Notas de Aviso
Houve uma mudança na distribuição de conteúdo dos capítulos. Capítulos muito grandes (mais de 3k de palavras) foram divididos em 2 para melhor fluxo de leitura.
Capítulo 1: Yaci
Nos becos mais profundos das favelas do grande Império da verdade, em meio a sujeira, podridão e dos horrores que espreitam a cada esquina, uma pequena garota de dez anos, se escondia entre caixas de lixo, dormindo de olhos abertos, cansada e distraída.
Aos seus pés, uma poça de água suja. Nela refletia sua pele, de um tom caramelo bem escuro, e seus olhos verdes sem luz, exaustos, com as pálpebras pesadas…
Seu estômago se contorceu, urrou e gritou. O vazio em sua barriga, a fome, a fraqueza debilitante e a dor que a acompanha, a trouxe de volta a realidade, sua pausa para descansar, se tornou um ligeiro cochilo, quem poderia culpá-la, hoje seu dia realmente foi cansativo, mais que o normal.
O reflexo se desfez e a menina começou a correr. Magra e fraca, a fome transformava o esforço de correr alguns metros com algo semelhante a uma maratona, talvez até mesmo um triatlo!
Mas isso não abalou a pequena, que continuou seu caminho através daquele lugar decrépito, como fazia todos os dias.
Seu gigantesco cabelo prateado, com um brilho metálico de aço, que nenhuma tesoura, faca ou estilete conseguiu cortar, balançava ao vento enquanto corria. Cerrava os dentes, se recusando a ceder ao cansaço e à fome, não se permitindo diminuir o passo.
De onde tirava essa energia, força e resiliência? Bem, nem ela sabia. Só sabia que queria viver uma boa vida junto de seus irmãos e irmãs. Talvez isso já fosse motivação o suficiente para suportar aquele sofrimento todo dia. Afinal, existe motivação maior do que viver?
Depois de correr por alguns minutos, suas pernas doíam pelo esforço e entre arfadas se permitiu observar o local familiar em que havia chegado. Um cruzamento de quatro ruas, com diversas casas cada uma. Ou o que ela conhecia como uma casa.
Diversas barracas e moradias improvisadas estavam apoiadas umas nas outras, junto de cortiços velhos, mofados, destruídos e mal remendados
Seguiu seu caminho junto de um muro de tijolos, antigos mas firmes. No meio dele, escondido atrás de algumas tábuas e lixo, um buraco. A menina não teve dificuldade de entrar e alguns momentos depois ela estava rastejando pela terra, adentrando um túnel profundo e claustrofóbico.
Em pouco tempo, já via a fraca e efêmera luz do fim do túnel e se esgueirou pela saída. Lá estava ela, diante de uma gigantesca fábrica desativada, esteiras que eram várias vezes o seu tamanho estavam por todo lado, se estendendo como uma intrínseca teia por todo local.
Grande parte da fábrica estava pichada… espere, pichada não! Mas sim artisticamente decorada. Afinal, aquela menina ama desenhar e pintar!
Papéis, lápis, carvão, canetas, tudo que ela achava no lixo e podia ser usado como material artístico estava lá, espalhado pela fábrica.
Na falta de papel e tela, as paredes não lhe escaparam, desenhados com muito amor e cuidado por toda a fábrica, retratos de seus irmãos e irmãs, que mesmo feitos com pouco recurso, refletiam todo o carinho que tinha por aqueles que a acolheram.
Um pouco a frente, presas nas engrenagem de uma esteira particularmente comprida, sete tendas, cada uma feita com uma lona colorida diferente hasteadas com muito esmero, a maioria delas tinham seu interior intocado, parado no tempo, com poeira se acumulando nos cantos, os móveis improvisados feitos com tanto carinho por aqueles que ali viviam continuavam no mesmo lugar, nem um milímetro foi mexido, ninguém as habitava há tempos.
Mas uma delas era diferente. Com uma pequena lanterna recarregável presa em um pequeno gancho no “teto”. Seu interior era limpo e organizado, exceto pelos papéis e lápis espalhados pelo chão. Os móveis improvisados estavam customizados, com entalhes na madeira e desenhos espalhados por eles.
Na lateral, um “colchão” que a menina havia feito ao enrolar tudo de macio que achou em suas andanças pela cidade entre vários velhos lençóis que sua irmã mais velha costurou para ela. Ao invés do amontoado de pilhas de feno e tecidos rasgados que seus irmãos chamavam de cama.
Na entrada de todas, uma pequena placa de madeira velha, com nomes esculpidos. Mas naquela onde a luz vazava de seu interior o nome “Yaci” estava pintado em tinta preta e vermelha em uma linda caligrafia.
Yaci pegou uma pequena mochila, que estava escondida debaixo de sua camisa, de lá tirou um pedaço de pão, uma garrafa de vidro com água limpa, e um tubo de ensaio, com um rótulo escrito “ração de subsistência”.
Continha tudo que um ser humano precisava para sobreviver, compactado, processado e embalado.
Ela abriu a garrafa d’água, e deu um gole revigorante. Depois virou-se para o tubo de ensaio, e fez uma careta muito feia.
— Eu realmente odeio isso…
Nada do que ela comeu superou o gosto horrível que aquela pasta cinza e repugnante tinha.
Quem fazia aquela substância esquisita não se preocupava com gosto ou que mal essa “comida” ultra processada pudesse causar a longo prazo.
Aquilo era feito para ser a única ajuda que o Império daria para quem não pudesse trabalhar e pagar suas contas para viver nas cidades, aqueles que viviam às margens de seus territórios não mereciam mais que isso.
Ela abriu a tampa do tubo de ensaio, a “comida” não tinha cheiro, mas mesmo assim ela tampou o nariz, na esperança de que isso apaziguasse o gosto horrível que estava prestes a sentir.
De uma vez só, ela comeu. Não se deu tempo de mastigar, muito menos pensar sobre, só comeu. Mas mesmo assim, um gosto horrível assolava sua mente. Não havia como descrever, mas se ela tivesse que escolher uma palavra para representar aquele gosto, só poderia ser uma:
— Tem gosto de desprezo!
Deu mais um gole de água na fútil esperança de tirar aquele gosto ruim da boca. Então com o pão em mãos foi até a única parte da fábrica que de alguma forma ainda mantinha a energia elétrica. Lá, na extremidade direita da fábrica, ficou de frente para uma grande caixa branca, a caixa era fria por fora e congelante por dentro, era o maior tesouro daquelas crianças abandonadas. Seu irmão mais velho uma vez disse que se chamava freezer. Dentro, havia várias comidas “raras”, completamente congeladas e conservadas que ela guardava para seus irmãos.
Guardou o pão com muito cuidado, saiu para o meio da fábrica e chamou:
— Pessoal? Alguém já chegou?
Mas não houve resposta, ela estava sozinha. Amanhã faria um ano desde que seus irmãos sumiram. Ela era forte e resiliente, mas ainda era uma criança, ela ainda se sentia triste e sozinha.
Seu lábio inferior tremia e seus olhos se umedeceram. Mas ela não chorou!
Chorar não acabaria com a tristeza e a solidão dela. Olhando para o nada, ela perguntou ao vento:
— Aonde vocês foram? Por que vocês ainda não voltaram?
Ela segurou o choro e enxugou os olhos, foi para cama dormir. Amanhã seria um novo dia, uma nova luta, mas uma chance de achar seus irmãos.
Durante a noite ela sonhou, entretanto, não conseguia se lembrar dos detalhes, só de uma voz familiar, a voz que a acordou, era de uma mulher, o som de suas palavras continham um peso inimaginável, ressoavam de forma profunda ao serem ditas, como se seus significados carregassem poder sobre a pequena figura da menina.
— Eles não vão voltar, você sabe disso — proferiu a mulher misteriosa.
Acordando com uma expressão triste, Yaci olhou em volta, procurando a dona daquela voz familiar. Não era a primeira vez que a escutava, essa mesma voz as vezes surgia na sua cabeça desde o dia em que todos sumiram. Nenhum adulto deveria ser capaz de passar pelo buraco e parecia que a voz vinha do seu lado. Realmente foi só um sonho?
Demorou alguns minutos e um bom gole d’água para despertar, mas eventualmente ela o fez. Seu estômago roncou e ela olhou para a freezer com tentação, mas logo balançou a cabeça e pensou resoluta:
“Não importa quanta fome eu tenha, vou guardar tudo para fazer um grande jantar de comemoração pra quando o pessoal voltar! Igual os ricos fazem no natal!”
Ela se virou, e caminhou até a saída. Já do lado de fora, ela iria recomeçar sua rotina: se esgueirar até as áreas dos cidadãos reconhecidos pelo governo, longe das favelas, pegaria o que conseguisse de comida, voltaria parte do caminho para passar na sede de distribuição de ração de subsistência, para pegar a pasta sintética e então, começaria sua busca pela sua família até o anoitecer, quando o sol se escondesse, ela voltaria para casa.
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