A expressão do homem de branco mudou de curiosidade divertida, para uma dúvida desconfortável, tentando descobrir se cometeu um erro, e se cometeu, como e onde?

    Desta vez, ele se perguntou com sinceridade, questionando tudo que havia acontecido até agora.

    — Você não é das favelas? Quer dizer que vive deste lado? Com essas roupas imundas de terra como se estivesse rastejando pelo chão, vai dizer que tomou banho antes de sair de casa? Me poupe, então, diga-me, onde você mora, coisinha mentirosa?

    Por sorte, o homem era desprezível o suficiente para irritá-la de verdade, não havia necessidade de atuar ainda mais, ou então correr o risco de sua raiva e indignação serem fingidas ou superficiais, ela teria que apenas extravasar um pouco da raiva que acumulou durante os anos de sua vida. Teria que, então, mentir e distorcer os fatos um pouquinho.

    — Como ousa?! Para um oficial da lei o senhor não parece estar ciente dos últimos acontecimentos, talvez a vida esteja calma demais para vocês no outro lado da muralha, mas aqui? Não faz nem uma semana que o ataque e a destruição acabaram, minha casa ainda não está nem perto de ser reconstruída, e você ainda consegue pensar que eu conseguiria andar como uma patricinha para cima e para baixo?

    A expressão de desprezo e curiosidade do homem finalmente desmoronou, foi substituída por choque, surpresa e descrença. Óbvio, essa curta troca de palavras não foi o suficiente para tirar Yaci de suspeitas, aquela conversa estava longe de acabar.

    — Oh, é mesmo, acho que tudo bem então… Mas veja bem “senhorita” — disse da forma mais presunçosa possível — você ainda não respondeu minha pergunta, onde mora, poderia me dizer seu endereço? Poderia até mesmo levá-la em casa como forma de desculpas pela ofensa, essas ruas estão perigosas, tenho certeza que se sentiria mais segura sendo acompanhada por um policial, não é?

    — Pelo contrário! O senhor não usa a farda da polícia, assumi que era um militar, por usar as cores do Império. Por via de regra o senhor não é um policial, ou pelo menos não está em serviço nesse momento. Seria muito apreciado se o senhor deixasse que eu siga meu caminho, ainda tenho algumas tarefas para cumprir antes de voltar para casa.

    O tom, o vocabulário, os maneirismos e expressões que Yaci usou estavam precisamente no limiar entre um pobre bem educado, e um cidadão médio que vive depois das muralhas. Benjamin fazia questão de andar nessa corda bamba, nunca sendo extremamente formal, mas nunca caindo no coloquial. Quem diria que a mais nova, seria a primeira que conseguiria imitá-lo tão bem!

    Naquele momento, o homem se deu por vencido. Com certeza não acreditou em uma palavra no que a menina disse, mas, teve que tirar o chapéu por ela ter conseguido surpreendê-lo, talvez, no fim, ela tenha lhe dado um presente ainda maior, e bastava apenas uma pergunta para confirmar a sua suspeita.

    — Perdão por incomodá-la, deveria saber que é uma de nossos cidadãos com a sua incrível demonstração de educação. Mas veja, senhorita, minha suspeita em relação a você não foi atoa, mesmo depois de ver quão bem portada é, mesmo com as condições inesperadas que te afligem.

    — Está tudo bem! — Tentou cortar o assunto. — Acredito que terminamos, eu me despeço, desejo o melhor para você.

    Neste instante o homem parou, e com um sorriso genuíno estampado em seu rosto, perguntou, esperando ansiosamente para ver sua reação.

    — Espere! Como eu disse antes, não foi atoa que eu suspeitei de você. Há alguns anos, um nobre da família Ardore, fugiu de casa. Acreditasse que ele tenha fugido para as favelas, e por mais que seja difícil acreditar, há rumores que ele esteja vivendo com alguns órfãos de lá, e até mesmo educando eles. Depois de tantos anos a família ainda sente falta dele, então a busca contínua, mesmo que provavelmente ele já esteja morto, ele era bem jovem quando fugiu sabe, talvez até mais novo que você! A senhorita por acaso já viu este jovem?

    Puxou de um bolso dentro de sua túnica uma foto antiga, amassada e desbotada. Yaci, não precisou analisar muito aquela foto para reconhecer a pessoa retratada nela. Mesmo que vários anos mais jovem e sem suas cicatrizes de queimadura características, ela jamais esqueceria aqueles cabelos vermelhos, o sorriso flamejante. Aquele sem sombra de dúvidas, era Benjamim, seu irmão mais velho, o irmão mais velho, aquele que salvou todos eles.

    Para sua decepção, Yaci não exibiu reação, seu rosto parecia congelado pela indiferença, indicando somente, que aquela interação indesejada já tinha tomado muito do seu tempo.

    Entretanto, algo nela estava diferente.

    Abaixo da superfície, seu sangue fervia, sua mente foi inundada por emoções complexas, era imperceptível ao olhar, entretanto, além da visão, o homem percebeu, algo além dos cinco sentidos arrepiou os pelos do seu braço e lançou um calafrio que subiu pela sua coluna, algo ao redor da menina mudou, era pequeno, simplório, mas estava lá escorrendo do seu cerne em direção a realidade.

    Yaci falou, sua voz era baixa, mas afiada e fria, como uma lâmina. Ela cortou o assunto, e foi embora.

    — Nunca o vi. Por favor, não me incomode mais.

    O homem assentiu silenciosamente, deu uma última olhada naquela menina que parecia se destacar do mundo ao seu redor e seguiu seu caminho em outra direção.

    Porém parou. Pois um som familiar ecoou pela viela, encheu o ambiente carregando com ele sentimentos de ódio, dúvida e aflição.

    Era o som de uma gota caindo.

    Olhando para trás, para onde a menina estava, não pode deixar de se surpreender. Yaci havia sumido, mas inconscientemente, deixou algo para trás.

    No chão, no exato ponto onde estava a alguns momentos, um rastro de um líquido mais escuro que a noite, o barulho que tinha escutado foi a última gota desta substância sendo derramada no chão, pegadas negras, de pequenos pés, acompanhavam o rastro, manchando o caminho que Yaci fez por alguns passos, antes de desaparecer junto ao rastro, como se nunca tivessem existido. 

    O rastro já estava secando, o homem de branco se aproximou e checou o que era aquele líquido. 

    Encostou os dedos com cautela, a textura era aguada, como se o céu noturno tivesse se derramado no chão. 

    Era mais escuro que uma madrugada sem lua e sem estrelas, era mais profundo que o abismo mais assustador. Mas também era cheio de potencial, poderia virar qualquer coisa, poderia representar mundos, escrever histórias, guardar faces para a eternidade, descrever lugares.

    Era tinta.

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