Capítulo 15: Suspeita
Uma caminhada não foi o suficiente para se acalmar. Yaci não queria ajuda daquelas pessoas. Ela iria provar que estavam erradas, todas elas. Voltaria um dia de sua busca, trazendo seus irmãos consigo. Sairiam juntos daquele lugar horrível, vivendo a vida que sempre sonharam.
Começou então a vagar, não queria ir para casa, começou em lugares conhecidos, mas ainda não era o suficiente, decidiu ir cada vez mais longe, até mesmo em partes do distrito da pobreza que nem sonhava com a existência.
Observou o mundo à sua volta, buscando um escape para aquele sentimento que sentia, uma mistura de nojo, raiva e tristeza. Olhando a vida cotidiana voltar ao seu estado normal, passou por diversos lugares, observando a tenacidade humana no seu apogeu. Não fazia muito tempo que o desastre os tinha atingido.
Ninguém sabia ao certo quantas vítimas houveram, o governo não tinha interesse em contabilizar, e os cidadãos careciam de recursos para descobrir. Mas lá estavam todos, retornando para suas casas, começando seus trabalhos novamente.
A cada um sendo uma pequena engrenagem na gigantesca máquina que chamamos de sociedade. Dezenas, centenas, talvez milhares de pessoas perderam a vida nestes últimos dias. Famílias estavam devastadas, casas foram destruídas, mas aquela incrível máquina nunca parou.
Yaci cruzou com pessoas que caminhavam em direção ao trabalho, passando por estações de bondes lotados no meio do distrito da pobreza, onde as pessoas se dirigiam para seus trabalhos além das muralhas que separam a população.
Era engraçado pensar o quão próximos estavam as pessoas pobres das miseráveis, em comparação daquelas que viviam além das muralhas, mas no fim, aqueles a poucos passos de distância eram os segregados e humilhados.
Por coincidência, Yaci passou pela rua onde encontrou aquele homem machucado, que ao que tudo indicava, era conhecido do homem mascarado. Foi ali, naquela pequena viela, no meio de uma grande avenida, dessa vez extremamente movimentada, onde tudo começou, ou então, desandou.
Para sua surpresa, mesmo caminhando em meio a multidões, as pessoas pareciam ignorar sua existência, não havia xingamentos, humilhações, nada, todos estavam preocupados demais com suas próprias vidas para isso. A pressa, a rotina, o sistema dessensibiliza as pessoas. No final, só perceberam que Yaci estava parada ali, quando, por um momento, ela atrapalhou o fluxo contínuo de pessoas.
Neste momento sentiu novamente as coisas de volta aos seus lugares. A xingavam, tentavam a empurrar para que saísse do caminho, mas cada tentativa era seguida de um olhar extremamente surpreso, junto de um pensamento “Eu esbarrei em uma estátua?”
O pensamento logo sumia, quando a criança olhava de volta. Logo, quando perceberam que não conseguiriam fazer a criança se mover, começaram a contornar a menina. Não havia explicação ou aviso, logo após algumas pessoas terem feito isso, todos faziam. Como se dividissem a mesma mente, seguiam em frente para seus respectivos destinos tal qual uma manada.
Aproveitando que estava invisível aos olhos da segregação, seguiu o fluxo, e continuou andando, até chegar naquela viela.
Ali o movimento já não era tão grande, poucas pessoas se arriscaram pegar aquele atalho, mas Yaci não se preocupou com isso, estava procurando traços, resquícios do que aconteceu naquele dia.
Mas não havia nada, o ponto onde o homem havia morrido estava limpo, nem mesmo uma gota de sangue manchou o chão, as poucas pessoas que por ali passavam, não tinham ideia de que a algumas semanas, havia um cadáver ali, exatamente onde estavam pisando.
Aquele lugar, aquelas pessoas, o ritmo, a falta de vida, não era tão diferente das favelas. Não, no final eram a mesma coisa, apenas em graus diferentes. Um lugar tinha mais correntes, era mais cruel, mais impiedoso, mas ambos eram engrenagens no mesmo sistema. Todos no fim, eram reféns deste sistema.
Não… nem todos.
Yaci levantou o olhar, buscando fitar o palácio que ficava em cima da montanha, mas seus olhos pararam no meio do caminho, encarando uma figura alta.
Naquele instante, pela primeira vez em semanas, as palavras daquele homem encheram seus pensamentos. A dor em sua voz, a tristeza em seu tom, a vida escapando do seu corpo a cada respiração. E o medo, o medo enquanto implorava:
“— Queime-as, guarde-as, faça o que quiser com elas. Mas não deixei que isso caia nas mãos deles!”
Ela não sabia quem eram “Eles”. Mas depois de ver sua sombra se mexer e se dividir em 3, e seus arredores ficarem mais escuros, seus instintos lhe diziam que o homem vestindo uma túnica branca com detalhes em dourado que estava encarando ela de volta, poderia ser um “Deles”.
Aprendeu sua lição da última vez, não teve medo, nem paralisou. Não perdeu tempo tentando ver o rosto ou as características do homem de branco, apenas aproveitou a grande distância que os separaram, se virou para trás, visando se esconder na multidão.
Entretanto, uma coisa que não deveria ser possível aconteceu. Alguns passos adiante, ainda a encarando com seus olhos e questionadores, entre ela e a grande multidão, estava o homem de vestes brancas.
Ela não ousou olhar para trás para confirmar que havia outro. Não precisava, sabia que era o mesmo homem que vira a poucos segundos do outro lado da viela. Mas cá estava ele, de pé à sua frente.
Estranhamente, as pessoas param de passar por eles, como se a viela deixasse de existir. Algumas pessoas paravam poucos passos de entrar, mas logo seguiam o caminho convencional, esquecendo o porquê pararam ali.
Os olhos do homem brilhavam em dourado, e então ele falou:
— Em algum momento do passado, você já passou por aqui, criança das favelas?
Não havia nada de errado com sua voz. Tirando o tom de desprezo que ele empregou quando disse “criança das favelas”, mas isso já era costume para Yaci.
O forma de se portar e falar, o jeito que olhava com desprezo, tudo era comum, normal, mundano. Mas seus olhos não eram. Pareciam lanternas amarelas, brilhando incessantemente a noite.
O cabelo claro, curto em corte militar, barba rala, pele pálida azeda, do tipo que não pega sol. A roupa com adornos dourados, ombreiras acima da túnica. Yaci não sabia o que era, mas com certeza não era um policial qualquer.
— Não senhor! Essa é a primeira vez que passo por aqui. — Disse sem fraquejar, sua voz foi respeitosa e sem medo.
O homem levantou uma sobrancelha. Parecia curioso, talvez até um pouco confuso.
— Bem, é visível que você não está acostumada a andar no meio de tantas pessoas, dado o ”engarrafamento” que você causou. Não parece querer assaltar ninguém, se fosse, teria feito na multidão. Então por favor, poderia sanar a minha curiosidade e me dizer por que alguém da sua laia está andando por aqui?
Buscando uma saída, Yaci deu a única resposta que tinha certeza que iria deixar aquele homem ainda mais confuso. Benjamin com certeza choraria de rir se visse ela o imitando tão descaradamente.
— Acho que o senhor se confundiu e me ofendeu gravemente, eu não sou uma miserável!
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