Capítulo 13: Pedido
Os últimos três dias passaram rápido para Yaci. Desde o momento em que acordava, até quando encostava a cabeça no travesseiro, não tinha muito o que fazer. No primeiro primeiro dia ainda chovia sem parar, ela tinha comida e água então não sentiu necessidade de sair de casa. Decidiu então começar a ler aquele livro estranho que havia chamado sua atenção.
Entretanto, por maior que fosse o malabarismo mental que fizesse, não conseguia entender a mais curta e simples frase daquele livro! Estava, sem sombra de dúvidas, escrito na língua santa unificada, na qual Yaci foi educada, mas seu conteúdo era tão erudito, complexo e de certa forma até místico, que mesmo lendo aquelas palavras, Yaci não as compreendia.
Passou então a se sentir em um tédio imenso, andou pela fábrica, escalou as esteiras gigantes, arrumou “seu quarto”, começou um novo desenho mas logo depois o deixou de canto, sem finalizá-lo.
Queria fazer alguma coisa, achar um livro novo para ler, qualquer coisa! Mas não tinha certeza se deveria. Assim como a vovó heloisa havia dito, o mundo estava perigoso, mais perigoso que o normal.
Em tom de piada, Yaci encarou sua sombra e perguntou:
— O que você acha, será que ainda é seguro sair de casa?
Contra todas as suas expectativas, a sombra sob seus pés cresceu. Entretanto não tinha mais a forma daquela mulher poderosa, imponente e nobre, como a mais honrada das cavaleiras.
Se projetando no chão liso em frente a ela, estava um homem de idade muito avançada. Seus braços eram finos, mas firmes, se moviam com graça e leveza, de forma lenta e sem pressa.
Mas por algum motivo, aos olhos de Yaci, cada movimento que aquele velho fazia era uma ameaça direta a sua vida. Cada ação e olhar de sua própria sombra a causavam o mesmo pavor de mil facas apontadas para seu pescoço.
Diferente da armadura reluzente de sua até então antiga sombra, aquele velho usava um manto simples, puído nas pontas das mangas e cintura. E isso apenas o tornava ainda mais ameaçador. Até porque, ao que tudo indicava, aquele senhor de aparência tão inofensiva, não precisava de uma armadura.
E por fim ele falou, com uma voz enrugada, amarga e rouca. Sua resposta morreu no ar, não ecoou, nem retumbou pela fábrica. Foi curta e grossa, rápida e objetiva, mas deixou paralisada, suando frio.
— Lá fora é tão perigoso quanto aqui dentro.
Após sua resposta sua sombra tremulou e voltou a ser sua. E no fundo da sua cabeça, ecoando pelo seu cérebro que tentava processar o que acabara de acontecer.
— Que merda acabou de acontecer?
A familiar voz feminina respondeu dentro de sua mente:
— Você ficou mais forte, mais saudável, mais daqueles entre nós poderão entrar em contato com você, então acostume-se a receber novas visitas. Ah, mas saiba que apenas eu vivo em sua cabeça, o resto virá se apresentar de outras formas, como agora.
Yaci não sabia se ria, ou chorava.
“Como assim outros virão?! Tá de sacanagem comigo!”
A sombra disse que apenas ela permanecia em sua cabeça. Mas as palavras daquele velho com certeza tomaram um lugar permanente em seus pensamentos. Se sua casa fosse tão segura quanto o relento frio e perigoso das ruas, onde no mundo ela estaria realmente segura?
“No final, a pergunta certa é: Existe um lugar seguro?”
Pelo visto não. Pior de tudo, todo esse assunto levantou um véu sobre os olhos de Yaci, até então, o fluxo incessante de acontecimentos havia afastado ela desses questionamentos. Mas agora, sem nada para fazer, e depois de receber tantas notícias absurdas, ela finalmente questionou:
“Por que eu vejo e escuto essas sombras? O que elas são? E por que elas apareceram agora, tem algo haver com o que está acontecendo com o mundo?”
— O que é você? Vocês, para ser mais exato!
Ela pensou, falou, olhando diretamente para a sombra sob seus pés, mas dessa vez, não houve resposta. Ainda não tinha certeza se essas coisas eram reais, ou se estava ficando cada dia mais insana.
Mas com tantas loucuras acontecendo com ela, quantas vezes o impossível se tornou possível recentemente, ela estava acreditando cada vez mais, que ainda estava sã, na medida do possível é claro. Afinal, ninguém sobrevive sozinha nas favelas por tanto tempo sendo normal.
— Minha sombra falam comigo, mas só quando querer, eu recebi itens mágicos de um homem a beira da morte, que se suicidou depois de me entregar suas coisas, conheci super humanos e um deles me trouxe de volta das portas da morte, meu braço não é mais um braço e as cinzas de uma aberração morta estão dentro do meu coração… Quando foi que as coisas começaram a dar tão errado?
Falou baixinho, revisitando todas as coisas absurdas que haviam lhe acontecido naquele mês. Ela se sentia uma alienígena agora, tudo que aconteceu com ela parecia saído de um livro de terror.
Ela queria um pouco de normalidade, e se sua casa também não era segura, buscaria o novo “normal” fora dela.
Foi uma decisão tomada no calor do momento, em meio a muita raiva e insatisfação. Queria ver pessoas, queria conversar, queria se sentir uma humana normal. Mesmo que no fundo, sabia que não era mais. E mais profundo em seu subconsciente, ela sabia, de forma primitiva, natural e instintiva, que jamais foi ou será uma humana qualquer.
Como aquele homem disse ao olhar nos olhos dela, ela não tinha, nunca teve.
Decidida, saiu de casa determinada, indo em direção um grupo de pessoas que com certeza a receberia bem.
Em apenas três dias a paisagem destruída tinha mudado um pouco, mas a visão era usual nas favelas do Império da Verdade, a humanidade era conhecida por sua capacidade de adaptar-se, humanos eram de longe a praga mais complexa de se exterminar no planeta.
As ruas que levavam até seu destino já não tinham tantos cadáveres, a maioria deles foram retirados, cremados em piras comunitárias ou enterrados em fossas grandes o suficiente para que dezenas de pessoas pudessem descansar em paz.
Era possível ver centenas de pessoas se movendo como uma procissão, carregando uma moeda cerimonial e sem valor em suas mãos, em direção às praias e ao oceano para fazerem seus rituais de despedida.
Tendas foram erguidas em todo lugar para abrigar aqueles que tiveram suas casas destruídas. Mais cobertores foram trazidos para os enfermos e machucados. Chegando onde queria, Yaci observou que pelo visto, a gentileza que ofereceu àquelas pessoas tocou o coração de muitos e se multiplicou.
Mais e mais pessoas, transeuntes e aqueles que estavam saudáveis se juntaram para fazer daquela esquina cheia de pessoas que perderam tudo, um lugar habitável e menos mórbido.
Alguns a reconheceram, os que não podiam andar acenam de longe, fazendo uma saudação calorosa. Os que tinham capacidades de se mover rapidamente foram em sua direção, lhe oferecendo apertos de mão cheios de respeito e admiração.
“Como pode uma menina tão jovem ser capaz de ajudar e mover tantas pessoas, com uma ação tão simples e inocente?” Pensavam eles.
Não havia nada mais além de uma vontade genuína de ajudar. E isso deixou todos atônitos. Até porque, estavam nas favelas do Império da Verdade.
Yaci deu seu melhor para mostrar a mesma cortesia que recebia de volta para eles. Entretanto, sua atenção estava destinada em achar duas pessoas em específico.
A distância, em meio a uma dúzia de pessoas, carregando duas caixas, ela achou quem procurava. Uma mulher, agora com um vestido limpo, seu semblante estava melhor, seu rosto não estava mais vermelho e machucado. Não havia ranho e lágrimas escorrendo pelo seu rosto.
Detinha um sorriso falso, sem emoção, apenas uma máscara da conveniência. Ao seu lado, um senhor, usando um casaco de couro. Acompanhava sua neta, carregando coisas de menor volume.
O olhar da mulher e de Yaci se cruzaram. Yaci ficou feliz de vê-la melhor, já a mulher, tinha um misto de tristeza e calma em sua face, ela tinha aceitado a verdade.
Eles se aproximaram, o velho foi o primeiro a falar, estendeu a mão e disse:
— É um prazer ver você de novo, senhorita, minha neta e eu não poderíamos estar mais felizes de ver alguém tão gentil quanto você. Não é?
Ao não receber resposta da mulher, ele colocou a mão em seu ombro, como se a acordasse de um pesadelo. Os olhos distantes da mulher se iluminaram, e agora, com compostura, ela cumprimentou Yaci.
— É um prazer ver você de novo, mesmo! Me perdoe pelo meu… comportamento em relação a você recentemente. Que horror, eu nem sei o seu nome e fiz você passar por todo aquela maluquice. Me desculpe.
— Meu nome é Yaci, não imaginava que você melhorasse tão rápido, foi uma surpresa muito boa. Eu também fui mal educada, não sei os seus nomes, nem perguntei como estão.
A dupla ainda tinha olhos cansados, mas naquele momento tiveram o alívio de saber que não tinham afastado uma alma tão boa quanto a da menina a sua frente.
— Nós estamos bem — respondeu a mulher. — Somos Pietro e Hilda, obrigado por perguntar. Voc-
A mulher cortou sua fala. Por um instante parecia engasgar com suas próprias palavras. Um semblante de choro apareceu, mas ela se controlou. Com uma pausa longa, respirou fundo, limpou os olhos e disse resoluta.— Meus filhos se foram. Meu avô e eu pretendemos ir ao mar fazer o ritual de despedida, você gostaria… Não, você poderia ir com a gente?
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