O sorriso dela, porém, desapareceu pouco depois, e ele notou.
— Me pergunto se as coisas vão mesmo melhorar ou se alguém terá a coragem de desafiá-lo e tentar mudar o mundo de uma vez por todas. — disse ela, apertando melhor a cesta contra o braço. — Dói admitir que o império tirou todos os nossos sonhos… Agora somos pessoas sem propósitos.
— Helenae, não diga algo assim. — pediu Solum, encarando-a com preocupação. — Você é a pessoa mais esperançosa e sonhadora que eu conheço. Se até mesmo você achar que isso é impossível, o que seremos?! — ele suspirou, tentando esconder o próprio nervosismo. — Acho que devemos encontrar um novo propósito quando nos é tirado o antigo. Além disso, eu já sou muito forte e pretendo mudar isso tudo.
Ela riu, e o som leve fez Solum relaxar por um instante. Ele ergueu os olhos para o céu, lembrando-se do dia em que seu mestre a trouxera até eles. Helenae nunca se interessara muito em combates, embora também fosse uma Manifestadora Espiritual
— Você tem razão, Solum. Eu acredito em você e sei que você será capaz de vencer qualquer um que esteja impedindo seu objetivo. Foi isso que nosso mestre viu em você e em mim quando ele nos salvou.
Eles continuaram pela estrada por mais algumas horas até finalmente chegarem à antiga casa onde moravam. O homem de cabelos verdes os esperava sentado perto da entrada, com a postura serena de sempre, embora seus olhos demonstrassem certa urgência.
— Helenae, Solum, eu esperava por vocês. — disse ele, levantando-se com calma. — Tem algo muito importante que preciso contar. Chegou o momento de decidirem o que querem para a vida de vocês. Por favor, me acompanhem sem questionamentos.
Sem entenderem o motivo, eles deixaram as compras no chão e seguiram o homem pela trilha entre as árvores. A caminhada silenciosa os levou até uma clareira iluminada pela luz que atravessava a copa das árvores. O mestre se virou e os encarou de forma tão séria que ambos ficaram tensos.
— Eu faço parte de um antigo grupo criado para unir este mundo e estabelecer a paz: a Ordem dos Cavaleiros Brancos. Meu nome é Coruja. Há muito tempo, fui encarregado de recrutar novos membros para a Ordem, e isso me levou até vocês. Eu já decidi qual de vocês entrará para a Ordem, e será você, Solum. Finalmente você poderá lutar contra os mais fortes.
Helenae levou a mão à boca, surpresa.
— O-Ordem dos Cavaleiros Brancos?! Eu pensei que eles eram apenas uma lenda. — disse ela, com a voz trêmula. — Dizem que ela acabou poucos dias antes da “Grande Paz”, e que o motivo da queda foi um dos membros ter se rebelado e assassinado todos os seus companheiros. Não dá para acreditar que ela é real e que o senhor faz parte dela! Então ainda há esperança! Ainda temos uma chance!
As lágrimas de emoção brilharam nos olhos dela. Seu maior sonho era que o mundo finalmente ficasse livre das guerras, e agora seu mestre e seu amigo poderiam realizar esse desejo. Ela virou-se para Solum, radiante.
— Você ouviu isso, Solum?! Você fará parte do grupo mais poderoso que existiu! Eles vão se reerguer e nos devolver a paz! Meus parabéns, Solum!
Mas o rapaz permaneceu imóvel, com o olhar baixo. Ele não parecia animado; pelo contrário, seu peito apertava só de imaginar que ele e Helenae precisariam se separar. Uma garota sozinha naquele mundo era algo perigoso — e ele sabia disso melhor do que ninguém.
Os dias que se seguiram foram cheios de momentos alegres e tristes até o inevitável dia da despedida. Solum tinha apenas treze anos quando se separou de Helenae. Agora, três anos depois, a lembrança fazia seu sangue ferver. Seus olhos mostravam apenas ódio e fúria.
— Sim. Sim, eu irei te matar! — gritou ele, encarando Coruja no presente. — Você prometeu a ela que traríamos a paz e a esperança, mas no lugar disso você quis trazer dor e sofrimento aos outros!!!
Com um rugido, Solum energizou suas espadas e avançou. Coruja, com expressão impassível, criou várias lâminas espirituais e as lançou contra ele. Solum as rebateu com dificuldade, cada impacto ecoando pelo local, mas ainda avançava, carregando pura determinação.
Ele então disparou várias ondas de energia em formato de X enquanto corria.
— Last Hunt!!! Sinta o poder das minhas presas gêmeas ao máximo!!!!
Coruja sorriu com arrogância.
— Entendo, então esse é seu poder máximo?! Acho que lhe mostrarei o meu. Deslumbre o verdadeiro poder, Solum! Sinta meu golpe mais poderoso!!!
A varinha desapareceu da mão dele, e uma imensa massa de lâminas e esferas surgiu de suas costas como um turbilhão. O chão vibrou; o calor no ambiente aumentou drasticamente. Coruja, indiferente ao desconforto, disparou aquela onda monumental.
— Open of the Ten Million Owl’s Eyes!!!!
— Então esse é seu poder supremo?! Eu só estou começando!!!
Solum passou a disparar rajadas tão rápidas que seus braços viraram vultos quase invisíveis. Ele sentia a presença de Akane, Kamito e dos outros ao longe, lutando tanto quanto ele. A energia deles percorria aquele espaço, e isso o fortalecia.
— Enquanto eu tiver meus companheiros, jamais me darei por vencido!!! Helenae, Camaleão, Hiena… Kamito! Eu jamais perderei aqui!!!!!
Coruja cerrou os dentes e estendeu o outro braço, aumentando ainda mais a força da onda de energia. Ele via Solum resistir com tudo que tinha.
— Foi por esse motivo que te recrutei para a Ordem. — gritou ele. — Apesar do seu desejo de lutar ser grande, você jamais desiste do seu objetivo! Isso vinha sendo útil para a Ordem, mas infelizmente você percebeu isso.
A onda aumentou. Solum lutava para cortá-la, mas o poder era avassalador.
— É inútil, Solum. Os seus esforços são em vão. Seja engolido de uma vez!
A onda finalmente o engoliu. Coruja sorriu, acreditando ter vencido. Porém, um instante depois, uma lâmina de energia em forma de X atravessou a fumaça e o acertou em cheio. Ele cuspiu sangue e caiu de joelhos, completamente surpreso.
Enquanto isso, Solum era golpeado de todos os lados dentro daquela energia, incapaz de reagir.
Acima de todas essas batalhas, Falcão caminhava em direção às escadas. Ele sentia nitidamente que o artefato havia sido destruído, e que precisava agir. Seu olhar estava sério, cheio de ira contida.
Ao chegar ao corredor, destruiu a porta com uma única investida e começou a descer calmamente os degraus, ouvindo perfeitamente o estrondo da luta adiante. Era por aquele caminho que ele começaria.

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